ensaios - especial retrospectiva 2007
2007 em três filmes por
Luiz Soares Júnior Neste ano de 2007,
tivemos em nossas telas o reencontro com grandes mestres contemporâneos (Abel
Ferrara e Alain Resnais) e o confronto com um espécime estilisticamente conciso
e utópico, daquele que vem se revelando um dos grandes geólogos de um mundo em
transição, ancorado nas transparências da radiografia ontológica e na opacidade
esquizóide de representações de uma imagem rizomática, aberta ao pop e à irisação
conceitual – Jia Zhang-ke e seu Still life.
No texto seguir, trato
dos três filmes em separado, três das principais experiências audiovisuais do
ano. Estes são textos pautados mais por intuições esgarçadas e associativas, que
se orientam pela trajetória dos três autores, do que por um aprofundamento vertical
em cima de cada filme. Antes de tudo, pretendem estabelecer um horizonte, captar
interações e diagnosticar sintomas, e não constituir painéis que dêem conta do
fabuloso apocalipse messiânico (ênfase no messiânico) de Ferrara, ou no esquadrinhamento
de um espaço mitificado pelo fantasma do musical e do melodrama, como no último
Resnais. Em todo caso, é bom sempre ressaltar que, sob qualquer pretexto ou condição
de sentido, a obra (o filme) é o fio-condutor de toda análise/cotejo/enfoque;
é o princípio e o fim.
Maria: a conversão e o
feminino como princípios O cinema de Abel Ferrara sempre
esteve atrelado à idéia da imagem como veículo de contaminação, instância porosa
e intercambiável para outras imagens: imagens de imagens. Esta representação não
se ancora necessariamente num princípio, num fundamento exterior a ele, mas também
não se deixa apreender na mera cadeia associativa do fluxo sensorial. Se essa
acumulação de imagens dá a Maria a vertigem que estamos acostumados a associar
ao cinema de Ferrara, aqui esta revela-se depurada pela anexação de dois princípios
fundamentais, que regem esta constante interpolação de signos. A
proliferação de imagens que encadeia, media e delineia a trajetória dos três personagens
principais – o diretor (Matthew Modine), o apresentador de tv (Forest Whitaker)
e a atriz que interpreta Maria Madalena (Juliette Binoche) – sustenta-se sobre
uma idéia de conversão. Imagem é a representação visível de algo invisível, de
idéias e emoções fluidas ou sutis demais para que tenhamos acesso direto a elas.
Imagem é o quinhão de nossa finitude, estigma de nossa precária ligação a qualquer
modalidade de transcendência. Assim, Cristo é o imago (imagem) de Deus. Deus,
infinitude até então inacessível ao Homem, apequena-se, projeta-se num signo à
medida do homem. Cristo é menos o filho de Deus feito homem (um homem como os
outros) do que a sua imagem, a versão virtual, finita, porosa e reversível (por
ser ao mesmo tempo homem e Deus) da divindade. Deus feito imagem, Deus projetado
num ser tangível que se dirige a nós, espectadores desta operação. A
imagem, portanto, consiste numa conversão: infinito para finito, coisa para signo,
signo para coisa. A cadeia que ela estabelece é veículo de passagem, e enfeixa
um círculo de recíproca e diferencial "afetação". Em Maria, os
personagens são ligados e se afetam uns aos outros, se equilibram e convertem
uns nos outros através do circuito das imagens. Uma das sequências em que este
caráter da imagem como vetor de conversão e mobilização do afeto entre os seres,
do "ser afetado" melhor se explicita , é quando um intrigado Whitaker
telefona do celular para Binoche, a Madalena do filme, atriz que fora de tal modo
“afetada” pelo personagem interpretado que se perde e se encontra numa peregrinação
agônica pela Palestina. Enquanto conversam, um marasmo de imagens sobrepostas,
de fade in e fade out fantasmagóricos vai progressiva e hipnoticamente
ligando as duas trajetórias, a ponto de convertê-las numa mesma e imemorial persona.
