Os Anjos Exterminadores (Les Anges Exterminateurs),
de Jean-Claude Brisseau (França, 2006)
por Paulo Santos Lima

Imagem do invisível

Os Anjos Exterminadores é um filme de fusões múltiplas... múltiplas, explosivas, mortais. Junções que se fazem pelas contradições, pelos opostos. Fusões entre diretor e câmera e seus procedimentos. Fusões necessárias para a realização, para o cinema, mas cujo preço é destrutivo.


O próprio título deste magnífico longa de Jean-Claude Brisseau confirma as contradições: se o anjo é aquele que protege, como pode então ser assassino, ou se é algo metafísico, como pode ser e ter a sensualidade de uma Raphaële Godin ou Margaret Zenou? A fusão, portanto, é um procedimento potente para a realização do filme, de um filme. Ou sobre o diretor François (Frédéric van de Driessche) que tenta chegar a uma tal “verdade” sobre o êxtase feminino (esse fenômeno ultra-atômico, químico, transcendente, mágico, misterioso) através do cinema – ou seja, da imagem, da superfície. Mas como? Qual seria a imagem do invisível? O simples voyeurismo? Então seria um engodo? Ou uma traição coletiva?

Brisseau pisa num terreno selvagem, traiçoeiro e movediço. A quem acha equivocadamente que Os Anjos Exterminadores é um pornô soft, está claro que Brisseau moraliza a questão central do pornográfico, que é o voyeurismo: este é uma realidade do cinema, em que as coisas são ofertadas à sede dos nossos olhos, mas enquanto nas pornografias visuais (grand guignol, snuff movies, sexo explícito etc) há um grande cinismo nos puros exercício, aceitação e exposição do jogo, aqui o voyeurismo é tanto uma inerência do resultado da prática cinematográfica quanto fator de destruição. François faz teste na fase de pré-produção de um filme de gênero e descobre, quase ao acaso, esse grande túnel de acesso a um material “maior”, bombástico, mítico (e mitificado?) e sensacional(ista).

E o que François faz a partir daqui? Segue o protocolo, uma vez que não há, ao nível do cinema, outro procedimento que não colocar corpos à vista e tentar reter sua existência na duração do plano, ou manipulá-los na montagem, tudo isso com a câmera em punho. O que há são corpos esteticamente bem torneados, belos, estimulantes como objetos de fetiche e consumo, mulheres em pêlo masturbando-se de um modo bastante primário (no sentido de básico, essencial), sem grandes torneios ou malabarismos dramáticos. Tudo a ser visto, fértil aos estímulos sexuais da platéia, mas sempre mirando à frente, quando esses procedimentos de exposição causarão grandes transtornos.

E, que mais são essas imagens de mulheres mexendo-se e falando sobre elas próprias? Algo um tanto ridículo, banal, mas de modo algum desnecessário: pelo contrário, há uma beleza infinita no modo como Brisseau-François filma(m) a superfície, com claro-escuro desenhando abismos e clareiras nos terrenos epidérmicos femininos, contrapostos à imagem de um François observador que, com sua câmera-bastão-de-poder parece tão poderoso quanto impotente, mergulhado numa penumbra existencial que se esconde a cada avanço que ele faz com os testes. Brisseau, grande esteta, não tira o seu foco às possessões, ou seja, das já ditas fusões, uma vez que estas são como possessões recíprocas de vários elementos presentes na produção de um filme (a começa e a terminar com a imagem). Assim, Rebecca, belo anjo feminino, funde-se com o cineasta-espectador, encaminhando as opções de François ao passo que as assiste em evidente êxtase, prazer e gozo totais, e desse modo coopera à gênese (da experiência, no caso, do cinema) e também à destruição.

Outra possessão crucial é a de François e a câmera, que é também e certamente a de François e Brisseau. O olhar, a visão, é o que importa ao compenetrado François, que pede para as meninas se atracarem novamente com a porta do corredor aberta, com luz entrando e mudando a imagem e também sugerindo uma devassidão total da gama de observações: se nós, do lado de cá, podemos ver tudo desde o início, o lado de lá, da diegese, que é misterioso porque uma criação alheia a nós, também pode tudo. Um jogo de poder estabelecido pelo olhar. E a mise-en-scène é o momento supremo de Os Anjos Exterminadores: as três gurias acariciando-se e tocando-se na cama, em plano fixo/ François liga e arma em punho sua câmera/ plano inicialmente fixo que se transforma num travelling mostrando-as juntas na cama/ François movendo-se com a câmera exatamente como fizera a “câmera de Brisseau” na tomada anterior. Fusão homem-câmera, criador-dispositivo.

O dispositivo, aliás, é algo a ser apontado aqui. É com o dispositivo da câmera que se chega à existência, à imagem (afinal, a imagem só existe quando temos consciência dela, e isso só é possível, no cinema, quando ela se faz presente na tela). É graças ao dispositivo do clitóris que as mulheres avançam meia milha a caminho do orgasmo. E, aqui no filme, é por meio dessa bela e delicada peça embutida no corpo feminino que se torna possível a encenação. E também os procedimentos tomados para operar o dispositivo — no caso das mulheres, usa-se de uma útil bolinha à mão da colega para se “fazer a cena”; e no caso de François, suas escolhas como cineasta, por onde captar, qual câmera, qual método de preparação etc.

Temos aqui a celebração do ato da criação, do autor, do diretor criativo, da ação cineasta. Porque, em princípio, não existe a imagem do invisível, a própria lógica nos diz. Mas François, como uma pulsão bruxa, maligna, enfeitiçada ou destrutiva, tenta ir além da superfície das coisas, chegar ao invisível e, ainda mais, chegar à imagem do indescritível. A experiência subterrânea do orgasmo, instransponível para o cinema, é uma grande enganação ao próprio François, que no fim das contas não capta nada além de bundas, púbis, regos, mulheres, camas, lençóis, e tudo isso em movimento. Uma enganação que o faz ir à frente, destemido, e sempre chegando ao limite da superfície, o que já o que de melhor a arte cinematográfica de ponta pode nos oferecer.

Se François engana e é enganado, Jean-Claude Brisseau mantém-se na tradição engoda do cinema para revelá-la a nós: os sensuais anjos e a vovó de François somem do plano como sumiam as coisas no primeiro cinema. As imagens, portanto, vistas sob o olhar de um diretor nada ingênuo, como Brisseau, não são certezas totais, tampouco instâncias concretas. Há algo de misterioso nelas, demoníaco até. Ao cineasta, resta filmar, acreditando que um dia chegará à imagem absoluta, profunda, centro do mundo, subterrânea. É o que faz François, que, arrebentado numa cadeira de rodas, continua a filmar seu “filme de alcova”. Por convicção cineasta? Por prazer? Por tesão?

Outubro de 2007

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