A Criança (L'Enfant), de Jean-Pierre
e Luc Dardenne
(França/Bélgica, 2005)
por Leonardo Mecchi
A sublime concisão dos Dardenne
Os irmãos Dardenne são donos de um estilo peculiar
e inconfundível: minimalismo na construção das cenas, ausência
de trilha sonora, câmera na mão, na altura dos olhos e próxima
dos personagens. Um modo radical e sem concessões de filmar, que
leva muitos de seus detratores a questionarem o limite entre a
coerência e o comodismo em seu cinema. O fato é que, em suas obras,
essa forma está a serviço do filme e não o contrário. Uma forma
de filmar urgente, honesta, ética e libertadora.
Em A Criança, mais recente filme de Jean-Pierre
e Luc Dardenne, pode-se notar uma pequena mudança no trato com
a câmera em relação a seus filmes anteriores – planos mais abertos,
uma câmera mais estável, em busca dos corpos e gestos de seus
personagens –, mas essa não é a mudança mais significativa no
filme. Tendo iniciado suas carreiras com duas décadas de documentários
sobre trabalhadores, pela primeira vez desde A Promessa
um filme dos irmãos Dardenne não começa em um ambiente de trabalho.
Em A Criança, essa não é mais uma questão fundamental (“trabalho
é para otários”, nos diz o protagonista), uma vez que as ações
de Bruno não são ditadas pelo desemprego ou por serem sua única
possibilidade de sobrevivência. Não estamos aqui no campo da necessidade,
mas no da moral (ou de sua ausência).
Assim como os jovens de A Concepção de
José Eduardo Belmonte (para ficar na comparação com outro filme
recente que trata de uma juventude desesperançada através de seus
princípios morais), Bruno vive o instante, atendendo seus desejos
imediatos sem se preocupar com o futuro ou com o amadurecimento.
Entretanto, diferentemente daqueles jovens, Bruno não faz disso
uma pseudo-filosofia transgressora, mas age de acordo com seus
instintos. Enquanto as ações dos brasilienses são propositadamente
imorais (uma vez que eles têm consciência de seus atos e suas
conseqüências e buscam esse choque com a sociedade), as de Bruno
são praticamente amorais. Um dos personagens mais ambíguos do
cinema dos Dardenne, Bruno não possui uma moral própria, mas uma
moral externa a si. Ele não consegue medir a gravidade e as conseqüências
de seus atos senão através da reação que causam em seus próximos.
É por isso que é tão difícil para o espectador prever o que Bruno
fará no momento seguinte e, ao mesmo tempo, tão verossímil quando
ele diz – após o colapso de Sonia, sua namorada, ao saber que
ele havia vendido seu filho – “Mas o que foi que eu te fiz? Pensei
que poderíamos fazer um outro...”
O que torna A Criança um trabalho tão forte
e belo é o fato dos diretores jamais julgarem seus personagens,
observando-os ao invés disso com imenso interesse e carinho ao
longo do filme. O que interessa aos Dardenne não é entender como
Bruno pôde fazer o que fez mas, uma vez feito, se ele pode ser
redimido. Como em todas as suas obras de ficção, o que está em
jogo é a capacidade do ser humano de perdoar e, para tanto, acompanhamos
a trajetória de personagens infelizes ou marginalizados que, com
a ajuda de outro ser humano (a imigrante africana em A Promessa,
o colega de trabalho em Rosetta, o assassino do próprio
filho em O Filho ou Sonia em A Criança), conseguem
atingir alguma forma de redenção.
Como nos filmes anteriores, há em A Criança
um final em aberto que, embora represente uma esperança para seus
personagens, deixa sem resolução seus principais conflitos. Se
é possível que Bruno tenha amadurecido e que haja um futuro para
ele com Sonia, não sabemos como será a vida desse casal, como
resolverão suas dívidas e se irão assumir suas novas responsabilidades
enquanto adultos. Apesar disso, após a ausência da mãe e o pai
trambiqueiro de A Promessa, a ausência do pai e a mãe alcoólatra
de Rosetta e a ausência do filho e os pais separados de
O Filho, os Dardennes apontam com o final catártico de
A Criança – Bruno e Sonia chorando e apoiando-se um no
outro (literalmente) como sinal de uma última esperança – para
a possibilidade, pela primeira vez em sua obra, de uma família
plena e funcional. Como de costume na obra dos irmãos belgas,
esse pequeno detalhe é repleto de grandes significados.
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