ensaios
A Doença do Sono (Schlafkrankheit),
de Ulrich Köhler (Alemanha, 2011)
por
Filipe Furtado
Europa,
espaço não-concreto
Ficções sobre o europeu na África são
acompanhadas de todo um inevitável peso de contexto colonial;
todo um processo de exploração política,
militar e econômica que se sobrepõe às relações
traçadas na tela. O grande desafio de A Doença
do Sono é justamente despir seu filme de todo este
contexto. A ótima seqüência de abertura, na
qual um dos protagonistas chega à sua casa à noite
acompanhado da família – voltando após buscar
a filha adolescente no aeroporto – e é parado por
militares deixa claro, de forma extremamente honesta, que não
se trata de um filme sobre a África ou mesmo sobre os efeitos
da África sobre o colonizador (tal qual Minha Terra,
África de Claire Denis), mas um drama que se passa
neste espaço e, inevitavelmente, leva-o em conta. Para
A Doença do Sono, a África não interessa
como um tema ou uma abstração, mas como um dado
concreto.
Todo o trabalho de Ulrich Köhler segue no sentido de desestabilizar
nosso olhar diante da sua ficção. Temos uma narrativa
em dois eixos, um primeiro bloco dedicado a Ebbo (Pierre Bokma),
médico alemão que comanda uma missão emm
Camarões, prestes a voltar para casa após anos no
local; e um segundo bloco localizado em algum momento a principio
não determinado, no qual Alex (Jean-Christophe Folly),
um médico francês entediado disposto a redescobrir
suas raízes, vai a Camarões fiscalizar a mesma missão.
Há algo constantemente turvo que nos impede de ter qualquer
certeza sequer sobre as motivações completas destes
dois homens. O primeiro bloco logo se revela pouco mais que um
longo prólogo para estabelecer o local, e o segundo procura
se manter sempre distante, mantendo o espectador inseguro até
se encaminhar a uma conclusão que é parte Coração
nas Trevas, parte Profissão: Repórter.
Köhler
vai aos poucos preenchendo para o espectador as lacunas abertas,
mas elas trazem sempre novos problemas, na medida em que o filme
parece muito mais interessado em subtrações do que
adições. A Doença do Sono força
nossa identificação ao lançar o espectador
no mesmo caos da sua ação, e a repele ao tornar
Alex quase uma caricatura do europeu de boas intenções,
desde sua introdução reclamando de um discurso oficial
sobre assistencialismo até a seqüência em que,
com medo de sair na sua primeira noite para ir ao banheiro, termina
urinando dentro de uma garrafa no seu quarto. O filme torna quase
uma piada recorrente a idéia de que, a despeito de Camarões
e França estarem no mesmo fuso horário, Alex segue
completamente perdido no tempo.
O que interessa a Köhler nos seus dois protagonistas é
sua posição de homens fora de lugar. O espaço
de Camarões existe sobretudo como uma não-Europa,
as imagens de Köhler freqüentemente sugerindo um intencional
olhar turístico que só reforça nosso distanciamento
em relação à ação. É
um olhar europeu para um drama europeu: é a repulsa à
Europa que leva Alex a Camarões, e o mesmo misto de repulsa/atração
pela idéia de voltar para casa que mantém Ebbo onde
está. É este não-espaço que o filme
ameaça sempre retomar: a África permanece ali presente
na tela, mas nela A Doença do Sono só consegue
ver uma não-Europa. A Köhler não interessa
o drama colonial, só o fracasso do eurocentrismo.
Outubro de 2011
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