ensaios - especial retrospectiva 2007
Quando as palavras cantam, as imagens deliram por
André Brasil Aproximar
os filmes Aboio, de Marília Rocha, e Andarilho, de Cao Guimarães
(ao lado), pode soar arriscado, ou mesmo improdutivo. Afinal, as duas obras são
bem diferentes em propósito e resultado, tendo sido produzidas, inclusive, em
momentos distintos (apesar de somente ter entrado no circuito comercial neste
ano, Aboio é de 2005). E pior: insistir nesta aproximação poderia, a contragosto,
contribuir para reforçar o rótulo – a meu ver equivocado – de uma pretensa “escola
mineira” de cinema. Mas, se, ainda assim, ensaiamos essa tarefa, é justamente
para ver o que, nos filmes, há para além deles mesmos.
Uma
aproximação mais imediata passaria pela intenção poética e plástica na captação
e edição das imagens, presente em ambos os documentários. Ela passaria também
e necessariamente pela a trilha sonora, sempre cuidadosa, criada pela dupla O
Grivo. Gostaria, contudo, de seguir outro caminho, um pouco mais enviesado, menos
explícito, mas que nos interessa de perto: ele nos permite reconectar os filmes
ao mundo, ou seja, nos deixa entrever, nas experiências residuais que nos mostram,
algo fundamental – e nada acessório – para a compreensão do mundo hoje. Desde
já, de que se trata? Mais do que pelos produtos materiais,
o capitalismo contemporâneo, sabemos, se interessa pela linguagem. Trata-se de
um capitalismo semiótico, cognitivo, estético, que nos expropria a linguagem,
sua força inventiva, sua capacidade de criar experiências possíveis, de imaginar,
prever, lembrar, e recriar o mundo. São muitas as formas dessa expropriação e,
a todo momento, elas atuam na mídia, no marketing, na publicidade... todas estas
atividades, em maior ou menor grau, operam sobre os discursos e as imagens dissociando
linguagem e experiência cotidiana. Nesse universo de trânsito de informações e
imagens, muitas das vezes, temos a sensação de que a linguagem não nos pertence
mais, de que aquilo que nos dizem e o que dizemos é alheio a nossa experiência
concreta. Como se, em sua extrema abstração, ela tivesse perdido a gravidade e
se desprendido dos corpos e de suas vivências. É em um único processo que nossos
gestos se automatizam e nossa linguagem se abstrai de nós mesmos. Essa
dissociação é necessária para que a linguagem se torne fluida, esperta, ágil,
pronta a circular pelas redes midiáticas e digitais. A experiência cotidiana,
com suas nuances, suas durações, seus movimentos lentos e suas contradições, deve
ser reduzida, aplainada, roteirizada, tornada informação. No caso que nos interessa
aqui, antecipamos, a forma dessa expropriação é o estereótipo, o clichê. Afinal,
ao mesmo tempo em que reduz a complexidade da experiência, de maneira a torná-la
facilmente reconhecível, o estereótipo, como abstração extrema da linguagem, se
desprende dessa mesma experiência, ganhando poder de circulação. Expropria-se,
assim, aquilo que, na experiência da linguagem, pode ser rapidamente assimilado
(e consumido!). TranseVoltemos logo
aos filmes. Aboio e Andarilho, cada qual à sua maneira, lidam, repetimos,
com experiências residuais: no primeiro, são os vaqueiros do sertão brasileiro
e seu canto de tanger o gado, de nome aboio. No segundo, são andarilhos, que caminham
à margem das estradas do país. Em ambos eles perambulam, transitam, se deslocam.
Trata-se sempre de um deslocamento em que o embate com a geografia está presente:
é por isso que a paisagem natural, a terra, o asfalto não são mero cenário, mas
personagens dos filmes. Por isso, também a luz (excessiva ou escassa) não é acessória,
mas um recurso fundamental. Por fim, é em função deste embate que o tempo, a duração,
são matérias-primas da qual se constituem as duas obras. Ensaiemos,
então, a seguinte hipótese: para além dos vaqueiros e dos andarilhos, mas estreitamente
ligada a eles, é sua linguagem a personagem principal dos documentários. Aqui,
ela ganha seu sentido amplo: as palavras, as sonoridades, as materialidades, os
rostos, as roupas, o corpo e sua complexa gestualidade. Não poderia ser diferente:
Aboio confere uma atenção especial ao som, à trilha sonora. Os momentos
menos didáticos do filme – aqueles em que as falas se desgarram da imagem, em
que o áudio se torna polifônico – são também os mais belos e intensos. Ao performar
sua experiência e ao cantar o aboio, não é exagero dizer que alguns personagens
são tomados pelo transe, levando a linguagem ao limiar do inteligível. Ali, corpos
e vozes são indissociáveis da natureza árida da caatinga e do gado que eles tangem.
Não que não tenham consciência de que estão em um filme: eles encenam, performam,
fabulam, enquanto as palavras se fundem à música. O transe
é um estado de passagem, que nos leva à fronteira entre o humano e o animal, o
artifício e a natureza, entre a consciência e a inconsciência, o ruído e a linguagem.
