Um Método Perigoso (A Dangerous Method),
de David Cronenberg (Canadá/Alemanha/Reino Unido/Suíça, 2011)
por Fábio Andrade

RaniaComédia da superfície

Há algo de extremamente desconcertante no desvio de rumo que David Cronenberg  realiza neste Um Método Perigoso, filme fadado a insatisfazer as buscas auteristas e o apego às aparências das sensibilidades particularistas. Pois Um Método Perigoso não é exatamente um desvio pela forma que ele supostamente se distancia das imagens “típicas” que se convencionou esperar dos filmes de Cronenberg, para todos os efeitos, o cineasta extremo mais bem aceito pelos cátedras da grande arte. De fato, tais extremos de deformação, viscosidade e maleabilidade do corpo humano já vinham sendo lentamente solapados de seus filmes há algum tempo, em especial em Spider, Marcas da Violência, Senhores do Crime e mesmo M Butterfly. O que Um Método Perigoso de certa forma cristaliza é que essa manipulação do corpo para o cinema tinha intenções literais, funcionando apenas como manifestação epidérmica de questões mais profundas que serão encaradas aqui com franqueza e frontalidade. Em toda aquela explosão corpórea e sensual de seus filmes, Cronenberg, como todo grande artista, se colocava apenas como um inquisidor da natureza humana.

Não é à toa, portanto, que neste novo filme ele vá a um dos últimos marcos históricos onde o homem se ocupou de questionar sua própria natureza, por chaves até então inexploradas: o surgimento da psicanálise. A princípio, não há nada de particularmente novo neste recorte. Transfer, o primeiríssimo trabalho de Cronenberg no cinema, já tratava da relação entre um analista e seu paciente. Mas Um Método Perigoso volta à história ciente da necessidade de protagonizá-la com figuras reais (Freud, Jung e Sabina, sua paciente, amante e autora influente, mas relegada a uma breve nota de rodapé nos escritos de Freud), mantendo-se fiel a todo o vastíssimo relato que as cartas trocadas entre elas deixaram como documentação. Há, portanto, uma consciência aguda de que aqueles vultos históricos e tudo que os interessava já é suficientemente provocador, e que para se capturar seu espírito basta olhá-las com justeza e inquietação.

RaniaMas, mais do que isso, há um recorte temporal preciso que, esse sim, revela bastante do olhar de David Cronenberg, situando a história no período pré-espiritualista de Jung, em que a psicanálise ainda se esgueirava da metafísica para tentar compreender a condição humana passando necessariamente pelo corpo – carne, sexo e excrementos – princípio que conecta o momento vivido pelas personagens ao olhar de Cronenberg. Pois o que é o corpo em seu cinema (e talvez em todo o cinema) que não uma tela onde se manifestam os mais íntimos desejos de suas personagens? Um Método Perigoso começa com um plano violentíssimo, onde Sabina (Keira Knightley) tem uma crise de histeria com o rosto em primeiro plano, próximo à lente da câmera. Cronenberg não pode, obviamente, capturar a batalha interna da personagem, mas pode se dedicar a apreendê-la pela maneira que ela se manifesta no corpo: a boca de Sabina se retorce, no esforço de quem diz palavras que se quer e não quer dizer ao mesmo tempo. A chave, portanto, é a de que a observação limpa – mas não menos manipulada – é suficiente para exprimir o que o espírito não consegue frear antes de chegar à superfície do corpo. Cronenberg faz com a matéria – o corpo dos atores, os cenários, o som – a deformação que ele antes introduzia, de forma violenta e exógena, na própria cena. 

É nesse sentido que a abordagem de Cronenberg se torna não exatamente inusitada, mas de fato indiscutivelmente justa ao que ele traz à tela. Um Método Perigoso parece mais próximo do cinema de Eric Rohmer ou dos filmes recentes de Catherine Breillat (diretora com preocupações semelhantes, inclusive), onde a limpeza e a frontalidade de encenação ajudam a criar um mundo por si só fascinante, com sua profusão de sotaques, inflexões e uma cortesia irônica que se manifesta nos sobrolhos de cada cena. A esta altura, porém, não há nada mais violento do que a limpeza aparente em um filme claramente debochado de suas grandes ambições, capaz de implodir por dentro, e com um riso nos lábios, as altas paredes que ele necessariamente erigirá. Um Método Perigoso é, nesse sentido, uma coleção deliciosamente jocosa de expressões – faciais, corporais ou de fala e linguagem – que são escavadas por uma direção assombrosamente precisa, com elipses arriscadas que criam contrastes e choques pela montagem (o genial corte que traz Vincent Cassel ao filme; ou o que mostra Sabina e Jung como amantes pela primeira vez) ou pela encenação.

RaniaE se estamos falando de personagens que conversam sobre ânus e vagina à mesa do almoço, para a perplexidade de toda uma escada de filhas ruivas e virginais, tanto melhor! Pois o que Um Método Perigoso consegue captar de raro – e com integridade ainda mais valiosa – é igualmente a profunda seriedade e o franco ridículo de tudo que move suas personagens – e, consequentemente, o próprio diretor. Em seu tom de documento satírico e fidelíssimo sobre uma das buscas incessantes da humanidade e da arte, Um Método Perigoso não só afirma a importância monumental de suas questões, como as atribui inseparavelmente ao que o mundo cismou taxar de sujo, vagabundo e vulgar (a sexualidade, mas também a canastrice auto-reveladora das comédias de costumes, como antes Cronenberg já fez com a ficção científica, o cinema de horror, o gênero policial...). E esse curto-circuito que trata as inquietações da vida como algo ao mesmo tempo nobilíssimo e tremendamente banal é justamente o que faz de assistir a Um Método Perigoso uma experiência de puro deleite cinematográfico.

Outubro de 2011

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