Amantes (Two Lovers), de James Gray (EUA, 2008)
por Cléber Eduardo

Um cineasta

Há um risco de críticos menos interessados e/ou interessantes lidarem com um cineasta como James Gray, e com um filme como Amantes, como exemplos de um diretor apenas correto e de um cinema convencional calcado apenas no roteiro. Esse risco é alimentado por uma tendência de se olhar apenas a soma de acontecimentos para se extrair uma legibilidade deles. O perigo de se fazer o caminho avesso é tornar-se vazio no formalismo, com um descritivismo estéril e sem condições de amalgamar estilo e os efeitos dele presentes na obra. No entanto, para lidar com um filme como Amantes e com um cineasta como James Gray é necessário colocar estilo e acontecimentos em uma mesma superfície, como fazem diretor e filme de modo magistral, ao encontrar soluções estilísticas integradas às energias humanas mobilizadoras das cenas.

A obra é grande e o cineasta, mais que diretor, é mesmo um cineasta. Não custa lembrar ou informar o contexto original do termo cineasta. Louis Delluc, no final dos anos 10, adorou a palavra, mas com limites. Ele aplicava essa definição apenas aos artistas de cinema, ou, em suas palavras, a criadores e pensadores de sua linguagem, não a quem apenas a praticava como ofício. Cineasta pensa seus procedimentos nos próprios procedimentos. Um pensamento de imagem para uma imagem pensante. Uma imagem que pensa, porém, pensa visualmente. Não pensa em palavras imagetizadas, mas em imagens-sensações. Os cineastas conseguem expressar na superfície da linguagem visual algumas energias e “estados” sensoriais impossíveis de serem analisados na linguagem escrita sem perda do núcleo de sua sensação. Em Amantes, os olhares da mãe para o filho com quem se preocupa, olhares de vigília e não de patrulha, estão entre esses momentos só possíveis na imagem e nas relações entre imagens. Gray é cineasta.

Está certo que, se tomarmos apenas os acontecimentos como nosso guia, veremos, em Os Amantes, uma perda de força em alguns momentos. Problemas menores, de ameaça à verossimilhança. Menores porque, antes do compromisso com a verossimilhança dos fatos dentro de sua organização dramática, há adesão irrestrita a um protagonista – e, por conta disso, sua sensorialidade torna-se a energia condutora da mise-en-scène. É preciso colocar as cartas na mesa e trabalhar em cima da matéria-prima dramática. Temos de cara uma tentativa de suicídio da qual o protagonista é salvo e se arrepende. Nesse momento inicial, já ouvimos uma voz e vemos uma imagem, que, longe de ser objetiva, nos é dada a ver pela subjetiva do personagem. Debaixo da água, estamos com ele; em sua percepção, antes termos acesso a informações objetivas. O convite para nos aproximarmos do personagem é anterior à sua apresentação. É uma questão de princípio.

Esse personagem trabalha em uma lavanderia, é bipolar, terminou um noivado por conta de questões orgânicas e desperta interesse de uma mulher, que é filha do futuro sócio do pai dele. Momentos mais adiante, ele conhece outra moça, sua nova vizinha do andar de cima, por quem logo se interessa. Ele pode vê-la pela janela e usa estratégias de aproximação. Ela tem um amante. Ele vira amiguinho. E transa com a outra, a filha do sócio do pai. Quer uma e tem a outra; quer a loira e tem a morena. A loira, ele vê da janela entre grades. A morena entrou em seu quarto e deitou em sua cama. Toda a diferença está já aí. Mas aquela de quem está distante, andar abaixo dela, a quem vê com seios desnudos entre as grades da janela do apartamento (dela), é aquela que mais aparecerá no filme, e, quando ausente na imagem, colocará sua presença em cena pelo som da mensagem de celular. Som quase onipresente.

