arquivo textículos A a L, em ordem alfabética
(veja arquivo de M a Z)


500 Dias com Ela (500 Days of Summer),
de Marc Webb (EUA, 2009)
por Filipe Furtado
500 Dias com Ela poderia ser um bom filme, mas ao invés disso é uma bela ilustração. Raramente nos vemos diante de um filme que ilustre tão bem toda a indústria de cheeseburger do cinema independente americano. 500 Dias com Ela tem um bom ator (Joseph Gordon-Levitt) se esforçando muito para vender o filme e uma premissa (rapaz precisa se recuperar de um fora enquanto relembra a relação) de interesse. A partir daí Marc Webb completa a idéia inicial com todos os cacoetes esperados para vender seu filme, seja as referências musicais aceitáveis (o primeiro dialogo do casal se dá quando ela o elogio por gostar dos Smiths), a narrativa atemporal (com cartão de explicação para o espectador não ficar perdido), os atores indie (Gordon-Levitt, Zoey Deschanel), etc. Nada ilustra isto melhor que as cenas entre o protagonista e seus dois melhores amigos: são seqüências funcionais, com os dois coadjuvantes ali essencialmente para dar ao protagonista alguém para conversa e/ou servirem a alguma piada. O que impressiona é como não existe nenhuma intimidade sugerida nestas cenas, como é impossível diante delas dizer “ei, estes caras se conhecem há anos e estão sempre muito à vontade entre eles”. 500 Dias com Ela se preocupa demais em se vender de forma eficiente para que tal intimidade possa se instaurar. Entre Gordon-Levitt e o profissionalismo industrial, 500 Dias com Ela certamente se deixa ver facilmente. Mas diz muito sobre este cinema que o blockbuster que o ator fez este ano pelo cheque (GI Joe) pareça ter muito mais personalidade que isto aqui.

Agente 86 (Get Smart), de Peter Segal (EUA, 2008)
por Eduardo Valente
Logo no começo desta versão cinematográfica e moderna da clássica série de TV, uma cena deixa clara a relação que o filme optará por estabelecer com a iconografia (e, por tabela, com todo o resto) de sua predecessora: quando Maxwell Smart entra no que de fato é o quartel-general da CONTROL, ele passa por uma espécie de museu onde se podem ver velhos conhecidos da série, como o terno, o carro esporte ou o sapato-fone. É verdade que no final estes serão retomados, mas ainda assim não deixa de ser um momento sintomático da aproximação de Peter Segal e dos roteiristas/produtores: a série de TV é coisa de museu. Com isso, como poderíamos esperar, cabe ao filme trazer o personagem e seu universo para o presente - e por isso entendamos acima de tudo para a platéia (jovem, inclusive) dos dias de hoje. Então, por um lado tome referências sócio-políticas à atualidade (principalmente através da trama em torno do presidente interpretado por James Caan, cheio de referências a Bush), mas de maneira ainda menos sutil através de um desejo de filmar as desventuras de Smart não apenas pelo viés cômico, mas também a partir de uma cartilha do cinema de ação contemporâneo, seguida à risca por uma lógica do "quanto maior, melhor" numa série de cenas de ação francamente sem muito nexo (e não falamos aqui de verossimilhança, mas sim de lógica interna mesmo), marcadas acima de tudo por uma mise-en-scène sem qualquer senso de timing ou de clima (um micro-exemplo bastante forte é o péssimo primeiro encontro com a Agente 99, enquanto ela pratica jogging). Por conta deste desejo de fazer um filme de ação "à vera" que complemente a parte cômica, este Agente 86 se revela uma experiência bastante esquizofrênica e quase nada engajante. Temos um Steve Carrell no piloto automático (o que, lógico, significará duas ou três gags fantásticas, mas pouco mais que isso), uma deliciosa Anne Hathaway bastante perdida em si mesma, um Dwayne "The Rock" Johnson de enorme carisma pedindo um personagem que faça jus a ele, e um Terence Stamp absolutamente dispensável. Mas o que temos mesmo, acima de tudo, é uma típica experiência hollywoodiana moderna segundo uma competência desprovida de qualquer vida própria, de qualquer diferencial ou desejo de encanto. Um "filme de resultados", que certamente atingirá os desejados (leia-se, basicamente, a bilheteria mundial).

