in loco - cobertura dos festivais

Agreste, de Paula Gaitán (Brasil, 2010);
Nostalgia da Luz (Nostalgia de la Luz), de Patricio Guzmán
(França/Alemanha/Chile, 2010)

por Eduardo Valente

Embora existam semelhanças notáveis entre os novos filmes destes dois nomes respeitados do cinema latino, não sendo a menor delas o fato de que boa parte de sua motivação (e de sua força) se articula na relação entre corpos femininos e uma paisagem natural árida a partir da memória de uns e outra, o maior interesse em olhar para os dois de forma conjunta parece certamente estar nas diferenças gritantes de como os dois cineastas articulam seus discursos a partir destes elementos em comum. De fato, estas diferenças são tão gritantes quanto a que existe entre a presença sufocante da voz em off de Guzmán em Nostalgia da Luz e o enorme silêncio que constitui intrinsecamente a narrativa de Agreste. No entanto, seria fácil e confortável demais resumir esta comparação a uma simples oposição entre reiteração de sentidos da parte de um e opacidade do outro, automaticamente desqualificando um deles para laudar o outro. Isso porque, de fato, os problemas do primeiro e as qualidades do segundo vão muito além (ou muito mais profundo, para ficar em termo que faz todo sentido em ambos os filmes) do que esta característica mais superficial permitiria nos deixar pensar.

Da abjeção, ainda

Nostalgia da Luz se estrutura totalmente a partir de uma coincidência “natural”, a partir da qual busca extrair seus sentidos poéticos e filosóficos: o fato do deserto do Atacama ser uma região que permite igualmente a exploração das profundezas do espaço sideral (por conta da limpidez do seu céu) e uma série de investigações arqueológicas (pelo fato da matéria praticamente não se decompor em suas condições específicas de umidade). Desta sobreposição entre astronomia e arqueologia, Guzmán retira uma reflexão sobre a relação do homem com o passado e da própria constituição da vida a partir do conceito de que “só vemos, logo apenas existe, o passado”.

Exposta nos primeiros minutos do filme, esta imagem, que a princípio soa bonita e de considerável potência deflagradora, terá ao longo de sua duração toda força inicial espremida de si, lenta mas irremediavelmente, como se faz com o suco de uma laranja. Guzmán dá conta dessa operação de duas formas complementares: uma através da linguagem, e outra através do conteúdo. É quando precisamos voltar à narração em off, cujo equívoco no filme consegue ser completo, passando pelo que é dito, mas se encarnando-se principalmente na forma como é dito. Não contente em repisar nesta voz, uma por uma (e várias vezes repetidas), cada conclusão, pista ou intuição que lhe surge, Guzmán ainda o faz através de um ritmo que mistura o solene, o distanciado e o morno, dando ao filme um tom ao mesmo tempo professoral e obsessivamente poetizante (muito mais que poético). A cada frase dita (e espelhada por imagens sempre ilustrativas – ou vice-versa), para além de servir como guia emocional de relação com o filme, a narração parece estar nos dizendo sempre “perceba a enorme poesia deste olhar”, dando um tapinha nas suas próprias costas.

Insatisfeito com isso, Guzmán apela a duas outras ferramentas de linguagem utilizadas com fins parecidos: por um lado, entrevistas com personagens/especialistas que sempre falam exatamente aquilo que o filme quer ouvir (não por acaso, aliás, num dos momentos uma entrevistada menciona a frase “como conversamos outro dia”, só dando certeza ao claro procedimento “ensaiado” de cada intervenção); por outro, a criação de determinadas “imagens poéticas” que dêem corpo físico aos conceitos que o filme articula, eminentemente com impressionante mau gosto e falta de qualquer sutileza (a fusão que coloca “poeira de estrelas” nos ambientes sendo o caso mais óbvio). Desta maneira, Guzmán pega uma imagem que deveria nos desestabilizar (o espaço sideral e as profundezas da Terra aproximados), e retira dela qualquer selvageria que tivesse, domesticando-a e querendo “dar sentido” ao que só maravilha como mistério.

Tudo isso poderia fazer do filme tão somente mais um exemplo de frágil poesia audiovisual, marcante apenas pela obviedade de suas imagens e o repisamento de suas metáforas. No entanto, a coisa fica realmente torpe quando o filme coloca em cena as personagens das familiares de perseguidos políticos cujos parentes, torturados e mortos, foram enterrados no deserto, e que até hoje ainda escavam manualmente a paisagem em busca de restos mortais. Porque se a abstração acerca das evidências físicas do passado unindo pesquisa de estrelas e fósseis soa apenas como uma imagem hipertrofiada pelo filme até ali, quando ela encontra esses seres em quem a dor da perda (principalmente pelo absurdo político da violência e abuso que geram essa perda) e o peso do passado se encarna de maneira tão obviamente física e concreta, o seu uso pelo filme para “completar uma imagem poética” é francamente ofensivo. Pois, frente à imagem de uma mulher que usa uma pequena pá para cavucar areia no meio da imensidão do deserto não há possibilidade de se querer fazer poesia.