Não somos jogados de um lado para outro nessa bipolaridade conceitual do protagonista. A narrativa é sóbria, não taquicárdica. Não vemos fraturas psicológicas ou psíquicas expostas. A dramatização dos acontecimentos também não é apoiada em intensificações sonoras e, quando isso ocorre, com som artificial de vento no alto do prédio onde mora o protagonista, o efeito é expressivo, não emocional, porque, mais que efeito, busca-se uma forma de expressar uma lógica da cena, sem transformar a opção em matemático cultivo da emoção. A emoção está na troca de olhares enquadrados pelo filme, na expressão de um personagem, em seu silêncio, em suas manifestações de ansiedade, mas a câmera de Amantes, nesses momentos, mesmo sendo reivindicada em diferentes ângulos e distâncias para filmar uma sequência, aproxima-se com discrição, sem competir com os personagens, em busca de uma solidariedade sem auto-propaganda nas operações. Se podemos perceber as rimas do roteiro ou seu percurso de construção, a maneira de olhar para e com o personagem, o fato de tudo ser centrado nele coloca em muitas cenas uma presença de vida superior à evidência de organização das vidas.

Não confundamos um método empenhado na maneira mais generosa de filmar uma situação, no sentido de não se cair em um duelo entre instância enunciadora e personagens enunciados, com uma procura por neutralidade do ponto de vista e pacto com a transferência. Amantes está com seu protagonista e essa opção dita quase todos os seus procedimentos. Mas o filme também não tem vergonha de evidenciar operações quando essa evidência for visualmente uma forma de expressão de algo abstrato na concretude da imagem. O núcleo de organização estética é a subjetiva indireta livre, jogo entre terceira e primeira pessoa da câmera, que ocupou muitas linhas das teorizações de Pier Paolo Pasolini. Cinema de poesia era, para o cineasta e ensaísta italiano, a fusão entre filme e personagem. Essa fusão poderia ser identificada na transferência do ponto de vista da narração visual do filme para o ponto de vista do personagem. Nesse momento, o filme enxergaria de modo mais objetivo, de fora do personagem, mas também de modo subjetivo, com um olhar de dentro do personagem para seu mundo. Seu ponto de vista.

Há um momento-chave nessa operação e, se na literalidade da troca de pontos de vista objetivo e subjetivo não estaríamos na subjetiva indireta livre, na lógica da cena essa literalidade vem abaixo. O protagonista acaba de transar com a filha do sócio de seu pai. Ela se prepara para sair do quarto dele. Um plano para ela, outro para ele, cada em seu quadro. Só entram em um mesmo plano quando dão beijinho de despedida. As bocas se colam e se afastam, quase sem estabelecerem contato. Um movimento de cabeça e de olhar do personagem para a direita (nossa direita), direção contrária a de onde saiu sua “amante”, empurra a câmera para a janela, como se saísse da terceira para a primeira pessoa, da objetiva para a subjetiva, do filme para o personagem, até mudar o movimento e dar uma subidinha, até colocar em quadro a janela apagada da vizinha do andar de cima, algo só possível de ocorrer se esse for o ponto de vista da narração (do filme e não do personagem). Não se trata de um plano subjetivo, portanto, porque a câmera não reproduz o olhar do personagem, mas é um plano de subjetividade, porque a câmera expressa o personagem em sua movimentação. Ele tira os olhos de quem acabou de transar e olha em direção à mulher por ele desejada. A câmera gera um movimento para mostrar isso em imagem e fundir-se ao personagem. Nenhum formalismo ou exibicionismo de operações. Ao mesmo tempo, a transparência, como regra, aqui despenca. 

