in loco
Três ou quatro curtas
por Cléber Eduardo
A experiência de ver 30 filmes no Festival Internacional
de Curtas de São Paulo de forma alguma me habilita a fazer uma
análise panorâmica, ou mesmo mais detida, sobre a produção de
2005-2006. No entanto, dentro desse pequeno universo (pequeno
se comparado ao amplo painel da safra brasileira ofertado na programação),
surgem imagens marcantes – algumas novas, outras recorrentes,
ou reincidentes.
Em
meio a câmeras que não têm freio, grandes angulares fetichistas,
obras-enigmas e outras perdidas em seus desafios, olhos e ouvidos
detêm-se, não sem incômodo, em Ariel, de Mauro Baptista
e Claudia Jaguaribe (foto ao lado). Ante sua proposta de autobiografia
confessional, de luto, exorcismo, expiação e redenção, não sem
reinvenção do pai suicida pela primeira pessoa verbal do diretor
e pela iconografia visual do homenageado (sim, é uma homenagem,
sem dúvida), sempre vinculando a síntese biográfica do pai com
a situação política-econômica do Uruguai, país de origem de Ariel
e Mauro.
Dois incômodos. O primeiro é de ordem estética.
Não seria Ariel um filme contado, verbalmente organizado,
sem força visual à altura da potência da narração? Não. Porque
as imagens de Ariel, na verdade, são as imagens da narração,
cuja potência, paradoxalmente, nasce dos engasgos, das falhas
de voz, da incapacidade emocional de, ao lidar com material tão
íntimo para expô-lo a público, manter um padrão de narrador profissional,
cheio de efeitos de dicção. E são as ondulações e inflexões da
voz imperfeita, com sotaque às vezes impossível de ser compreendido
integralmente (como se o diretor se tornasse mais uruguaio no
luto pelo pai), que diferenciam o filme de um texto escrito e
lido, pois a voz é matéria orgânica do humano, torna parte do
corpo o que são signos e significações na linguagem escrita. Ariel
é um curta-voz, sem dúvida.
Outro incômodo: é inegável o desconforto e o constrangimento
de ver emoções de foro tão íntimo serem colocadas à disposição
dos outros, em uma espécie de catarse pela exposição, pelo compartilhamento
da dor com a comunidade, pela organização da memória e pela racionalização
dos afetos, que esbarram em alguma ferida ética não muito clara
(nem para mim, nem para o realizador, presumivelmente). E é desse
limiar entre a franqueza confessional e performance da dor íntima
que Ariel extrai a sua capacidade de ser, ao mesmo tempo,
tão ambíguo e tão fascinante, nos colocando diante de questões
do homem e do cinema que sempre nos levam à uma reflexão mais
detida. Ariel, por caminhos muito tortuosos, tem esse poder.
Entre os momentos mais significativos das três
dezenas de curtas, é imprescindível, dentro desse breve passeio
pessoal pela programação do festival, destacar o balé das mãos
em Um Sol Alaranjado, do co-editor de Cinética,
Eduardo Valente, exibido num panorama especial retrospectivo de
sua carreira, e que continua a reservar pequenos mistérios após
sucessivas e atentas revisões. Talvez por isso as cópias, homenagens
ou reverências que aparecem aqui e ali, em vários filmes
nos últimos anos, não se fundam com a matriz. Falta-lhes esse
senso do mistério, do detalhe, da riqueza contida na minúcia,
em um tecido sonoro construtor de um extra-campo, que se faz imagem
pelo tecido de ruídos, latidos, vozes, com tal poder que há quem
jure, ainda agora, haver um contra-plano na seqüência da janela,
com pai e filha olhando a rua, “vendo crianças jogando bola”,
segundo me narraram.
E
há o estranho mundo de O Monstro, também de Valente, agora
em registro fora de casa, predominantemente. Não é um estranhamento
por conta do que acontece dentro do quadro, ou mesmo pelo que
se apreende da sucessão de planos. O estranho aqui é o mundo cinematográfico
tal qual é organizado em cada plano, em cada corte, na escolha
de se fazer a passagem de um fragmento a outro, no começo tendo
a imagem do policial como ponto de referência de toda elipse (sai-se
dele, chega-se a ele), depois incorporando fragmentos de depoimentos
como tecido sonoro dissonante, com efeitos menos integrados à
imagem que os obtidos por Um Sol Alaranjado. Em O Monstro,
essa solução sonora, acima de tudo, aponta para o “conceito” (uma
narrativa paralela ou uma narrativa interna), para uma intenção,
para uma proposta de cinema – e, isso feito, perde-se um tanto
de experiência real, mais próxima dos personagens, porque essa
talvez seja a intenção.