Igualmente na grande “contaminação” messiânica final, quando Modine, na cabine
de projeção, encontra a fé na realização de seu filme. É
claro que o caráter “impuro” da imagem em Ferrara, sua natureza miscigenada, metastática,
conversora se deixa perceber na própria forma do filme: retábulo onde se conjugam
rastros de documento, efígies icônicas, trechos do filme dirigido por Modine,
imagens de tv. O som também desempenha papel de link importante: Forest Withaker
angustiado no corredor do hospital onde a mulher está internado ao som da cantilena
judaica em Jerusalém. A unidade de todas as imagens numa imago primeira, invisível
ao olhar humano mas subjacente a todas as configuração visíveis é a estratégia
mística que se elabora através desta contaminação mundana, “decaída”, ôntica. O
segundo princípio que equaciona o fluxo imagético é o feminino. Leia-se feminino
aqui como uma instância ontológica, não genital. Feminino é um horizonte de sentido
diretamente implicado na construção de toda imagem: contemplação, reflexão, afecção.
Contraposto ao masculino, refúgio da ação e da afirmação da força, o feminino
é um princípio maleável, líquido, poroso por excelência. Olhar coalescente, que
intui a unidade inerente a todos os seres e coisas, dotados do poder e do dom
de afetar e ser afetados. Assim, Maria é um filme que se estrutura muito
em cima da panorâmica, de um olhar que se espraia por um vasto círculo de paisagens
e objetos e os estreita na cadeia de uma experiência única. Esta é a vivência
do feminino, de um acolhimento do mundo nos umbrais do ego e de uma recíproca
abertura do ego à aventura de viver neste mundo, neste espaço e neste tempo. Que,
em Ferrara, é evasivo, problemático, tortuoso, ambíguo, cortejado pelo Mal e pela
Morte. Este movimento de abertura e retração entre o mundo
e o ego dita o amplo e curvilíneo ritmo do filme, que embalsama as esquizóides
e traumáticas experiências dos personagens numa serenidade que se constrói das
ruínas de seus próprios revezes. Um filme centrado na idéia de conversão – de
uma imagem em outra, mas também de um ser em outro, de uma experiência subjetiva
em Outra; e no feminino – instância da contemplação da imago, de anulação de si
através da abertura do olhar. Não é propriamente uma obra religiosa, mas um filme
sobre a experiência religiosa. Ferrara sabe que redenção é coisa deste mundo,
e implanta nas rotas da reconciliação (Whitaker voltando para casa, a celebração
judaica de que Maria participa) as sementes da Queda: a explosão, o parto sangrento
da mulher. Todo católico sabe que a idéia de redenção está implicada (e é implicada)
pela de Queda. E, como bem diz Gallagher: para este católico agostiniano de um
tipo particularmente atormentado como Ferrara, só podemos alcançar a pureza da
Imagem primeira se (e na medida em que) experimentamos os declives e misérias
de todas as imagens secundárias, dispersas, crapulosas do mundo. Medos
Privados...: perversamente clássico Com Medos
Privados em Lugares Públicos, Alain Resnais nos oferece um grande conto de
fadas sobre espaços desertos encantados pela imaginação. Leia-se aqui espaços
no sentido arquitetural e de invólucro, de núcleo protetor, refúgio, nicho sentimental.