Nessa aproximação íntima e sóbria, a única moradia a qual teremos acesso, sem exceção, é a de nosso protagonista. Apenas o quarto dele e a sala de seu apartamento, onde mora com os país, aparecerá diante da lente e de nossos olhos. Quando ele e a vizinha do andar de cinema se encontram na janela de seus quartos, o ponto de vista será sempre dele e de baixo para cima. A mulher a quem deseja está acima dele. E ele tem de subir a escada do prédio duas vezes para encontrá-la a pedido dela. Em um desses momentos, com muita sutileza, vemos outro sentimento, na construção visual, modificar o espaço. Ele está para beijá-la, outra vez no alto do prédio, e a câmera vai “confinando-os”, tirando das laterais do quadro as saídas para a visão do céu e da cidade, até ficarem empurrados contra as paredes. Quando se beijam, nas bordas da tela, vemos um escape. Um pouco de céu.  

Essa alteração do espaço em quadro, por conta de uma suave mobilidade da câmera, não é decisão aleatória ou para se experimentar uma operação. Pode nos remeter a Samuel Fueller, a Alain Resnais, a cineastas que, ao partir do abstrato, chegam ao concreto da imagem. A operação é regida pelos sentimentos em cena, que oscilam entre o confinamento e a abertura para o mundo, entre a inviabilidade e a possibilidade à vista. E é justamente essa oscilação entre saídas dentro do plano e ausência de pontos de fuga um dos métodos empregados para se trabalhar as modificações de abertura e fechamento de plano. Por que não é com outra coisa que o filme lida: aberturas e fechamentos. Existe uma mulher do passado ainda com força em sua ausência presente, existe uma preocupação da família com cada gesto seu (da mãe em especial, com seus olhares vigilantes, de vigília), existe uma mulher com potencial de harmonia para a vida a dois, existe outra com potencial de dor na intensidade dos encontros e desencontros, existe um negócio de família. Mas essas tensões entre responsabilidade e desejo, no tom e na imagem, não batem a porta quando fecham, nem a arrombam para abrir. Elas apenas estão presentes.

Essas aberturas e fechadas de portas para o personagem tornam-se ainda mais delicadas, nas próprias operações visuais, quando ele volta para seu apartamento na festa de ano novo. A mãe olha-o com amor e solidariedade, com olhar de quem se preocupa com fidelidade e manutenção do segredo, olhar esse ao qual ele retribui pedindo solidariedade. Se não é a visão da mãe que vemos ao acompanhar seu deslocamento, ainda nessa festa de ano novo, será o tom desse olhar solidário o mesmo a manter o enquadramento. Não é outra coisa se não solidariedade que esse protagonista irá reivindicar de nós, também, quando, abraçado à sua provável futura noiva, move seus olhos em nossa direção e em direção aos olhos do filme, pedindo para não o julgarmos covarde ou pragmático em sua decisão, porque estivemos com ele até o momento e não podemos mais nos distanciar dele para avaliá-lo. Seria fácil entender a família, nesse contexto, como uma força de determinação, que coloca deveres acima dos desejos, mas a beleza da sequência final, com suspensão do som e abertura para a música (delicada), mostra a grandeza menos intensa daquelas pessoas ao seu redor, que querem estar ao seu lado.

Amantes é por isso um filme menos confinador na comparação com Os Donos da Noite. Esse amplia o enfoque para além do núcleo familiar, expande as forças de confinamento para a instituição policial e para o mundo com o qual ela lida, trabalha na expansão das energias. Não há renovação de ciclo, mas repetição de um ciclo. Em Amantes, há ano novo no final, onde estão todos os personagens do filme, menos uma mulher, mas há ali um novo estágio, não a repetição de algo anterior. Por haver concentração em um protagonista e na relação dele com sua família, com a família do sócio de seu pai e com a vizinha, os papéis dos personagens tornam-se mais ambíguos, sem suspeitas, sem procura de uma leitura para seus gestos. Porque os personagens, em Amantes, apenas existem quando estão em cena. Apenas, não. Eles existem, e isso é forte. Há uma beleza para além dos significados e interpretações. Esse é um dos motivos pelos quais o filme e seu diretor são dignos de uma atenção mais entusiasmada. E convicta.

Setembro de 2009

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