4
Meses, 3 Semanas e 2 Dias (4 Luni, 3 Saptamani si 2 Zile), de Cristian Mungiu
(Romênia, 2007) por Cléber Eduardo
Crueldade
na observação
Quem estava se habituando com a dramaturgia
e a estética do “tripé quebrado” dos filmes romenos recentes, conforme foi
colocado na cobertura do Festival do Rio de 2006, pode estranhar a dramaturgia
e a estética do “plano-sequência observacional” de 4 meses, 3 semanas e 2
dias, de Cristian Mingiu, que tanto ganhou a Palma de Ouro do Festival de
Cannes, quanto provoca o desprezo convicto de alguns críticos. Há quem acuse o
filme de ser apelativo, há quem veja sadismo no enfoque. Mingiu lança um olhar
cruel para as situações, sem redenção/superação para as personagens, com disposição
de trazer sinais de determinada sociedade (a romena), em determinado momento histórico
(os anos 80, ditadura de Ceausescu), mas vivenciados pela experiência individual
da protagonista, Otilia (Anamaria Marinca). É na atmosfera de estado policial,
burocratizado, porém falho nas duas instâncias, que essa Romênia se insinua, sem
ser explicitada, sem se tornar questão superior a experiência pessoal de Otilia. De
uma geração que, na adolescência ou início da juventude, testemunhou o fim de
um período (o do regime comunista cheio de “nãos”), Mingiu volta a esse período,
como outros contemporâneos seus, mas sem querer exorcizá-lo com humor, ao contrário
de A Leste de Bucareste , de Corneliu Porumboiu, ganhador da Câmera D Or
no Festival de Cannes de 2006, tampouco tratá-lo com alguma poesia na aproximação
com os personagens, tomando caminho diferente de Como Festejei o Fim do Mundo,
de Catalin Metulescu. Ao contrário desses dois filmes (e ao contrário também de
Caindo de Amor, de Tudor Girgiu), não se vê a anarquia narrativa, tampouco
a liberdade de organização, evidências de rebeldia diante de regras. Mingiu
é mais duro e mais rigoroso. A narrativa minuciosa em sua observação, cirúrgica
em seu olhar, assim como seca e grave – certamente em dívida com Robert Bresson
e com os irmãos Dardenne, com Mouchette e Rosetta, mas com uma outra
dinâmica e encadeamento, certamente menos taquicárdica que o batimento dramático
dos Dardenne, também menos transcendental no sofrimento que em Bresson e Rossellini,
para os quais a dor carrega algo de sagrado e de vocação. Se trabalha na conciliação
de uma dramaturgia do limítrofe com uma observação de cada gesto, elevando o aparente
banal a uma condição exasperante, vê-se uma busca pelo controle do trem no trilho
– de uma certa forma exercendo vigilância sobre cada passo de Otilia, como se
reproduzisse com mais amplitude e detalhe o olhar do Estado-patrulha. A diferença
é que essa patrulha, em vez de ser de Estado, é um estado do olhar de Mungiu.
O título se refere ao tempo de gravidez de Gabita (Laura
Vasiliu), a amiga de Otilia. Elas dividem um quarto. São jovens, universitárias.
Pouco sabemos delas além de alguns indícios de uma situação financeira sem folgas.
Como a gestacão em andamento é indesejável, Otilia, jamais abandonada pela câmera,
estende a mão à amiga. Providencia o hotel onde o aborto será realizado, leva
lá o aborteiro, consegue parte do dinheiro, paga outra parte com o corpo e, durante
o aniversário da mãe de seu namorado, quando a câmera não sai de seu rosto enquanto
os convidados da “sogra” falam a mesa, ela só pensa na amiga no hotel. Mungiu
filma quase o tempo todo com a câmera na mão, mantendo, nesse sentido, vínculo
com a estética do tripé quebrado, seja quando a câmera não caminha, seja quando
sai atrás de Otilia – menos para tematizar o próprio plano-sequência como conceito
estético ou como fetiche técnico, mais para tentar apagá-lo em seu observacional,
de modo a manter o efeito de um olho que não desgruda de seu interesse. Por essa
razão, quando deixa ela se afastar um pouco, trazendo mais do espaço para o quadro,
na verdade somente para esse espaço potencializar a composição do plano, essa
câmera destoa. Passa a buscar efeitos plásticos. Também
por essa mesma razão, pela quebra de um fluxo que parece seguir naturalmente,
destoam os efeitos dramáticos, empregados para se salientar algo. Pode-se perceber
esse deslocamento quando o aborteiro troca parte do pagamento por sexo ou quando
ao final Gabita olha o cardápio do restaurante do hotel após ser servida com um
prato cheio de carne. O sexo como pagamento nos mostra o pior de um homem que,
até então, vinha agindo distante do estereótipo, mostrado para isso em momento
de preocupação com sua suposta mãe. Mais que isso, porém, o sexo parece estar
lá, acima de tudo, para ferir a dignidade das moças. Já o olhar perdido para o
cardápio, diante da carne, é opção óbvia e banal demais. Para a ocasião, pelo
menos.
Mais pertinente é a crueldade de Mungiu na maneira
de mostrar determinadas situações. A explicação do processo do aborto e de seus
efeitos/riscos, ministrada antes da retirada do feto, remete ao ritual mórbido-estatal
de Não Matarás, de Kieslowski, que por sua vez poderia remeter à primeira
entrada no quarto de hotel de Nana em Viver a Vida, de Godard, quando a
câmera e os olhos dela enquadram uma toalha para fins pós-sexo antes de sermos
bombardeados por dados e pela cultura da prosituição. Mungiu não quer poupar o
espectador, não deseja aliviar nossa percepção porque, se a câmera está com Otilia,
o aparato nos coloca como testemunhas do vivido e do visto por ela – inclusive
o feto. Outubro de 2007 editoria@revistacinetica.com.br
|