in loco - cobertura do Festival do Rio
Percurso de Acidente
por Eduardo Valente
Isso não é uma crítica de Acidente, filme
de Cao Guimarães e Pablo Lobato em exibição na competição de documentários
da Première Brasil. Porque crítica implica a capacidade de elencar
argumentos e articular um discurso, permitindo ao leitor, a partir
deste processo, uma posição mais vantajosa (embora não necessariamente
melhor) para se posicionar ele mesmo sobre a obra em questão.
Mas o caso é que quem precisa de ajuda aqui é o crítico.
Não porque Acidente seja confuso – ao contrário
ele é cristalino. Mas, talvez este seja o problema: ele é cristalino
demais para que nosso olhar turvo pelo excesso de signos, significantes
e significados da linguagem audiovisual consiga enxergar com clareza
a imagem que se forma ao longo de sua projeção. E é assim, por
sua cristalina presença na tela, que o filme se torna automaticamente
enigmático, quase impossível de destrinchar – pelo menos na primeira
visão, que é tudo que podemos dar ao filme em meio a um festival
de cinema (curioso que esta foi a mesma primeira impressão que
me deixou no Festival do Rio do ano passado Aboio, de Marilia
Rocha, também produzido pela Teia, co-produtora de Acidente
– e que, na revisão futura, se revelou obra maior).
Por isso, um primeiro texto de reação ao filme não pode se dar
ao luxo das certezas da crítica “compreensiva”. Pede que seja
(e se assuma) isso: um primeiro texto, ainda um tatear no escuro
– que, aliás, parece ser o mesmo dos realizadores ao começarem
seu filme, buscando algo no mistério das imagens que não se dão
a ver completamente (é um grupo de pessoas parada se abrigando
da chuva aquilo que vemos com as luzes dos faróis? será que vemos
mesmo a palavra “convívio” se formar fantasmagoricamente na parede
atrás daquelas pessoas?).
Não se dar a ver completamente – esta é a chave
de Acidente. Cada uma de suas seqüências (são vinte no
total, cada uma passada em uma diferente cidade do interior de
Minas Gerais, todas de nome extremamente poético) desafia o olhar,
e a audição do espectador (mais uma vez, a edição de som e mixagem
do filme ficam a cargo dos magos do Grivo, responsáveis pelo som
da maioria dos melhores filmes mineiros recentes). Nenhuma delas
se basta, mas todas elas são completas. Difícil saber se
sua absurda simplicidade esconde a chave de sua profundidade,
ou se sua enigmática opacidade joga fumaça sobre uma clareza absoluta
– exatamente pela tendência natural de se buscar o encadeamento
lógico, de se encontrar a chave de decifração das obras na sua
estrutura narrativa ou na permanência do seu tracejar formal.
Pois em Acidente, nenhum dos dois basta:
sua estrutura não se baseia num caminho dado, pois se é documentário
(como diz a classificação), o é cheio de dúvidas – pois nem suas
imagens e sons nos “informam” sobre nada exatamente, nem conseguimos
ter certeza do limite eventual entre o encenado e o capturado.
Por outro lado, também não nos dá a facilidade de se basear na
negação de um caminho: se pensamos entendê-lo como ilustração
dos nomes das cidades, logo ele nega essa simplicidade; se o vemos
como projeto que se opõe aos caminhos “tradicionais” do documentário,
logo surge uma entrevista, um “evento” (no caso, um rodeio), um
plano geral. Para cada imagem, só parece haver uma regra: a de
que não há regras. Há apenas a imagem: há a câmera e há um mundo
frente a ela. Se entre eles, algo se dá, se pela existência do
dispositivo (lentes, iluminação, efeitos), a imagem “documental”
se revela, então que assim seja.
Isso não é, portanto, uma critica de Acidente.
Pois, filme baseado em um poema, ou poema baseado em um filme,
ele não se presta a este caminho – ao menos não assim, de sopetão.
Pois se demora a aceitar o jogo que Acidente quer jogar.
E quando o espectador perceber isso, talvez seja tarde demais
para que ele se entregue – como o filme requer que o faça. Nada
demais nisso, aliás: só se intensifica o desejo de experimentá-lo
de novo.
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