história(s) do cinema brasileiro
Ancinav, de novo? por
Leonardo Mecchi Semana passada, a Associação Brasileira
de TV por Assinatura (ABTA) lançou uma campanha (que inclui um abaixo-assinado
endereçado ao Congresso Nacional, a criação de um site específico e a veiculação
de um comercial em suas afiliadas) que lembra, e muito, os piores ataques ao projeto
da Ancinav em 2004. O alvo da vez? O Projeto de Lei 29/2007, que propõe, entre
outras coisas, uma cota de canais nacionais nos pacotes das operadoras de TV por
assinatura, assim como a obrigatoriedade dos canais estrangeiros de dedicarem
parte de sua programação à produção brasileira independente. Ora,
que uma tentativa do poder público de regulamentar minimamente o conteúdo difundido
pelas TVs por assinatura brasileiras (setor este que está entre os menos regulados
do mundo) seja mal visto por sua associação representativa é esperado, e até mesmo
compreensível. Agora, a forma como a ABTA tem demonstrado sua insatisfação, através
de uma campanha de desinformação e ameaças, é lamentável e digno da maior repulsa.
Sob o slogan “Eu pago, eu escolho o que quero assistir na minha TV por assinatura”,
a ABTA busca estigmatizar a iniciativa do Governo como uma atitude “autoritária”
e “controladora”, manobrando a opinião pública contra um projeto de lei sobre
o qual ela pouco tem informação (e a pouca informação que tem, veiculada pela
própria ABTA em sua campanha, é distorcida e manipulada). Os
argumentos apresentados pela ABTA contra o Projeto de Lei vão da acusação de “restrição
da liberdade de escolha” do espectador à ameaça de que “empregos diretos e indiretos
ficariam ameaçados”. Há trechos que beiram o absurdo em sua tentativa de amedrontar
o espectador: “a Câmara sinaliza a disposição de interferir na programação exibida
no país. Hoje, a restrição se dá por conta do país de origem. E amanhã? Alinhamento
político? Que outro critério poderia ser adotado a partir daí? E se a ameaça hoje
é no conteúdo veiculado na TV por assinatura, o que impediria futuras restrições
à Internet? Aos celulares? Aos telefones?”. Déjà vu, alguém? Ao menos,
na época da Ancinav as ameaças eram mais sutis. Alguns dados
concretos vêm bem a calhar em meio a tanta exaltação. Segundo números compilados
pela Ancine, em 2006 os longas nacionais representaram apenas 5% do total de filmes
exibidos na televisão aberta. Já na TV paga, dos 10 canais de filmes presentes
em suas grades de programação, 3 deles não exibiram nenhum filme brasileiro no
primeiro semestre de 2007, enquanto nos demais o conteúdo nacional foi inferior
a 2% do total de filmes exibidos. Neste panorama, é importante realçar que a maior
parte das regulamentações previstas no referido Projeto de Lei não são criações
de uma mente perversa e diabólica, louca para submeter o pobre espectador brasileiro
à aterrorizante produção audiovisual nacional. Trata-se, na realidade, de legislações
semelhantes às implantadas em diversos outros países do mundo (incluindo os EUA)
para preservar suas culturas e indústrias audiovisuais. Como
há muito tem se falado, a exibição de conteúdo nacional na TV, seja ela aberta
ou paga, é fundamental para a formação de público para o cinema brasileiro. O
que se vê, entretanto, é uma replicação ainda mais perversa da concentração observada
nas salas de cinema. O que o Projeto de Lei apresentado busca é justamente reverter
essa situação através de três sistemas de cotas. A primeira determina que, nos
canais que exibem prioritariamente filmes, séries etc (excluindo-se portanto os
dedicados ao jornalismo, transmissões esportivas e afins), no mínimo 10% de sua
grade seja produzida por um produtor independente brasileiro. Na prática, isso
significaria que canais como os da rede Telecine ou HBO deveriam exibir um mínimo
de dois filmes brasileiros por semana, algo longe de ser uma imposição absurda. A
segunda cota estabelece que 50% dos canais disponibilizados pelas operadoras de
TV por assinatura devem ser nacionais (sejam eles de produção independente ou
não). Hoje, os canais estrangeiros respondem por aproximadamente 70% da oferta
das operadoras. Por fim, a terceira cota busca garantir que ao menos 30% da programação
desses canais nacionais seja independente, evitando assim que se repita o que
ocorre na TV aberta, onde a maior parte das emissoras produz seu próprio conteúdo
– uma aberração quando comparado à realidade de outros países do mundo. Nos EUA,
por exemplo, as operadoras a cabo não podem deter o controle sobre mais de 40%
dos canais por elas distribuídos. Já no Brasil, a NET, detentora de 46% do mercado
de TV por assinatura no país, disponibiliza em seu pacote analógico apenas 8 canais
nacionais (18% de sua grade de programação), sendo todos de produção própria (da
Globosat, controladora majoritária da NET). Note-se que
em nenhum momento o Projeto de Lei determinada a exclusão da grande de programação
dos canais atualmente existentes ou o confisco do controle remoto dos assinantes,
o que joga por terra o argumento das operadoras de que tal projeto estaria cerceando
a liberdade de escolha do espectador. Pelo contrário: é a atual estrutura da grade
dessas operadoras, ao deliberadamente excluir de sua programação a produção audiovisual
brasileira independente, que limita a liberdade de escolha, reduz as opções de
canais, restringe a diversidade na programação e controla (quando não distorce
e manipula, como pode ser observado neste caso) a informação que chega ao seu
assinante – justamente as acusações que a ABTA faz contra o Projeto de Lei. Por
fim, não deixa de ser curioso que o mesmo grupo (do qual fazem parte a Globosat,
Net, Sky e TVA, entre outros) busque freqüentemente a regulamentação que tanto
critica no Governo Federal (regulamentação essa que, segundo eles, lesa constantemente
o princípio do livre mercado) quando o assunto a ser regulamentado fere seus próprios
interesses – como nos casos da pirataria ou da entrada das operadoras de telefonia
no mercado de fornecimento de conteúdo audiovisual. Dois pesos, duas medidas,
um único interesse: liberdade total para continuar monopolizando a produção e
difusão de conteúdo audiovisual a seu bel prazer. À sociedade,
cabe efetuar uma leitura crítica de todas essas informações (disponíveis ao simples
toque de um mouse) e tomar partido nessa queda de braço. Só não vale aceitar passivamente
uma leitura atravessada do que está em jogo aqui como uma ação que visa “defender
a liberdade” do espectador. Esse filme nós já assistimos – e o final não é feliz. Dezembro
de 2007
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