in loco - cobertura dos festivais
A Parte dos Anjos (The Angel's Share),
de Ken Loach (Reino Unido/França/Bélgica/Itália, 2012)
por Paulo Santos Lima
Três
homens, uma mulher e uma sentença
É curioso que, após fazer do cinema um instrumento
para sua militância, Ken Loach encontre junto ao uísque
– em copo, garrafa e tonel – uma forma de expressar
a política através da imagem em A Parte dos
Anjos. À parte seus raríssimos e preciosos
acertos, como Kes, os docudramas Cathy Come Home
e Poor Cow e o tour de force dramatúrgico
de Peter Mullan em Meu Nome É Joe, o boa-praça
Loach costuma confundir cinema com passeatas ou reuniões
sindicais.
É nesse contexto que o uísque, essa bendita criação
etílica humana que faz parceria com o cinema há
tempos, do Heróis Esquecidos de Raoul Walsh ao
Husbands de Cassavetes ou Sobre Meninos e Lobos
de Clint Eastwood, chega aqui como uma grande novidade, pois leva
para outras bandas aquele que parecia ser mais um típico
filme de Loach, mas que escapa com especial fluidez do dramalhão
social para uma comédia de ação tão
absurda quanto livre. E eis uma palavra que merece condolências,
ao se tratar de Loach: livre. Diretor que sabe militar e se posicionar
politicamente, como cineasta político Loach parece vestir
a pesada armadura de prestar serviço social por via do
audiovisual. Pois, para ele, o cinema é mais um canal de
áudio e imagem do que uma expressão imagética
em relação ao mundo. Nada melhor, portanto, que
o auxílio dos maltes escoceses para soltar os demônios
criativos mais íntimos.
Antes,
é bom situar este A Parte dos Anjos. Ao longo
da filmografia de Loach, temos um diretor mais afinado com o free
cinema britânico, nos anos 1960, costurando muito bem
o estilo documental “jornalístico” ao do melodrama,
mas ambos em estado mais puro, bruto, sem bordados psicológicos,
como se capturados no ato da filmagem. Depois, Loach passou a
traficar temas caros e urgentes da realidade (o medonho thatcherismo
conservador-elitista, opressão anti-operária etc.)
e adotou uma dramaturgia mais tradicional, dependente de uma exposição
mais trabalhada; e quão pior quando, nisso, foi necessário
revisar a história (Terra e Liberdade; The Wind that
Shakes the Barley). Em suma, Loach seria um bom Sergio Bianchi,
contando com personagens com discurso em riste, mas jamais um
bom encenador, e tampouco um dramaturgo da imagem.
É nesse percurso errático mas, sem dúvida,
insistente e militante (defensor da causa, crente de sua missão
de maestro atrás da câmera) que A Parte dos Anjos,
assim, chega num momento crucial, quando as sérias questões
que movem o diretor há anos são, mais que nunca,
puro factóide, sem chance de reverberação
(como o são quaisquer assuntos na alta correnteza da usina
da mídia). A descrença não é só
política; é também na imagem, pois ela perdeu
a aura suprema, celestial, e a todos ela é passível
de existir e mentir (ser manipulada e manipuladora). A Parte
dos Anjos, assim, dialoga com esse estado de coisas na chave
que mais pode afundar a lâmina da espada: a da irreverência
e da graça. Nada mais acertado que implodir a solenidade
da causa. Nada mais acertado para um cinema como o de Ken Loach,
que, por ela, vem afundando na lama.
A Parte dos Anjos começa como um típico
drama social de Ken Loach, mostrando mais um grupo de alijados
do sistema que, neste caso, cometeram pequenos delitos e cumprem
pena prestando serviços sociais. O coordenador, Harry (John
Henshaw), é um devoto da deliciosa bebida cor de âmbar,
e apresenta seu amor ao grupo. Robbie (Paul Brannigan), o mais
violento do grupo, é também o mais protagonista
do filme, o mais vitimizado socialmente e o que tem o paladar
mais apurado para ser um connoisseur de uísques.
É interessante fitar este sujeito e perceber que, como
tudo indicava já nos primeiros minutos de projeção,
seria o emblema para o “preste atenção”
típico dos filmes de Loach e, por conseguinte e motivo
ideológico (de ideal), ele teria a chance de provar sua
distinção como ser social (ser humano). Mas não:
com o uísque, o filme faz uma acentuada curva e segue por
uma estrada mais maluca e surpreendente, dando a Robbie a chance
de se mostrar como um rebel without a cause diferenciado,
pois arguto, que tem a brilhante idéia de roubar um pouco
do conteúdo de um tonel cujo uísque está
cotado a mais de 1 milhão de libras e, assim, fazer a justa
distribuição de bens entre ele e três amigos,
todos eles a escanteio da jarda abastada da sociedade.
É
a primeira vez, no cinema de Loach, que a malandragem sabota o
sistema em favor supremo da classe proletária. Na impossibilidade
de uma história material, ou seja, de se atuar na luta
de classes, a opção única é agir à
margem, projetando-se à sombra da engrenagem e, dela, arruinar
a roldana sem se esquecer de extrair um pouco do sumo. Uma sequência
que dá conta da larga mudança de rota deste cineasta
de 76 anos é justamente aquela que aparentemente seria
a mais fiel e usual aos seus procedimentos: a da degustação
de uísque à qual Harry faz questão de levar
o grupo. Além de ser um catecismo na mesma medida de uma
aula sobre ciência política, a explanação
direciona-se também aos espectadores: saberemos um pouco
mais sobre a importância de uma bebida que não deixa
de ser o proletário do universo etílico, ainda um
pouco vilipendiada nas rodas elitistas que delegam apenas ao vinho
a bebida digna dos olfatos e paladares sofisticados.
A cena, uma bela inserção docudramática dentro
da trama, é também o momento de virada: a partir
daqui, A Parte dos Anjos torna-se uma comédia
de ação à Hollywood, para a seguir se tornar
um eficiente filme de assalto. Uma operação radical
pela repentina troca do que seria uma ação política:
antes do uísque, a fundamentada pelo enfeixamento das teorias
políticas de Montesquieu, Hobbes, Marx, Engels etc. que
tão bem orientaram o exercício político de
chefes de estado como Napoleão, JFK e Mao Tse-tung e de
cineastas militantes como Ken Loach; depois do brand
maltado, a ação retificada por um mundo que só
existe como reflexo e idealização do real, como
fantasia, como narrativa, forma e discurso, ou seja, a ação
política do cinema. Assim, em vez de Robbie e seus colegas
serem ativados por sua condição histórica,
será um impulso essencialmente cinematográfico que
os levará a reagir contra o status quo. É
Ken Loach fazendo de A Parte dos Anjos um Onze Homens
e uma Sentença. Nada mais político.
Outubro de 2012
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