Estamos frente à maior encarnação vista em décadas da “abjeção” no cinema, que aqui não se deve a movimentos de câmera (embora sobrem enquadramentos torpes “encaixotando” as personagens em imagens), mas principalmente a um uso de montagem que se utiliza destes corpos e histórias para criar “poesia” onde esta simplesmente não é mais possível. Não perceber quão dantesco é utilizar-se de um crânio decomposto para fazer uma imagem análoga à da superfície da Lua; ou enterrar e filmar na areia do deserto uma foto do homem cujos ossos de membros soltos foram ali encontrados por sua irmã, é dizer que o cinema tudo pode para (co)mover, é deixar às claras uma moral da arte sobre a vida francamente de embrulhar o estômago. Pois quando Guzmán afirma que “Miguel (um personagem torturado) e sua mulher são uma metáfora do Chile”, ele deixa claro quão limitado e limitador é o alcance do seu olhar, e nos dá vontade de gritar “não, eles não são isso não! Eles são Miguel e sua mulher!”

Da poesia, enfim

É de outra ordem o passeio pelas paisagens também áridas do Nordeste brasileiro que Paula Gaitán realiza em Agreste. Assim como no filme de Guzmán, uma voz off nos dá o norte ao início do filme: ouvimos a atriz Marcélia Cartaxo relembrar aquela paisagem como um “mito fundador” da sua identidade, como o espaço que carrega consigo pelo resto da sua trajetória (que, como sabemos, a partir de A Hora da Estrela, em 1985, a leva pelo Brasil rumo ao cinema, em paralelo claro com a própria Macabéa que ali encarna). Esta voz, que nos planta e prende de forma tão forte à terra, ao agreste, não voltará a perturbar este nosso passeio audiovisual por este espaço: o norte tendo sido dado, há aqui um respeito pela viagem absolutamente individual que cada espectador terá que traçar e sentir a partir de alguns estímulos que o filme cria/reproduz.

Não se trata aqui de criar um dogma sobre o documentário (“só serve se for sem voz off”), mas sim de uma compreensão do que é/pode ser a poesia mesmo: uma operação que, se tem os seus sentidos dados e universalizados para compreensão unívoca dos espectadores todos, não pode ter este nome/aspiração. A poesia precisa ser mergulho pessoal e intransferível, sempre. Por isso, sem deixar de fazer o seu (afinal isso é o que são as imagens e sons num filme), Paula Gaitán permite (diria até obriga) ao espectador que faça o seu – ou, algo tão importante quanto, permite inclusive que ele se recuse a partilhar do mergulho do filme; recuse o filme, em suma. Parece que, frente a sua idéia original (em ambos os sentidos do termo), é este o medo que paralisa Guzmán, o de ter sua poesia recusada ou não partilhada por cada espectador. Pois é este medo que Gaitán não te, como nunca teve em seus filmes: acreditar na força de seu próprio cinema como gerador de instabilidade poética é o seu modus operandi.

Dentro deste cinema, aliás, é importante relacionar Agreste com os dois longas imediatamente anteriores que a diretora realizou, Diário de Sintra e Vida, pois partilham pontos em comum o suficiente para serem vistos como uma trilogia. De Sintra, voltam, além de alguns motifs (como o ato de espalhar fotografias pela paisagem de forma a corporificar uma relação – com sentidos bem distintos do movimento dantesco que relatamos em Nostalgia da Luz), uma relação melancólica e fundadora com a paisagem, como se nela houvesse algo de fundamental para tentar entender uma perda (real em Sintra, metafórica aqui). Já de Vida, volta o gesto originário do filme (propor um documentário de “retrato” de uma atriz do cinema brasileiro – lá, era Maria Gladys), mas principalmente volta essa forma de se aproximar do retrato que passa pela relação muito viva entre câmera e retratada: um verdadeiro balé que se dá nos dois filmes, incorporando inclusive elementos puramente cenográficos (os véus e lenços de Gladys aqui se transfiguram nas bandeirolas que balançam ao vento do agreste). Além disso, aqui também há a passagem de Marcélia Cartaxo através de outros corpos femininos que vão se somando ao dela na imagem, criando espelhos e contrastes que ampliam os sentimentos dela e o espalham pelo mundo, os desfazem na paisagem e em outras “marcélias”.

Mais do que encontrar conforto num formato, o que parece que vai acontecendo nestes filmes de Paula Gaitán é o refinamento de um olhar e a criação de uma forma bastante viva de fundir biografia e abstração. No fundo, trata-se de uma tentativa de apreensão da passagem de alguém pela Terra/terra que exploda esta pessoa para muito além do seu corpo e da sua história. Me corrijo, porém: mais do que se colocar além da história, trata-se de reescrever o que é mesmo a história de alguém: se entendida apenas como a narrativa de seus atos, ou se percebida como este choque de imaginários, memórias, sensações com espaços, corpos, matéria enfim. Não por acaso, talvez a cena mais forte que nos fica de Agreste não está em nenhum de seus grandes momentos visuais nos exteriores do agreste, mas sim quando se dedica a filmar um agreste absolutamente interior, numa cena que mostra a cama dentro da casa. Ali, com tudo que se permite não dizer e nos fazer sentir de maneira tão palpável (ou não, a opção sagrada é do espectador), Agreste encontra o momento-ápice desta prodigiosa trilogia de filmes que, ao reposicionar pessoas no mundo e no espaço-tempo via cinema, via imagens e sons (a tessitura sonora do filme é impressionante), nos permite encontrar, cada um, nossa própria epifania. Poesia, enfim.

Outubro de 2010

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