Argo, de Ben Affleck (EUA, 2012)
por Rodrigo de Oliveira

O filme falso, o filme real

É estranho imaginar que Argo, este filme de política modesta e de estética nula, esteja servindo tão bem a tantos senhores diferentes. Há um elogio evidente da “inteligência real”, em dupla via. Primeiro, a inteligência oficial da CIA e do governo americano, sempre tomando rasteiras militares de grupos menores e mais espertos, para o qual a aventura de Tony Mendez e seu esquadrão de fabricação hollywoodiana seria um espécie de chamado ao básico: é preciso vencer os regimes extremistas pela inteligência, não pela força. Segundo, a inteligência emocional, digamos, extra-governamental, de artistas e seu público. É importante, nesse sentido, ter algum senso de enraizamento ideológico, que já não trata de esquerda ou de direita, de pró-Ocidente ou pró-Oriente, mas que se satisfaz simplesmente em “mostrar os eventos em sua complexidade”.

Saímos de Argo sem a certeza da vilania, sem conseguir apontar nos iranianos sempre aos berros a culpa de toda a discórdia, mas certamente sem indicar nos americanos os protetores da democracia e da paz. Isso, de algum modo, é tomado como valor, e oferece um atestado de inteligência: eis aí um filme que foi lá, no coração das coisas (ou no estúdio onde se conseguiu recriar este coração da melhor maneira), e saiu de lá inteiro, sem nenhum risco de se dobrar diante do real pulsante, ou de favorecer uma força em detrimento da outra. Do mesmo modo que há storyboards para ajudar a farsa deste agente extrator que vai a Teerã resgatar seis americanos, fazendo-os passar pela equipe de um filme de ficção científica estapafúrdio, Argo é a reprodução literal do encontro de Ben Affleck com o material, foto still de sua incorruptibilidade.

O gosto pelo procedural drama, o exercício dos procedimentos detalhados de uma ação policial investigativa, científico em sua cadeia de causas e conseqüências, de planos postos à mesa e executados com precisão cirúrgica, aponta para uma dessensibilização tão revoltante quanto impraticável, pelo menos hoje. Quando, ao fim, dois quadros opostos rememoram planos do filme, comparando-os às imagens de arquivo da crise iraniana, é sem embaraço nenhum que Argo coloca sua reprodução de um homem enforcado num guindaste em oposição à imagem do evento real. O símbolo da dignidade, talvez o único que tenha restado, é este da exibição - “com provas” - de que a reencenação não ecoa dramas outros que não o da própria História, e que basta a uma imagem atual articular com inteligência a suposta complexidade por trás daquela figuração que seu salvo-conduto está garantido. A culpa, no fim, é de Jimmy Carter e do Aiatolá Khomeini – eles que assumam responsabilidade pelas imagens que criaram, porque a nós só cabe reproduzir com fidelidade. É mais fácil uma equipe falsa de cinema passar pela Guarda Revolucionária no aeroporto de Teerã que um cineasta que se ruboriza diante da encenação do terror alcançar o reino dos céus.

Serve-se, por fim, ao senhor dessa ilusão, à Hollywood eternamente inocente diante de um mundo perverso, e que elogia essa inocência a golpes de adrenalina. Não é, enfim, sobre o corpo pendurado por uma corda, ou sobre os velhos árabes chamados à figuração de uma revolta antiga na porta de uma embaixada fictícia, que Argo está falando. Tudo é colateral, e tudo é coloração. Interessa mesmo colocar o espectador lá dentro, lá no olho do furacão, do mesmo modo que o cineasta lá esteve, protegido pela consciência de sua falta de implicação e incapaz de se pensar como agente histórico. O produtor e o maquiador do falso filme de ficção científica, flanando pela cidade dos sonhos com sua arrogância positiva e seu senso de dever patriótico, são símbolos desse apaziguamento moral – “a História começa como farsa e termina como tragédia”, mas nunca poderá ser histórica em si, pelo menos não para estes que acreditam tão puramente na justeza de seu ofício. Tony Mendez, o agente extrator que corre o mundo para salvá-lo sem nunca poder receber o reconhecimento devido, consegue pelo menos se amigar com a esposa e o filho que abandonou em nome do trabalho. Nega-se o vilão do mesmo modo que nega-se o herói, sob a crença num cinema no qual lavar as mãos é um gesto político.

Mas isso, no fim, não é nada. Já devidamente instrumentalizada, assimilada pelo cinema liberal, a reencenação do trágico não provoca mais nenhum choque, nenhuma revolta. Admite-se um corpo enforcado como objeto de ignição para outra coisa, porque por si mesmo esta imagem não é nada. Ela provoca o terror de uma personagem diante da escalada de caos que tomou o Irã, mas também serve para provocar a consciência automática – e, quem sabe, uma assinatura na petição online – daqueles que compartilharam pelas redes sociais a imagem de um índio brasileiro enforcado, alguns meses atrás. Uma guerra foi perdida aí e já não sei se faz sentido cobrar dos filmes que ainda se espantem diante dos limites da existência (uma execução, um suicídio, uma revolta popular), ou que projetem sobre estas imagens de cinema aquilo que todas as outras imagens do mundo já se desembaraçaram de ter. Há um espetáculo de engajamento em marcha, mas que ele aconteça neste limbo de um cinema que suprimiu a necessidade de um índice de abjeção me é ainda razão para obstruções e ressalvas como esta. Talvez a inocência seja um fardo meu, e não de Argo.

Dezembro de 2012

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