Algo como a Felicidade (Stestí),
de Bohdan Slama (República Tcheca/Alemanha, 2005)
por Francis Vogner dos Reis
Em uma cidadezinha industrial na República Tcheca, um rapaz que trabalha em uma oficina rejeita sistematicamente os convites do pai para ir trabalhar na fábrica. Há também a garota que pretende ir aos Estados Unidos junto do namorado que lá trabalha, o que sua mãe apóia, porque não quer que filha tenha o mesmo destino que teve. Esses dois jovens serão obrigados a cuidar dos dois filhos de uma terceira personagem – autodestrutiva – que entra em colapso, fazendo com que o rapaz aceite o emprego na fábrica e a garota desista de ir para a América. E o que o diretor Bohdan Slama faz com isso tudo? Ele, ao encenar dramas de jovens nascidos e crescidos na reta final do leste europeu comunista e a articulação deles com suas famílias, visa fazer de suas imagens não um diagnóstico, mas, um modo de compreender a postura deles perante um mundo que só lhes deixou ruínas e sucata. Assim, em uma dramaturgia feita, sobretudo de intimidades, a câmera se vincula à pulsação dos corpos desses personagens, como que para embarcar de modo mais “incisivo” na vida deles. Só que tudo tem o efeito inverso do que o diretor parece propor. A câmera busca um fluxo de imagens mais livre, mas faz desse processo algo pesado; uma narrativa mais solta, que se revela bem burocrática, propõe personagens complexos, mas restringe-os a uma psicologia esquemática. O diretor asfixia e oprime os personagens nesse esquema que transforma qualquer tentativa de aproximação mais crua e direta em mera complacência. Toda essa dinâmica cênica e dramática contemporânea se revela, nesse caso especificamente, como um novo tipo de academicismo, pois submete todo seu processo a um controle pesado que não respira nem por meio de seus defeitos. Algo como a Felicidade é refém de seu dispositivo. 

Amigo é pra Essas Coisas (Zim et Co.),
de Pierre Jolivet (França, 2005)

por Eduardo Valente
Tudo parece estar no lugar certo, em Amigo é pra Essas Coisas: a comédia de tipos se misturando à perfeição com as preocupações étnico-sociais para se falar da França de hoje; as pitadas de realismo intensificadas pela câmera sempre na mão interagindo com a música que parece perfeitamente integrada ao ambiente de seus protagonistas; os limites entre manter os olhos numa ética pessoal firme e os desafios da realidade que pedem constantemente que se quebrem as regras de conduta social. O filme de Pierre Jolivet parece fluir deliciosamente pela tela, com atores absolutamente engajantes, diálogos bem escritos e rápidos, familiaridade com o ambiente filmado. No entanto, um incômodo se estabelece pouco a pouco lá no estômago do espectador mais atento, só tomando real forma quando o casal interracial de jovens prepara-se para a primeira noite juntos, e (no que parece ser uma piada) ela pergunta se ele tem uma camisinha - apenas para descobrir que os dois possuem preservativos. Ali, o filme nos dá a imagem precisa do que nos parecia um tanto errado: aquela realidade tão "no lugar certo" parece mesmo estar com pelo menos duas camisinhas de distância de qualquer verdadeira contaminação deste disfarçado projeto de sitcom cinematográfica. E nada contra as sitcoms, diga-se - mas sim contra o fato delas se disfarçarem. Ao fim e ao cabo, Amigo é pra Essas Coisas é isso: uma bela opção para a diversão "socialmente consciente" do fim de semana. Mas, quando tenta se portar como se fosse algo além disso, perde pontos pelo excesso de proteção quase ingênuo com que parece tratar seus personagens - nunca menos que heróicos mesmo em seus erros, sempre plenamente compreensíveis. Talvez o que quiséssemos fossem alguns erros menos facilmente compreensíveis - como aqueles que cometemos todos os dias.

Almas à Venda (Cold Souls),
de Sophie Barthes (EUA/França, 2009)