O filme se equilibra constantemente numa dança entre closes e planos médios, o
conjunto desta relação inserido na abóbada remissora do plano aberto. Da comédia
sentimental e doméstica encenada na dicotomia descrita acima, somos jogados no
território mais amplo e apaziguador do scope (formato largo da tela do
cinema), utilizado na plenitude de sua aura. Resnais usa
o scope menos como um amplificador horizontal do espaço do que como um
meio de estratificá-lo, segmentá-lo em dimensões verticalmente justapostas. Há
uma herança retrabalhada aqui da profundidade de campo: os personagens do filme
se perdem num cenário que se prolonga para além (aquém, melhor dizendo) de suas
peripécias. O uso do zoom intensifica essa sensação de “situação” no plano,
de passagem da estereotipada comédia de costumes (planos médios e closes) para
a irisada órbita da fantasia (planos abertos). Há transição entre duas dimensões
não apenas na relação entre planos, mas na estrutura do filme em si, encadeado
pela imagem dos flocos de neve. Em L’amour a mort, Resnais já utilizara
este recurso, e o aliara a uma concepção musical serialista do filme. Aqui,
as transições obedecem igualmente a um princípio musical: um tema (a incomunicabilidade
e o isolamento entre os personagens) e suas variações, um acorde e suas ressonâncias,
uma série e suas repercussões rítmicas, plásticas. Mas a mediação aqui serve ao
drama (melodrama), integra-se organicamente a ele. A imagem da neve é menos entendida
como um “fondu”, uma ligação entre os planos, do que como um elemento integrante
deles (de cada um deles e entre eles). Assim, temos o plano de uma rua onde neva
justaposto ao plano de uma casa em seu interior, onde continua nevando. Organicidade
como efeito da fusão, osmose do plano e unidade do drama. Perto do final do filme,
em uma cena entre Pierre Arditi e Sabine Azéma (não por acaso, os mesmos protagonistas
do filme de 1984), este efeito é intensificado, e nos proporciona o milagre de
assistir à reconciliação do mundo interior dos personagens e da paisagem. Em L’amour
a mort, ao contrário, o plano da neve constituía um ponto de cisão entre a
estrutura formal do filme e seu objeto. Medos Privados
em Lugares Públicos é ainda um filme que entretém com o classicismo da peça
na qual se baseia uma relação bastante ambígua: o texto original permite manter
uma unidade de tom que abriga, como uma sinfonia, as trajetórias cambiantes dos
movimentos dos personagens, estas variações em dó maior de uma mesma nota; com
isso, dá ao filme uma cristalina transparência rítmica, a serenidade de um estilo
que desemboca no impressionismo sem afetação ou precipitação. Como
dar conta do convencionalismo da peça original, como integrá-lo em seu mundo?
Resnais, por exemplo, inclui referências (pós-modernas) a uma tecnologia já defasada
em nossa época – escritura de cartas, fitas de vídeo, programas dominicais de
tv – que funcionam como signos críticos da entropia existencial descrita ali.
É como se ele deliberadamente enfatizasse o caráter caduco, mofado da experiência
descrita (da peça, inclusive), embora sem abrir mão da ambiência ou do estudo
de caracteres. O
filme possui igualmente marcas de estilo que delimitam criticamente o classicismo,
que o configuram como uma experiência histórica irremediavelmente distante de
nós: assim pode ser entendido o uso do zoom, intromissão impossível de
se pensar numa construção tradicional; ou o uso muito particular do travelling
traseiro, figura de estilo muito típica do Resnais de Marienbad. Por exemplo:
quando Laura Morante manda o marido embora, a câmera recua bruscamente e nos mostra
o palco arruinado de sua miséria, ativamente enfatizando a natureza artifical,
encenada da situação. A mesma coisa para um plano de Lambert Wilson, de costas
para a câmera, no bar, quando Resnais faz suceder subitamente o plano médio do
homem com o plano aberto do bar kitsch onde ele se encontra, ironizando
as lamúrias do personagem. A fim de encarecer o lado compósito,
burlesco da sua visão da peça, temos o recurso, presente em muitas cenas, de apresentar
os personagens através de uma espécie de limbo, tecido de luzes, panos, lantejoulas,
coxia de um teatro que se prolonga diante de nós e apesar de nós: escada fantasmagórica
do bar do hotel, cortinados do escritório onde Sabine Azéma trabalha. Medos
Privados em Lugares Públicos é uma lição de como é possível à arte se reapropriar
de velhos conteúdos e táticas de representação sem o risco de uma regressão perceptiva.
