in loco - cobertura dos festivais

O Estranho Caso de Angélica (idem),
de Manoel de Oliveira (Portugal/França/Brasil, 2010)

por Filipe Furtado

O sorriso de Angélica

A certa altura, a dona da pensão em que o protagonista de O Estranho Caso de Angélica reside descreve uma série de fotos que ele deixara dependuradas, misturando imagens da personagem-título com outras “assustadoras” de trabalhadores rurais empunhando enxadas. Imaginamos que a mulher, um tanto fofoqueira, está a exagerar, mas quando a câmera de Oliveira repousa sobre o estranho mural compreendemos bem o que ela quer dizer, já que as imagens dos trabalhadores sugerem todo um espetáculo físico agressivo que contrastam em tudo com serenidade sorridente do cadáver de Angélica.

Logo compreendemos que o fotografo Isaac está justamente tentando desesperadamente contrapor esta outra imagem ao sorriso de Angélica para impedir seu chamado. Pois todo este novo filme de Manoel de Oliveira está voltado para o equilíbrio destes dois extremos contidos no mural do varal. Não deixa de ser o mesmo equilíbrio que sempre moveu o cinema esta invenção ao mesmo tempo maravilhosa e terrível, tão capaz de nos fascinar quanto assombrar. Isaac é ele próprio um homem assombrado, um pouco como o detetive do Laura de Preminger, fascinado pelo quadro da personagem-título. No caso, Isaac teme o chamado constante do sorriso de Angélica, pronto para dissolvê-lo como a fumaça do cigarro, pronto para retirá-lo do mundo material e levá-lo para outra esfera que o maravilha e ao mesmo tempo assusta, pelo que tem de desconhecido.

E afinal não é Angélica, a noiva-cadáver sorridente que se apresenta a nós quase sempre via engenhosos efeitos especiais, uma figura de cinema? Seu fascínio inevitável para Isaac, um homem de vida ascética (sempre uma figura à parte, seja da mesa de café da manhã da pensão seja no velório de Angélica onde a mera menção do seu nome reconfirma sua posição de outsider). O Estranho Caso de Angélica narra como este homem decide que o sorriso de Angélica lhe fascina mais do que assombra, como este asceta resolve retomar sua posição de herói borzagiano. Como nosso herói, em suma, aceita esta idéia de que a matéria é só outra forma de espírito, como dito num dos diálogos do filme..

Há toda uma afirmação de fé cinematográfica contida neste seu salto romântico no escuro. Afirmação esta que se bifurca ao longo do filme de múltiplas maneiras, seja na forma com que as excentricidades particulares de cada coadjuvante (a empregada, o mendigo, os habitantes da pensão) ajuda a constituir este mundo próprio, seja na forma como os sonhos/pesadelos de Isaac remetam ao mesmo tempo a Cocteau e Meliés. Lembro-me do crítico Kent Jones sugerindo que Sob o Sol de Satã, de Maurice Pialat, terminava por se revelar um fracasso nobre por conta do contra senso no mais materialista dos cineastas se dar a filmar o outro mundo de Georges Bernanos. Oliveira elimina o contra senso e abraça todas as formas de cinema com a generosidade e perspicácia de olhar que lhe é característico. O Estranho Caso de Angélica é Isaac a correr desesperado pela paisagem portuguesa, mas também o delírio apaixonante do abraço do fantasma de Angélica. O sorriso de Angélica, por fim, igualmente nos assusta e maravilha.

Novembro de 2010

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