Ali, neste interstício, as palavras tornam-se música, hesitam, como diria Paul
Valery, entre o som e o sentido. Em alguns momentos do filme, o canto, o aboio
parece tomar conta de tudo, dos corpos, das falas, da paisagem, do documentário,
do espectador. Em Aboio, as imagens são mais potentes
quando saem do controle, quando conseguem entrar, mesmo que por um momento, em
transe. Quando correm como bichos, quando se embrenham no meio da vegetação, quando
recebem um sol muito forte e se desestabilizam. Diante da força da natureza, dos
animais e do canto, as imagens se descontrolam e, em alguns momentos, nos ligam,
de maneira nova (e sutil), ao cinema de Glauber (conexão foi muito bem ressaltada
por Cezar Migliorin em seu blog). Aboio
esboça momentos didáticos, explicativos. Sua força, no entanto, reside em sua
impotência: naquilo que ele não consegue explicar nem controlar. São momentos
em que a linguagem dos vaqueiros, extremamente ligada à sua experiência cotidiana,
ao seu corpo e à natureza que mora dentro e fora, se torna música. Ao documentarista
resta recusar a explicação e aceitar ser tomado pelo canto e pela performance
dos personagens. DelírioEm Andarilho,
eles deliram. A fala escapa, se desgarra para regiões em que a linguagem se rarefaz.
Andar e delirar e, ao fazê-lo, falar uma linguagem errante, que torneia os assuntos
e objetos, mas que se desprende, escapando sem cessar ao entendimento (ao mero
entendimento). Aqui, também as imagens deliram. Ganham uma temporalidade distendida,
dilatada. Imagens-miragem, nascidas do encontro com o calor do asfalto e da terra
vermelha. O
filme cria um ambiente distorcido e anamórfico, próximo à irrealidade, uma paisagem
que, de tão sublime, ganha ares de artificialidade. Em algumas passagens do filme,
os personagens parecem se desprender de sua realidade cotidiana e se tornam mágicos,
bruxos, entidades. O cotidiano delira e a estrada – lugar de circulação de carros
e mercadorias – faz circular também o mistério. Aqui, as pessoas andam: a câmera
é fixa. A opção da fotografia condiz com esse um nomadismo difícil, árido, custoso.
Os personagens do filme carregam seus pertences, empurram sua casa. Mas esse peso,
nascido do embate entre o andarilho e a estrada, se rarefaz no delírio da fala
dos personagens e das imagens do filme. Assim como o transe,
o delírio não é um discurso louco, inconsciente, irracional. Ele leva a linguagem
ao limite da consciência, ao limite do entendimento. Ao fazê-lo, amplia estes
limites: do cognoscível e da própria linguagem. A câmera fixa, atenta e afetiva,
de Cao Guimarães nos mostra a linguagem em sua forma pura, que é, paradoxalmente,
sua extrema impureza: a substância heterogênea dos sons, do balbucio, do grito,
do gesto, da performance, do esforço, a substância do silêncio. A linguagem em
seu estado de esboço, em seu limiar, entre a cacofonia e o sentido. Esta linguagem
só pode ser a do delírio, mas um delírio que é a própria realidade, o delírio
da experiência, seu lastro. Em meio a esse ambiente tão próximo e tão estranho,
um dos andarilhos passa em frente à biboca de beira de estrada: “Real Bar” é o
nome. Manter o mistérioVaqueiros
e andarilhos não são excluídos da nossa sociedade, como diria a crítica
mais redutora. Eles são incluídos, estão dentro, ou mais precisamente, são incluidos
pela exclusão. Perambulam em uma zona de indiscernibilidade entre o dentro e o
fora. Seu trânsito os leva à margem, à fronteira: fronteira social, fronteira
da linguagem. Sua entrada na política, na polis, é tão difícil quanto necessária:
esse discurso no limite do cognoscível – taxado de inculto ou de louco – é o que
permite levar a linguagem ao seu estado bruto, musical, gestual, estético. Assim
o fazendo, mais do que qualquer discurso científico, canto e delírio explicitam
os seres de linguagem que somos. O capitalismo também delira.
Sua racionalidade é tão aguda quanto delirante. Mas, trata-se de um delírio que
opera, repetimos, a dissociação entre experiência e linguagem. Palavras e imagens
se desconectam da experiência cotidiana, para ganhar poder de circulação. O capitalismo
também é nômade. Mas, o seu é o nomadismo líquido da informação. Diferente é a
perambulação de vaqueiros e andarilhos. Com eles também a linguagem circula: ela
caminha, trota, gesticula, se desgarra. Mas, este é um nomadismo árido, sempre
indissociável daqueles que a experienciam. A linguagem, neste caso, está colada
ao corpo, aos gestos, à paisagem, à experiência sensível. Longe da abstração das
gramáticas e dos manuais técnicos, ela delira, canta, entra em transe, fundindo,
em um só corpo, os gestos, as palavras, a natureza, os mitos. Por isso, a experiência
– bruta, lenta, distendida, misteriosa – de vaqueiros e andarilhos é difícil,
inapreensível, para o capitalismo turbinado. Por isso, a mídia precisa tratá-los
como excluídos, como estranhos, como “outros”. Seu canto e seu delírio só pode
aparecer na forma redutora, ligeira, facilmente assimilável, do estereótipo. Os
filmes Aboio e Andarilho são tão melhores quando mostram esta ligação
entre ambiente natural, experiência e linguagem, como indissociáveis. E quando
conseguem, antes de explicar, explicitar a impossibilidade de fazê-lo. Ambos os
filmes mostram experiências “residuais” (usemos, agora, as aspas). O que os torna
contemporâneos, atuais, é sua atenção à linguagem. Essa parece ser a tarefa do
documentário hoje: se atentar para as várias formas da linguagem, as maneiras
como ela nos é expropriada. Mostrar, por outro lado, como a linguagem pode tornar-se
transe, canto, delírio e, longe dos clichês e estereótipos, guardar o seu mistério.
Janeiro de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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