Mas o estranhamento é maior que esse uso do som.
Ele também está na única seqüência de diálogo do filme, composta
de enquadramentos declaradamente compostos, decupados com rigor,
com alternância de ângulos, mantendo-se a câmera na altura de
quem está sentado, cortando a cabeça de quem está de pé, com a
luz “ostensiva” projetando-se sobre os atores, deixando-os entre
luzes e sombras (um efeito arriscado, por sugerir leituras dicotômicas
e vinculações fáceis ao expressionismo alemão). Por que seria
estranha essa seqüência? Talvez porque pareça fazer parte de um
outro filme, de um outro universo, de um outro projeto estético,
certamente com mais espaço para o fotógrafo (Mauro Pinheiro Jr),
para a performance da luz e dos enquadramentos, fazendo da conversa
quase uma cereja do bolo na moldura cênica.
Mas onde estará esse estranhamento para além dessas
situações específicas? Está no tom geral do universo construído
por essas situações e outras não levadas em conta nesse texto.
Há um movimento mais ou menos claro de aproximação com uma organização
de eventos, com uma coleta de informações diegéticas, com sentido
razoavelmente límpido. No entanto, há também uma aversão à clareza
didática, um cultivo do rarefeito, da omissão, da revelação pela
parte, pelos fragmentos, que transforma a narrativa em um percurso
de evidências e de enigmas, de sinais e de ausências, sempre com
um olhar aparentemente consciente demais dos padrões do mundo
cinematográfico elaborado – o que, se por um lado faz uma diferença
e tanto dentro da produção corrente, por outro pode deixar o conceito
limitar o que se pode extrair dele em forma audiovisual orgânica.
De qualquer forma, O Monstro é o que se chama de filme
único, que, se não reivindica entusiasmo, insere a permanência
de suas situações na memória.
Não
poderia deixar de mencionar a originalidade do sampler paródico-denúncia
organizado no fluxo pé no acelerador das imagens de Acossadas.
Segundo as próprias autoras, o filme é inspirado em um sonho que
acometeu uma delas após ver uma sessão de A Paixão de Jacobina,
fazendo da “retomada” do cinema brasileiro desde os anos 90 uma
piada-pesadelo. Não sem descarado tom de desprezo pela produção
contemporânea, o curta encontra refúgio no cinema de autor moderno,
iconografado na imagem de Ruy Guerra, eleito como salvador do
momento histórico no final debochado e simultaneamente bonito
em sua homenagem sincera e cândida (na imagem), sempre com posicionamento
claro em relação ao entorno audiovisual. Não uma visão saudosista,
de encontrar nos anos 60 uma resposta para os anos 90 e 2000,
mas um olhar cômico atrás de alguma iconoclastia, rebeldia, energia,
sacudindo a poeira e o formol da maioria das propostas.
Os novos filmes do pernambucano Camilo Cavalcanti
(Rapsódia para um Homem Comum) e do paraibano Marcus Villar
(O Meio do Mundo), realizadores já abraçados pelos prêmios
e pelo reconhecimento de seus pares, não ficaram à altura da expectativa.
Se o de Villar opta por uma poesia nem sempre sedutora pela maneira
de por em cena a iniciação sexual no sertão, filmando com excesso
de véus a experiência real, de modo a injetar nela um lirismo
da imagem, o de Cavalcanti, apesar de mais ambicioso e melhor
sucedido em suas escolhas, lambuza-se com alguns formalismos excessivos,
que, sem necessariamente potencializar o material, parece levantar
a mão, acima dos acontecimentos mostrados, para mostrar o talento
da realização.
Por que destacá-los?, pergunta o leitor, pergunto
eu mesmo. Primeiro porque na pequena programação a que tive acesso
os dois se evidenciaram por exclusão. Segundo porque os realizadores
têm dado mostras, com seus curtas anteriores, de terem a pegada
do cinema – sobretudo uma preocupação de tratá-lo como linguagem,
de escolher traçados nem sempre fáceis de administração, com senso
de ambição estética em suas experiências. Por isso, um e outro,
se geram algum desconforto por algumas tomadas de posição em relação
à imagem, também geram alívio, pois, como os outros filmes aqui
enfocados, abrem a maquininha do cinema e tentam olhá-la por dentro.
Projetos de risco na relação com o espectador, na maneira de ofertar
suas sensações e formas, mas projetos estéticos antes de mais
nada, seja pela irreverência (Acossadas), pela gravidade
do tom (O Monstro), pela ambigüidade (Ariel) ou
pelos “desacertos com talento” (Rapsódia para um Homem Comum
e O Meio do Mundo).
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