A Desconhecida (La Sconosciuta),
de GIuseppe Tornatore
(Itália, 2007)
por Ronaldo Passarinho

Forma sem estilo

Mulheres seminuas, mascaradas e de salto alto, como se saídas das orgias de De Olhos Bem Fechados, de Stanley Kubrick, participam do que parece ser um depravado concurso de miss. Dos jurados, vemos apenas os olhos, que espreitam as moças através de um buraco na parede. O mestre de cerimônias, envolto em sombras, manda que uma delas dispa o pouco que ainda veste. O misterioso júri faz sua escolha: ela vai servir. Só saberemos para que no último terço de A Desconhecida.

Esse bizarro “concurso” é mostrado em flashbacks no começo do novo filme de Giuseppe Tornatore. Quando a escolhida arranca sua máscara, descobrimos que é a mesma mulher que agora viaja de trem a caminho da fictícia cidade italiana de Velarchi. É a desconhecida do título, mas logo saberemos seu nome e sua nacionalidade. Chama-se Irena e veio da Ucrânia. Ela se prostituiu ao chegar na Itália e sofreu horrores nas mãos de seu cafetão. Sua motivação atual parece ser a vingança. Mas seu “alvo” não é o sinistro cafetão careca que vemos espancá-la e estuprá-la nos flashbacks, e sim uma aparentemente respeitável família de classe média alta.

Tornatore, que também assina o roteiro, logo instala o espectador no território confortável, e muitas vezes traçoeiro, dos filmes de gênero. Há um mistério e generosas doses de suspense. É preciso desvendar o enigma do passado da protagonista para entender sua motivação. E, mesmo sem saber precisamente qual o seu objetivo, torcemos para que ela consiga levar a cabo sua missão. Quando o filme estrear no Brasil, o adjetivo hitchcokiano certamente pipocará em textos críticos. A brilhante trilha sonora de Ennio Morricone, com suas alusões a Bernard Hermann, músico favorito de Alfred Hitchcock, ajudará a perpetuar essa comparação. Mas A Desconhecida se parece mais com filmes de Brian De Palma. Hitchcokiano, se quiserem – mas Hitchcock filtrado por De Palma, antes de chegar a Tornatore.

Desde Irmãs Diabólicas (1973), De Palma propõe uma releitura do cinema de Hitchcock em que a lógica da trama passa a importar cada vez menos. Não por simplificação, mas por hipérbole. Se a explicação psiquiátrica da patologia de Norman Bates na conclusão de Psicose era um apêndice obrigatório; em Sisters ou em filmes posteriores (sobretudo os mais recentes, como Síndrome de Caim, Femme Fatale e Dália Negra), De Palma deliberadamente complica a explicação, ao mesmo tempo expondo-a como convenção e incorporando-a ao efeito hipnótico da trama. O efeito que Hitchcock atingira com admirável economia em um filme como Um Corpo que Cai, De Palma busca pelo excesso. Em A Desconhecida, esperamos que a motivação atual da protagonista esteja diretamente relacionada a seu sofrimento no passado. E está, mas não do modo como Tornatore nos leva a crer. A ligação entre o núcleo familiar que Irena invade e seu suplício anterior se revela, na melhor das hipóteses, tênue.

Continuar a falar sobre a trama estragaria o prazer do espectador. E, inegavelmente, o filme é prazeroso. O que falta em A Desconhecida é De Palma. Pois todas as objeções que podem ser feitas à sua estrutura dramática seriam redimidas, até justificadas, por uma direção autoral. A trama do filme de Tornatore não é menos confusa ou mal resolvida do que a de Dália Negra; o que falta é estilo. Tornatore tenta compensar seu academicismo com uma profusão de cortes que, supostamente, servem para prender a atenção do espectador – a média de duração dos planos de A Desconhecida deve ser tão baixa quanto a de qualquer thriller hollywoodiano atual. O que não é, em si, um defeito. Basta ver Zodíaco, de David Fincher, e o próprio Dália Negra, para constatar que o virtuosismo na encenação e a edição rápida podem conviver harmoniosamente.

Outubro de 2007

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta