Alexandra (idem), de Alexander Sokurov
(Rússia/França, 2007)
por Julio Bezerra

Avó e neto

Alexandra é mais uma elegia do russo Alexander Sokurov, um conto melancólico sobre um certo estado de coisas. Desde o primeiro fotograma, o espectador não terá dúvidas: estamos imersos no universo absolutamente inconfundível do cineasta: a força da paisagem na caracterização dos personagens, o talento plástico e de composição do quadro, o trabalho refinado de uma imagem mais expressionista, a dilatação do tempo, a morte como instância limite, as relações familiares permeadas pelo fantasma dos desejos incestuosos. As imagens emanam por vezes um quase sépia empoeirado, desafiam uma certa idéia de harmonia geométrica e se desmembram em rigorosas composições e lentos, porém constantes movimentos de câmera.

No entanto, nessa história de uma avó (vivida por uma lenda da ópera russa, Galina Vishnevskaya) que decide visitar seu neto capitão do exército em um acampamento militar na Chechênia, a luz é um pouco diferente: Sokurov decidiu filmar na própria Chechênia e se esforça para imprimir um calor degradante em seu filme, assim como uma atmosfera letárgica. A fotografia não se cansa de nos mostrar corpos descansando pelos cantos, dormindo pouco e comendo mal. O cinema de Sokurov lida sempre com a questão da figuração dos seres e da matéria. Ele dificilmente cria narrativas propriamente ditas: privilegia situações carregadas de simbolismo e de elementos sensoriais.

Sokurov dá prosseguimento aqui à sua trilogia familiar iniciada com Mãe e Filho (1997) e Pai e Filho (2003). Este Alexandra nasce da introdução de uma personagem deslocada e impertinente em um cenário estável – e lembra bastante Os Dias do Eclipse (1989). É a presença física dela que confere tensão ao filme. No ambiente preponderantemente masculino do acampamento, Alexandra descobre um novo mundo, sem conforto e calor humano. Aos poucos, ela transforma a rotina do campo militar. Faz perguntas, conversa com os soldados e vai até a cidade. Ela tem personalidade. Ela é a mulher. É também a avó de todos, quase como a Rússia que muitos deixaram para trás.

É curioso: Alexandra existe. Não é uma mera ilustração, nem exatamente uma alegoria ou metáfora. Ainda assim, a construção dramática de Sokurov parece calculada para que façamos essas pontes entre ela e a Avó, ela e a Mulher, ela e a Rússia. Alexandra é uma figura pensada para simbolizar a banalidade da guerra e suas conseqüências entre os soldados, entre as famílias, entre as nações, mas pouco (ou nada) faz para iluminar a questão da Chechênia. Como o conflito nunca está em quadro, somos levados a enxergá-lo pelas pessoas que dele participam. A princípio, Sokurov não defende nem ataca a guerra, parece mais interessado em registrá-la como algo inútil e desgastante, realizada por meninos que sequer têm em mente a idéia de defender a pátria.

Mas quando Alexandra assume o tom de avó para toda uma etnia, as coisas começam a degringolar. Numa determinada cena, um garoto checheno diz a Alexandra: “queria que vocês, russos, deixassem nosso país livre”. Não há raiva ou ironia em sua frase, e sim um aspecto marcadamente infantil. Ao que a experiente Alexandra responde: “é mais complicado que isso”. Em uma entrevista a Cahiers du Cinema, o próprio Sokurov completa: "Para mim, a Chechênia é parte do meu país".

Outubro de 2008

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