in loco - cobertura dos festivais
24 City (Er Shi Si Cheng Ji), de Jia
Zhang-ke (China/Hong Kong/Japão, 2008)
por Paulo Santos Lima Rossellini
deixado de lado
Levar a câmera a um espaço onde
a história se faz avalanche total, numa relação direta com a ação, é um evento
áureo ao cinema, sobremaneira o de ficção. Rossellini é o mestre maior dessa feliz
aventura, aquele que mais dramaticamente conseguiu capturar as demolições morais
e materiais em seus Roma, Cidade Aberta, Paisà e Alemanha Ano
Zero. Spike Lee também conseguiu contar um enredo perpassando o celeuma do
11 de Setembro em A Última Noite. Mas o cineasta que melhor honra hoje
os encontros formidáveis de Rossellini é mesmo Jia Zhang-ke. A China em amplo
desenvolvimento econômico ceifando memórias e modos de vida (como as bombas que
levaram às cinzas as tantas pessoas na brutal 2ª Guerra Mundial) é a grande questão
do cineasta, que chegou ao sublime disso em Still Life. Agora,
com 24 City, temos Jia procurando outros meios de prospecção nesse terreno
político-histórico atual do seu país. É um filme que vem após a guinada efetuada
no notável Inútil, que é se voltar mais o “padrão documentário”, numa série
de entrevistas – se antes os próprios personagens contavam sobre a China através
das relações entre si e nos dramas encenados, agora é através do mais célebre
dos dispositivos documentais, a entrevista, que Jia obtém materiais sobre seu
tempo. É mais uma mudança de tom: antes, havia a “ficção documentária”, e agora
temos o “documentário ficcionalizado”, e em ambos a encenação está presente, menos
ou mais. Porém, antes Jia chegava a Viagem à Itália, de Rossellini (ou
seja, à arte suprema, vista por exemplo em O Mundo, que troca as obras
de arte históricas do filme italiano por um parque temático pós-moderno), e agora
parece mais próximo do genérico documental (ou seja, da expressão cinematográfica
anônima). É
uma mudança de ênfase, também, em relação aos tantos elementos e procedimentos
apresentados na filmografia do cineasta: agora, o centro está pendido mais para
a própria natureza da encenação. As memórias perdidas, o trabalho, a vida em transformação,
tudo isso continua na discussão, mas é nas entrevistas que o filme desenvolve
sua imagem. A comparação com Inútil se faz obrigatória, pois ali a série
de entrevistas servia a uma dialética na qual se concluía a força da produção
material entranhando-se na própria filosofia de vida dos homens – e de toda uma
cultura e país. Havia uma manipulação mais afiada sobre o material documental
que fazia Inútil ser algo maior, mais planetário (ainda que fosse sobre
a China), e que levava o filme além de uma discussão bastante manjada, que é o
grande eixo de 24 City: a performance na natureza do documentário. Diante
disso, Jia trocou Rossellini por Coutinho? Parece, mas Coutinho faz, literalmente,
um grande jogo de cena sobre a encenação, abrindo-se a uma enorme reflexão sobre
o que é essencial na relação que a câmera cria para si e para nós. Jia Zhang-ke,
por exemplo, abre-se a uma ambigüidade arriscada, como mostrar um decrépito ex-funcionário
da fábrica para, sem corte, levar a câmera do seu rosto trêmulo para o de seu
ex-funcionário, banhado em lágrimas. Ou pegar Joan Chen (Ano do Dragão,
O Último Imperador, a quem se esquecer quem é esta belíssima atriz) e fazê-la
se replicar nela própria, atuando como uma ex-funcionária apelidada na fábrica
de Pequena Flor, porque era parecida com a atriz de um filme popular de 1980,
Pequena Flor (que é Joan Chen, no caso). Continuamos
a assistir a grandes planos de áreas industriais em transformação, placas de concreto
alteradas, tubulações enferrujadas, espaços sendo desfigurados, a própria maquete
do conjunto habitacional 24 City (que talvez seja agora o que um dia já foi o
tal projeto do parque temático de O Mundo – e em que, apesar de toda a
plasticidade clean e funcional, não impediu que vingassem novas e autênticas
vidas, relações, amores e frustrações). E é por isso mesmo que parece equivocado
Jia Zhang-ke destinar a estrutura de seu filme para esse julgamento sobre a representação.
Claro, não deixa de ser interessante essa nova aventura, mas parece que responde
mais a ele próprio, cineasta que procura chegar ao “pré-sal” do processo histórico
chinês, e, para tal, vem preferindo para o seu cinema os dispositivos documentais.
Talvez seja uma questão de moral, em como ele vai levar
à frente sua empreitada (o que até diz respeito ao cinema mundial, uma vez que
Jia Zhang-ke é um dos cineastas mais importantes do planeta), mas que parece menor
para alguém que pôs inserções de prédios voando como espaçonaves em Still Life.
Faltou a ele observar a aula dos grandes gênios do cinema, sobre abrir mão de
olhares para se chegar ao olhar essencial? Porque não parece cabível abraçar uma
história do tamanho da China e discutir a ficcionalização que existe na história
dos comuns. Talvez porque a própria história é uma grande saga. Espantoso que
um sujeito que tenha realizado Plataforma não saiba disso. Outubro
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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