ensaios
A Doença do Sono (Schlafkrankheit),
de Ulrich Köhler (Alemanha, 2011)

por Filipe Furtado

George HarrisonEuropa, espaço não-concreto

Ficções sobre o europeu na África são acompanhadas de todo um inevitável peso de contexto colonial; todo um processo de exploração política, militar e econômica que se sobrepõe às relações traçadas na tela. O grande desafio de A Doença do Sono é justamente despir seu filme de todo este contexto. A ótima seqüência de abertura, na qual um dos protagonistas chega à sua casa à noite acompanhado da família – voltando após buscar a filha adolescente no aeroporto – e é parado por militares deixa claro, de forma extremamente honesta, que não se trata de um filme sobre a África ou mesmo sobre os efeitos da África sobre o colonizador (tal qual Minha Terra, África de Claire Denis), mas um drama que se passa neste espaço e, inevitavelmente, leva-o em conta. Para A Doença do Sono, a África não interessa como um tema ou uma abstração, mas como um dado concreto.

Todo o trabalho de Ulrich Köhler segue no sentido de desestabilizar nosso olhar diante da sua ficção. Temos uma narrativa em dois eixos, um primeiro bloco dedicado a Ebbo (Pierre Bokma), médico alemão que comanda uma missão emm Camarões, prestes a voltar para casa após anos no local; e um segundo bloco localizado em algum momento a principio não determinado, no qual Alex (Jean-Christophe Folly), um médico francês entediado disposto a redescobrir suas raízes, vai a Camarões fiscalizar a mesma missão. Há algo constantemente turvo que nos impede de ter qualquer certeza sequer sobre as motivações completas destes dois homens. O primeiro bloco logo se revela pouco mais que um longo prólogo para estabelecer o local, e o segundo procura se manter sempre distante, mantendo o espectador inseguro até se encaminhar a uma conclusão que é parte Coração nas Trevas, parte Profissão: Repórter.

George HarrisonKöhler vai aos poucos preenchendo para o espectador as lacunas abertas, mas elas trazem sempre novos problemas, na medida em que o filme parece muito mais interessado em subtrações do que adições. A Doença do Sono força nossa identificação ao lançar o espectador no mesmo caos da sua ação, e a repele ao tornar Alex quase uma caricatura do europeu de boas intenções, desde sua introdução reclamando de um discurso oficial sobre assistencialismo até a seqüência em que, com medo de sair na sua primeira noite para ir ao banheiro, termina urinando dentro de uma garrafa no seu quarto. O filme torna quase uma piada recorrente a idéia de que, a despeito de Camarões e França estarem no mesmo fuso horário, Alex segue completamente perdido no tempo.

O que interessa a Köhler nos seus dois protagonistas é sua posição de homens fora de lugar. O espaço de Camarões existe sobretudo como uma não-Europa, as imagens de Köhler freqüentemente sugerindo um intencional olhar turístico que só reforça nosso distanciamento em relação à ação. É um olhar europeu para um drama europeu: é a repulsa à Europa que leva Alex a Camarões, e o mesmo misto de repulsa/atração pela idéia de voltar para casa que mantém Ebbo onde está. É este não-espaço que o filme ameaça sempre retomar: a África permanece ali presente na tela, mas nela A Doença do Sono só consegue ver uma não-Europa. A Köhler não interessa o drama colonial, só o fracasso do eurocentrismo.

Outubro de 2011

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