por Eduardo Valente
Desde a leitura da sinopse de Almas à Venda, é mais do que justificada a impressão de que o filme tenha mais do que uma mera semelhança com Quero Ser John Malkovich. Só que aqui o ator que interpreta a si mesmo é Paul Giamatti (de fama curiosamente semelhante com a de Malkovich), e não só ele é o protagonista do filme (o que Malkovich estava longe de ser), como o que ele quer é deixar de ser Giamatti, por assim dizer – e, para isso, vai procurar uma empresa que promete “armazenar almas”. A sequência em que ele entra na empresa pela primeira vez, e se consulta com o médico interpretado por David Strathairn faz crer que o filme enveredará pelo caminho da farsa absoluta através de um diálogo bastante inteligente, dito num timing preciso por estes dois ótimos atores. No entanto, desde a abertura do filme há uma montagem paralela que traz uma outra personagem para o foco da narrativa, uma russa que vamos ao pouco entendendo como se relaciona com a história de Giamatti. Quando a câmera está com ela, muda de registro: vai para a mão, com os tiques mais óbvios de um dito “realismo”. Aos poucos as histórias se unem, e aí fica claro que, sem abrir totalmente mão do humor, o filme deseja que levemos minimamente a sério questões como a relação da alma com o indivíduo ou os abusos de empresas com empregados de países como a Rússia. E aí é um esforço excessivo que se pede do espectador: por um lado, que acredite numa idéia tão esperta e absurda quanto afirmar que a alma de alguém, uma vez extraída do corpo, pode assumir a forma de um grão de bico; por outro, filmar cenas “sensíveis” de subjetividade “dentro da alma” de Giamatti, em que ele se vê bebê, com a mãe, a mulher (ficcional, interpretada por Emily Watson), etc. Em grande parte é por querer rezar para estes dois santos bem distintos que, passado seu curto momento de graça inicial, o filme vai perdendo o interesse do espectador, que não consegue mais nem levar a sério o absurdo nem rir sem preocupações. Pensando bem, esse sentimento tem realmente muito a ver com o trabalho de Charlie Kaufman.

Assombração (Re-Cycle),
de Danny Pang e Oxide Pang (Hong Kong/Tailândia, 2006)
por Leonardo Mecchi
Assombração, novo filme dos irmãos Pang, é um engodo. A começar por sua tentativa de se vender como um exemplar do terror asiático, gênero em voga atualmente, responsável (com Visões) pelo sucesso dos diretores. Embora comece na mesma chave de filmes do gênero já conhecidos pelo público (O Grito ou O Chamado), Assombração logo envereda para a fantasia, registro ideal para que os diretores possam exercer livremente sua inegável criatividade visual. Nada errado, a priori – para além da má-fé em se vender gato por lebre –, não fosse o fato de que, por baixo desse vistoso verniz visual, de cenários mirabolantes e efeitos especiais aos borbotões, repousa uma sucessão de clichês e equívocos que levam o filme a se tornar (involuntariamente) uma paródia dos maus hábitos cinematográficos: o uso incessante de flashbacks para relembrar o espectador sobre o porquê da protagonista tomar determinada decisão (num didatismo de deixar Sérgio Rezende no chinelo), uma trilha sonora abusiva e rasgada em todos os momentos românticos ou de suspense, e finalmente um moralismo sem precedentes – com direito a diversas cenas do tipo “no episódio de hoje, aprendemos que...”. Pensando bem, talvez os irmãos Pang tenham, afinal, conseguido seu objetivo: realizar um dos filmes mais assustadores do ano.

Atirador (Shooter), de Antoine Fuqua (EUA, 2007)
por Eduardo Valente
Difícil evitar a sensação de “já vi este filme antes” quando assistimos este Atirador: trata-se de uma óbvia reciclagem do mito do herói americano injustiçado por seu próprio país que dá a volta por cima se vingando dele, do qual o mais recente e bem sucedido exemplo é o primeiro Rambo. Antoine Fuqua tenta capitalizar um discurso politicamente mais forte e direcionado (as menções ao Iraque abundam – e mesmo a questão etíope está plenamente up-to-date com o noticiário internacional), mas parece bastante inconsciente das incongruências de um discurso que quer desmistificar um ideal de país (representado pelos poderes estabelecidos – políticos e agências de espionagem) através da reiteração de outro (o do justiceiro puro e de grandes ideais); e que deseja crucificar uma violência desenfreada enquanto nos oferta um espetáculo de considerável sadismo, e principalmente de idealização do “super-soldado” criado pelo mesmo exército americano tão questionado. Se há de fato alguns bons momentos, quando o filme parece quase incorporar uma certa auto-ironia (a visita ao especialista em armas sendo a mais curiosa), há outros francamente constrangedores (como tudo que diz respeito à personagem do interesse romântico do protagonista ou o ogro-engravatado interpretado por Elias Koteas). Ao fim e ao cabo o que ficam são alguns bons momentos de ação em meio a uma narrativa com arroubos demais de uma frágil “importância política”.

