sessão cinética
Aprile (idem), de Nanni Moretti (Itália, 1998)
por Pedro Henrique Ferreira

AprileFilmando a dispersão

Se a autoficção fora um procedimento popular nos anos 80 e 90, Nanni Moretti esteve dentre seus expoentes mais criativos. Não porque seria um inventor do gênero ou porque explorou infindamente seus recursos, ou sequer porque levou-os adiante de algum forma, mas porque o dispositivo lhe adveio como uma solução. Assim, no conjunto de sua obra, o ato auto-reflexivo de ficcionalizar-se nunca soa como uma mania ou um capricho, mas sim como um projeto plenamente justificado por aquilo que a própria obra nos coloca.

Aprile é mais um diário de Moretti sobre si mesmo: seus ímpetos e desejos quanto à política e o cinema, seu ostracismo produtivo e sua absoluta dispersão quanto a seus próprios projetos. A narrativa, inspirada em dados biográficos e arquitetada em uma espécie de polifonia temática sem centros narrativos fixos, transita aleatoriamente entre os fenômenos que marcaram sua vida pessoal nos anos 90, criando um registro cotidiano e íntimo de um homem em meioAprile a um mundo de fenômenos que lhe ultrapassam. Sem pousar em uma única temática e levá-la a cabo, Aprile antes compreende um período de tempo – meses ou anos onde estiveram em jogo tanto acontecimentos políticos globais, como o primeiro governo de Berlusconi e a migração de albaneses na Itália; quanto eventos puramente pessoais, por exemplo, a vida profissional de um diretor e o nascimento de seu filho. A dialética que une estes eventos é organizada pela dislexia de um personagem-central (o próprio Nanni Moretti), seus contínuos comentários (por vezes textuais) e interrupções dos temas das conversas em cena, seus saltos absurdos de um tema a outro. Uma figura em crise consigo mesmo: filmar um documentário sobre a situação política de seu país ou um musical dos anos 50?

AchabO que realmente impressiona, porém, é que o que poderia se tornar um exercício de egolatria, onde o diretor projeta para o mundo aquilo que sente em um pedido exagerado de que o espectador compactue com ele, em Aprile adquire uma capacidade enorme de doação. Expondo-se absolutamente, Nanni Moretti nunca deixa que suas dúvidas políticas (direita reformada ou esquerda radical) ou artísticas (musical ou documentário) se tornem justificativas plenas para sua preguiça, improdutividade ou incapacidade de se concentrar em uma coisa só. Ao invés de vitimizar-se, Moretti se responzabiliza na justa medida por ser o que é e fazer o que faz: acha importante e julga uma espécie de dever realizar um documentário político que conte ao mundo a história recente de seu país; e também gostaria e sonha em fazer um musical, mas sabota a si mesmo toda vez que se lança a qualquer empreitada, desvirtuando seus próprios projetos. O tratamento cômico que as sequências adquirem nasce exatamente do fato de que o personagem Moretti não se recrimina e tampouco luta contra sua própria falta de concentração. Pelo contrário, sente-se plenamente justificado em sua improdutividade, em dizer não a tudo, caso nenhuma das opções lhe soe inteiramente aprazível.

Assim como em seu filme seguinte, O Quarto do Filho, o tom dramático que impeliria uma narrativa de crise e esvaziamento termina suplantado por placidez, graciosidade, tranquilidade, e compreensão de que um homem simplesmente não pode cobrar tanto de si mesmo. Um problema com P maiúsculo é reduzido a um p minúsculo. A ausência de projeto não é lá tão dolorosa se documentar a situação política do país (tal qual lhe pede o jornalista francês) é tampouco frutífero quanto uma fugidia espetacularização da vida em um ludismo felliniano. O jeito é buscar, sem grandes compromissos, o leve cotidiano de alguém que transita alucinadamente entre tantos ímpetos. Assim, de procedimento popular, a autoficção se torna um elixir exatamente a esta espécie de dispersão.

Agosto de 2011

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