127 Horas (127 Hours),de Danny Boyle (EUA, 2010)
por Thiago Brito

Enquadrado

Dentro de uma garrafa, de um braço, fotos, máquina, no ar, debaixo d'água. A câmera deve estar em todos os espaços, todos os lugares e em qualquer instância; nada é sagrado, nada foge da possibilidade de se tornar imagem. A tripartição do quadro é uma fragmentação ou a expressão de um absoluto? Em Cisne Negro, Aronosky faz questão de filmar diante do espelho e subtrair a existência física de uma câmera; aqui, a sombra de Aron no chão, a câmera como subjetiva e apagada: quando tudo é representado, tudo se torna muito mais seguro, está enquadrado. Todos os sonhos de Aron, seus delírios e visões, tudo se conforma a uma possibilidade de representação, as imagens aparecem claras tanto para ele quanto para nós, espectadores. Ao fazer isto, Danny Boyle acaba propondo um paradoxo: filmar a experiência de alguém (algo que se desenrola exatamente em um momento e espaço específicos) com uma significação subjetiva e, ao mesmo tempo, filtrar perpetuamente seu olhar através de uma instância superiora – uma câmera onipresente.

Aparentemente, a história de Ralston não é o suficiente para Danny Boyle. É preciso que o cineasta se desdobre, que estilize tudo. Parece que esta é a única maneira que o diretor compreende que um filme possa ser realizado, ou melhor, que é apenas através de uma operação formalista ostensiva que alguma coisa vira, se não arte, pelo menos objeto para o cinema. Aliás, este sintoma não é propriedade apenas de Boyle: Gondry não pode fazer um filme sem que haja algum tipo de relação lúdica com os artifícios da imagem; Fincher nem pensa em começar a filmar se não houver espaço para imagens em slow motion; e que dirá Wes Anderson e seus travellings. Contudo, o problema não é exatamente este, ele reside muito mais no momento em que a forma engole tão monstruosamente seu conteúdo, que o proíbe de efetivamente acontecer, existir. Quando a forma transforma-se em um narrador de si mesmo.

Ao fazer desta formalização sua tela, Boyle coloca Ralston como um personagem secundário e ancora seu filme em um mar de complicações e paradoxos. O fragmento torna-se um todo, o subjetivo tende ao objetivo, a experiência é subjugada pela idéia. Os momentos iniciais de 127 Horas estão imbuídos de pequenos germes que irão encontrar, futuramente, correspondência e respaldo. O cometa que aparece, a princípio arbitrariamente, será conjugado ao fim com a própria queda do protagonista; um homem de bicicleta cujo olhar, por um segundo, cruza com o de Ralston expõe sua solidão e anseio de contato. Paulatinamente, outros pequenos elementos são introduzidos para completar uma equação, como a do amigo de Ralston em cima de uma pedra. No fim, sua aventura perde lugar para a prodigiosa construção de um arco dramático que se constrói superior ao desenrolar da narrativa, como se algo pesasse sofregamente desde o momento em que Ralston tivesse levantado da cama, ignorado a todos e esquecido seu canivete.

É assim que todas suas estratégicas formais conseguem atingir o completo contrário a que se propuseram. A fragmentação se transforma neste ato de enclausuramento de Ralston, que aparece encurralado por imagens que forçosamente procuram dar cabo de todos seus mínimos movimentos e sofrimentos. Ao tripartir a tela, Boyle não atinge uma expressão de solidão ou mesmo de relatividade, mas aponta para a idéia de um todo que engloba e engole a todos; este todo que encontra um perfeito correlato na ação de sua câmera, onisciente e onipresente, que atravessa todas as barreiras e limites, que não se contenta em estar em determinado espaço e tempo – uma câmera premonitória, que atesta continuamente pouco interesse ao que está presente e vivo em sua frente, já que o que lhe interessa já lhe é conhecido desde o princípio, tudo é acumulo de tempo e esforço meramente funcionais. No entanto, se a câmera de Doyle pode até estar em todos os lugares, parece faltar justamente um: Ralston. Pois o filme peca ao não expressar a paixão do protagonista por aquelas paisagens, ao filmá-lo como uma peça em um jogo do destino, como se seus passos irremediavelmente o guiassem para seu momento de revelação premonitória - "Esta pedra me aguardou minha vida inteira". O jogo de Danny Boyle é abolir a liberdade de seu personagem, fragmentá-lo para integrá-lo; seu heroísmo parece ser o de, finalmente, se acomodar a um destino inscrito desde o início de sua existência, terminar sua errância e compreender o caminho que sempre foi destinado a trilhar. Em última instância, é preciso acomodar.

Filmar Blue John Canyon é como filmar Bombaim, Nova York, Londres, etc. O conjunto de operações formais é o princípio de tudo, prescinde quase que absolutamente do mundo: seu movimento não precisa se relacionar com o objeto em questão, mais o sobrevive e transpassa. Entre tantos problemas que advêm deste tipo de percepção, está a questão de até quando ela não vira uma capa de chuva onde o filme se resguarda de buscar de fato alguma expressão artística. Ao que parece, existe uma certa dificuldade em se diferenciar expressão e experiência (quantos filmes não procuram uma experiência, e morrem sem buscar uma expressão através de seus elementos?). Autorismo ou maneirismo? Não importa muito, continua frívolo, tolo.

Março de 2011

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