Jogo cambiante e modulado entre o abrigo em uma determinada tradição e sua perversão
subliminar. Still Life: criando um documento
e documentando uma criação Uma
panorâmica circular reconcilia os personagens no plano de abertura de Still
Life. A câmera desliza para a direita e nos faz entrever a figura de um homem,
alheio à simbiose descrita pelo círculo, apartado do tempo e do espaço que a panorâmica
delimita. Sentado na proa do barco, ele contempla um novo mundo que se descortina
à sua frente – mas a trajetória que empreende descreve uma parabólica temporal
que se alimenta do passado, das origens e da noção de identidade dela tributária.
O homem volta à cidade de Fengjie em busca da filha e da ex-mulher. A cidade se
encontra devastada pela construção de uma nova barragem. Outra personagem, uma
mulher, procura incansavelmente pelo marido, munida de um celular. Ao final, o
homem não acha a mulher nem a filha, a mulher idem. O cinema
de Jia Zhang-ke se constrói nesta encruzilhada temporal: presente opaco, alienado,
ulcerado por todas as figuras da ausência. Passado igualmente esgarçado, mas que
se deixa apreender mais precisamente por uma lancinante situação dos personagens
na paisagem, figuras esquivas entrevistas no seio de vastos planos abertos; ou
pelo uso das morosas panorâmicas, que a todo instante reforçam o caráter transitório
da experiência histórica em Still Life. Na cratera destes tempos em desalinho,
pessoas se perdem e se dispersam, elaboram-se gestos incompletos, evasivos, uma
comunidade e suas referências de mundo desabam e não há outra para substituí-la. O
fantástico é que, mesmo descrevendo um mundo à deriva, marcado pela precariedade,
Jia o faz com uma vivacidade, uma atenção à caracterização de personagens, uma
precisão na construção do detalhe como uma via de acesso privilegiada à penetração
da vivência, um senso coreográfico apuradíssimo das relações dos corpos no espaço.
Há, porém, uma clara demarcação: a pulsante e musical ciranda de corpos, marcações
rítmicas, idiossincracias posturais é a linha de fuga a partir da qual a regressão
histórica se deixa claramente destacar. Jia Zhang-ke se
recusa a dar à imagem o caráter de documento, mera catalogação do vivido. Uma
progressiva estilização, marcante em seus filmes desde O Mundo, e que encontra
em Still life o grau de cristalização mais orgânico, vai minando as tendências
ontologizantes de seu cinema. O filme não mais se contenta em auscultar os movimentos
tectônicos do mundo; agora deseja intervir ativamente neles. Ao invés de percepção
sismográfica, escavação geológica. A forma desempenha a função de destilar as
potencialidades utópicas da arte, as possibilidades de libertação de um tempo
e um espaço degradados (Cidade de Fengjie, 2006). De
fato, Jia estria Still Life com alguns acontecimentos epifânicos que são
uma espécie de marcos balizadores da desoladora trajetória descrita: um objeto
não identificado (mas extremamente luminoso) na noite da cidade, um homem caminhando
na corda bamba, o uso da música como uma percussão que escalona o movimento dos
astros e dos homens. Em entrevista
à Cinética, aliás, o cineasta afirmava: “Não me interessa a contemplação como
gesto final. Alguns dos sentidos de realidade não podem ser expressados pela mera
observação do real. Em muitos momentos, a intervenção “surrealista” é muito mais
verdadeira para essa expressão do mundo. (...) Essa velocidade com que as coisas
acontecem hoje na China parecem ultrapassar a capacidade dos sentidos realistas
de apreensão da vida e de representação cinematográfica.” Still
Life é a consagração desta proposta de uma nova percepção, delineada no movimento
agônico de uma consciência que se abre e retrai perante o mundo, a fim de recriá-lo
criticamente, e de uma estética que se afirma no interstício desta conflagração.
Janeiro
de 2008
editoria@revistacinetica.com.br
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