À Procura de Eric (Looking for Eric), de Ken Loach
(Inglaterra/França, 2009)

por Fábio Andrade

Proletariado para crianças

Quando aparecem os primeiros planos de arquivo em que Eric Cantona joga futebol, em À Procura de Eric, uma trilha sonora ao melhor estilo FM easy listening acompanha as imagens, tirando delas toda impressão de contato e presença física. A trilha, com seus pianos alegres e instrumentação comedida, faz lembrar os mais convencionais filmes de família made for TV, onde as questões são encenadas não pela crise, mas pela facilidade de resolução. A proximidade é expressiva: À Procura de Eric é uma espécie de fábula da realidade operária, como se Ken Loach transpusesse seu universo para um filme de família produzido pela Disney. Esse universo parece ter se tornado uma commodity tão descolada de seu sentido original que poderia, mesmo, ser apropriada por um sistema de estúdios capaz de reduzir tudo a poeira de sonho, a fantasia inofensiva.

Como é um filme de família no sentido mais superficial do termo, À Procura de Eric se construirá como uma fábula de portas fechadas, onde todo elemento cênico ganha seu peso simbólico mais facilmente decodificável, e o onírico se misturará incestuosamente ao cotidiano. Afinal, a trama dá atenção a Eric Bishop (Steve Evets) – carteiro desgostoso com o trabalho e com os rumos de sua vida – e o momento em que ele começa a se relacionar com uma projeção imaginária de seu ídolo, o jogador de futebol Eric Cantona (interpretado, como dizem os créditos finais, por lui-même). A passagem para essa mistura de registro se dá da forma mais esperada possível: Eric Bishop conversa com um pôster do ídolo, pregado na parede de seu quarto, tomando satisfações do homem que mais lhe inspira. A resposta vem de trás, onde Eric Cantona aparece, materializado. A partir dali, Cantona passará a aconselhar Bishop, abrindo caminho fácil para a leitura de como as paixões mediadas podem influenciar diretamente vidas anônimas.

Para determinar a relação estrita de causa e efeito necessária às fábulas, Loach povoará cada cantinho de seu filme com possibilidades simbólicas: Eric Bishop sofre um acidente de carro dirigindo em círculos em uma rotatória; os amigos de seus filhos largam entulhos em seu quintal; Eric Cantona o convida a abrir seu baú para se reconciliar com suas memórias; um de seus melhores amigos se chamará Spleen; uma conversa sobre gols e passes logo vira uma alegoria para a vida, o mundo e tudo que se arrasta sobre ele. Afinal, a inspiração do filme e da personagem é Eric Cantona, sujeito tão afeito a aforismos que sua mais famosa entrevista coletiva durou apenas uma frase: "Quando as gaivotas seguem o barco, é porque eles acreditam que sardinhas serão jogadas no mar". Cantona dirá frases de quilate parecido a Bishop, e o encorajará a tomar as rédeas de seu passado, criando uma possibilidade de futuro.

Existe, porém, um plano importante em À Procura de Eric, na sequência em que o jogador de futebol ensina o carteiro a dizer "não" aos seus filhos. Cantona incita Bishop a ser o mais assertivo possível, até ele se colocar aos berros na cozinha de casa. Neste momento, um dos enteados de Bishop passa pelo corredor; a câmera assume seu ponto de vista, e vemos Bishop – patético, frágil, enlouquecido – gritando sozinho. Cantona não está lá – claro, ele nunca esteve e nós sempre soubemos disso – mas a câmera de Ken Loach sente a necessidade de fazer esse recuo, de abandonar o personagem em seu desvario, qualificando o desvario como desvario, se distanciando dele. A fábula é assumida enquanto ela pode provocar mudanças nas vidas das pessoas, mas esse mínimo descolamento da câmera a devolve ao terreno da loucura, desmerecendo a fantasia. Ken Loach precisa fazer o recuo porque ele não acredita na nobreza da ficção, pura e simples: é mister se colocar acima dela, se reafirmar como o cronista oficial da classe operária inglesa, se mostrar capaz de compreender o sonho como tal, minimizando sua efetividade. Esse recuo é de grande ingenuidade, pois Loach desqualifica toda a sua abordagem em À Procura de Eric. Afinal, se a questão é a classe trabalhadora e não seu imaginário, por que o trabalho, em si, nunca é um discutido? Por que o ambiente de trabalho serve apenas como locação para relações de amizade, nunca para relações de poder?

O estapafúrdio drama final chega ao espectador completamente desmontado, pois se não há fé na organização fabular, o estapafúrdio é apenas estapafúrdio mesmo. Pois Loach não é nem um cronista nem um narrador moral, mas apenas um propagandista. Assim como Bishop percebe que assistir a imagens que registram um momento de humilhação é como vivenciá-los novamente, o olhar de Ken Loach é de inversão que responde à mesma lógica: o importante é usar a imagem para ridicularizar o opressor publicamente, e enaltecer o oprimido - como o trompete mal tocado por Eric Cantona logo se torna não-diegético, e ganha o acompanhamento de cordas edificantes. O incômodo maior é que, mesmo desmontado pelo distanciamento cínico, a atmosfera de parque temático do proletariado perceptível em À Procura de Eric é o ambiente mais justo e honesto que o cinema de Ken Loach habitou nos últimos anos.

Outubro de 2009

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