in loco - cobertura do É Tudo Verdade

48 (idem), de Susana Sousa Dias (Portugal, 2009)
por Juliano Gomes

Arquivo morto

48 é composto pelas fotos tiradas pela P.I.D.E., a polícia do regime fascista português, e por depoimentos atuais dos presos políticos em voz over – cada um sobre sua respectiva foto. Poucas imagens por personagem, em geral: uma frontal e uma lateral. O caminho escolhido parece ser a busca do “resultado de um encontro”, tanto na inscrição fotográfica, quanto nos depoimentos “anacrônicos” sobre estas imagens.

As fotos são feitas pelo antagonista. Inimigo dos personagens e, muito claramente, da diretora. São imagens que levam a marca de um embate, onde os personagens, que sofreram uma ampla variedade das mais profundas agressões, têm uma possibilidade de reação. Na hora deste clique, há uma partilha onde até os regimes ditatoriais têm dificuldade de se sujeitar. Na inscrição na emulsão fotográfica, há a possibilidade de revide, de uma redução da sujeição, no campo da imagem.  Naquela fração de segundo, condenada à eternidade, eles têm “o poder de fazer a cara que quiser”, como diz uma das melhores personagens, que estampa um sorriso tão triunfante quanto dolorido. Nela, instaura-se uma ambigüidade que talvez seja a mais incisiva oposição e resistência que se possa fazer à lógica do fascismo: sem apagar ou disfarçar o sofrimento da tortura e do acúmulo das noites sem dormir, mas entregando-se à documentação do regime de Salazar como um enigma. Talvez não se possa sujeitar um rosto.

A fala atual desses personagens se ocupa principalmente em detalhar os horrores sofridos por cada um. As imagens lhes suscitam a circunstância e os pormenores das fotografias: há quantos dias não dormiam, qual era a técnica de tortura dos dias anteriores, como foram levados das suas casas até o cárcere, como foi a reação dos seus entes mais próximos à prisão ou ao seu retorno. 48 opta por tentar achar a história “por trás” daquelas imagens, o segredo que os portões da ditadura guardaram. A lógica é da revelação, da busca da verdade. E, assim, a força de cada um daqueles fotogramas acaba por se esvair.

O filme se inscreve numa longuíssima tradição do documentário de “abertura de arquivos”, de trazer à tona as verdades ocultadas pelos regimes autoritários. O foco aqui é nos “fatos” que as fotos não mostram e que precisam ser sabidos. O objetivo é dar conhecimento, é denunciar, através dessas testemunhas que sofreram na carne trais atrocidades, o horror causado por um regime político. Susana Dias quer trazer este passado à tona, e aposta justamente na exposição das “desumanidades” lembradas por seus personagens ao se deparar com as fotos de si mesmos, décadas após aqueles dias obscuros. Dessa maneira, 48 trata o passado como algo imóvel, que permaneceu por décadas intacto, esperando por ser “revelado”. Mas o tempo da memória e da lembrança não é outro senão o do presente. É esse presente, e como ele requisita aquelas imagens, que é esquecido. Não é a ele que as imagens dizem respeito. É quase como um filme que chega “atrasado” à história, pois quer trazer um passado como ele “foi”, revelando um sistema político através de suas práticas.

A memória pessoal aqui é funcional, ela “recupera” o que aconteceu. Diante da precariedade das imagens, do pouco que elas mostram, a opção é por buscar os “fatos que elas escondem” e concentrar-se nessa factualidade, não nos esconderijos. Coloca-se, assim, uma relação de poder: um lugar de fala muito sólido, recoberto de uma aura de “incontestabilidade” dessas testemunhas, onde o discurso se põe num lugar de extermínio das dúvidas e ambigüidades. Mesmo quando não há imagens – no caso dos negros, que não foram fotografados pelo regime – a busca é pelas razões, pela claridade, não se permitindo restos ou desvios. O efeito deste grande intervalo de tempo entre as fotos e os depoimentos, e o possível grau de incerteza que ele geraria no presente, é ignorado. A narração aqui é a reapresentação de algo que precede o discurso. Nesse processo, 48 busca suas forças, e é justamente aí que ele se perde, fazendo cessar o jogo entre as imagens, suas ligações possíveis com o presente por vir, expondo para nós apenas um arquivo morto.

Abril de 2010

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta