Estamos
Bem Mesmo Sem Você (Anche libero va bene), de Kim Rossi Stuart (Itália,
2006) por Eduardo Valente Elogio
à disfunção do mundo
Há bem pouco
tempo falávamos aqui da premência
dos olhos de Marina Hands para a força que emana da tela em Lady Chatterley.
Pois já é hora de voltar ao assunto, uma vez que este Estamos Bem Mesmo sem
Você, e seu protagonista Alessandro Morace, nos relembram de novo o quanto
a grande adição que o cinema traz ao jogo do ator em relação à perspectiva do
teatro é mesmo essa proximidade com o que se passa por dentro de um corpo a partir
das proverbiais “janelas da alma” (em oposição à perspectiva externalizada dos
corpos teatrais – que também são parte do cinema, aliás). De fato, são os olhos
de Morace que nos permitem ir lendo toda uma história não contada destes personagens.
Tomemos como exemplo a cena capital do filme, a chegada
da personagem da mãe (aliás, uma das mais fortes entradas em cena de um personagem
num filme em muito tempo): nos olhos de Tommi/Morace vemos um misto de surpresa/tristeza/antecipação/felicidade
que nos fala muito mais do que significa esta personagem materna dentro do universo
do filme do que poderiam fazer trocentos flashbacks ou frases explicativas.
Por isso, quando ele chega à incrivelmente dolorosa frase premonitória que fala
para o pai (“ela vai embora de novo”), isso não nos parece tanto uma imposição
de roteiro ou uma surpresa, mas sim a compreensão precisa do que se passa por
trás daqueles olhos, do que eles já viram em outras ocasiões. Em
se tratando da estréia na direção do bom ator Kim Rossi Stuart (entre outros de
As Chaves de Casa, filme aliás também completamente dependente do seu protagonista
infantil), seria já absolutamente notável se este aqui só tivesse como destaque
o seu olhar excepcionalmente atento para a filmagem de atores (infantis ou não).
No entanto, Estamos Bem Mesmo Sem Você vai bastante além: o Rossi Stuart
diretor soluciona uma série de cenas através da posição da câmera e os cortes
(de novo, o melhor exemplo é a chegada da mãe), ao mesmo tempo em que flutua com
bastante segurança por uma narrativa marcada por uma série de elipses tão discretas
quanto importantes (e compreendidas como tal); e ao mesmo tempo em que usa uma
série de coadjuvantes e subtramas para dar maior densidade ao seu protagonista
(o interesse romântico ou o amigo traumatizado na escola), não sente a necessidade
de solucionar de maneira abrupta ou óbvia nenhuma destas linhas narrativas. De
fato, a escolha que Rossi Stuart faz aqui é uma das mais incomuns dentro do cinema
atual: ao mesmo tempo em que não foge nem um pouco de encenar momentos de drama
(tanto no sentido de encenação de emoções por atores, como no de cenas de conteúdo
dramático forte), também não busca soluções simplórias para sua trama. Ao fazer
isso, foge tanto da atual moda de filmar o “não-acontecimento” (que pode ser sublime
nas mãos e nas tramas certas, mas em outros momentos se revelar pouco mais do
que um tique), quanto das armadilhas de uma retomada ingênua do melodrama italiano
apenas na chave dos clichês manipulativos mais fáceis. Estamos Bem Mesmo Sem
Você consegue andar nessa linha tênue entre a atenção aos corpos e espaços
e a articulação de um drama, sem cair nos vícios intrínsecos a nenhum dos dois
modos narrativos. Seu personagem principal nos convence que
a infância “disfuncional”, tão em voga nos hiper-psicanalizados anos em que vivemos
como uma justificativa para todos os desvios de caráter é, de fato, a verdadeira
infância normal: disfuncional é o mundo, é o ser humano. Nesse sentido, seu filme,
se deixamos de lado por um segundo o registro dramático completamente distinto,
Estamos Bem... parece bastante com uma versão live action dos Simpsons
(com uma Marge bem mais punk, é verdade) – inclusive com direito aos vizinhos
Flanders e tudo. Dezembro de 2007 editoria@revistacinetica.com.br
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