Ato de Liberdade, Um; (Defiance),
de Edward Zwick (EUA, 2008)

por Julio Bezerra
Baseado no livro homônimo de Nechama Tec, Um Ato de Liberdade conta a história de um grupo de judeus liderado por Tuvia Bielski (Daniel Craig), que consegue sobreviver na floresta durante a ocupação nazista da Polônia – eles ainda operaram como aliado do exército soviético, consertando armas e costurando roupas. Dirigido por Edward Zwick (Diamantes de Sangue e O Último Samurai), o filme é explícito em sua estratégia: logo no início, imagens documentais em preto e branco nos mostram nazistas assassinando pessoas desarmadas; a seqüência se dissolve na seguinte, em um longo fade, para os atores de Zwick (famosos, e em cores). Ou seja: o que veremos é ficção, embora colada aos fatos. É preciso dizer, no entanto, que nem uma nem a outra dimensão se desenvolvem a contento – nem a reconstrução da conjuntura histórica, nem a ação dramática propriamente dita. Os nazistas não ganham rosto e o filme centra suas atenções à vida quotidiana da comunidade na floresta. O roteiro de Clayton Frohman e Zwick recorre ao quadro talvez obsoleto de convenções hollywoodianas. Os amores melodramáticos, os diálogos espertos entre supostos intelectuais e até mesmo a relação conflituosa entre os irmãos parecem completamente impróprias para o cenário e as circunstâncias narradas. Não há dúvidas: este material foi escrito por americanos contemporâneos de um determinado contexto social e perspectivas, não esquecendo as mensagens humanistas de sempre. Zwick ainda persegue um certo elemento poético (com a melodiosa trilha de James Newton Howard e a suave fotografia de tons azulados de Eduardo Serra), e um determinado impacto na parcela aventuresca do filme jamais alcançados. Zwick faz um cinema de pretensões heróicas e épicas, veículos para estrelas, mas é um historiador amador um tanto oportunista.

Beijo a Mais, Um (The Last Kiss),
de Tony Goldwyn (EUA, 2007)
por Eduardo Valente
Qual o sentido de uma refilmagem? Claro que os mais céticos podem simplesmente gritar “lucro, oras!” ou sussurrar “a falta de uma idéia original boa”. No entanto, só para ficarmos em exemplos recentes de dentro da grande indústria, um Planeta dos Macacos, de Tim Burton; ou um As Loucuras de Dick e Jane, de Dean Parisot, nos fazem ver que, com um mínimo de interesse da parte do realizador, “refazer” pode ser também parte integral de uma obra maior ou uma maneira de se reaproximar de um material com um olhar inevitavelmente distinto, atualizado. Claro que numa chave bem mais radical, podemos pensar no Psicose, de Gus Van Sant: exemplo absolutamente desestruturante de aproximação com uma obra clássica onde toda a diferença se dá, justamente, pelo desejo de emular, de copiar. Nada disso, porém, parece ter se tornado questão na cabeça de Tony Goldwyn ao realizar este Um Beijo a Mais, refilmagem do italiano O Último Beijo, filme tão gracioso quanto mais ingênuo (e cujo diretor, Gabriele Muccino, também foi importado pela indústria americana – com muito mais sucesso que o seu filme, diga-se). Pois o que faz Goldwyn aqui? Praticamente um exercício vansantiano de cópia, só que aqui involuntário e sem qualquer propósito realmente “artístico”. Mais do que exatamente um filme ruim (o que o roteiro original torna difícil se fazer), o que temos é o equivalente a uma copiagem de fita de vídeo ou uma xerox com pouca tinta: reproduzimos um mesmo material, mas perdemos uma “geração” ou temos uma pálida cópia do original. Tudo que era graça e frescor em Muccino parece aqui forçado, estudado. Do elenco original, marcado principalmente pelo cativante Stefano Accorsi e pela estonteante Martina Stella – que justificaria qualquer pecado –, passamos para um Zach Braff absolutamente desinteressante e uma Rachel Bilson graciosa, mas tristemente comum. Como o último plano (ou melhor, a ausência do plano que encerra o filme italiano) comprova, o que se faz aqui é apenas uma tradução menos complicada de um filme que já era, em si mesmo, conscientemente “pós-adolescente”. Assim, só nos sobra ao final da projeção a pergunta lá do começo: qual o sentido em fazê-lo, afinal?

Bom Ano, Um (A Good Year), de Ridley Scott (EUA, 2006)
por Paulo Santos Lima
Um Bom Ano é uma comédia romântica cujo mote é a guinada de um canalha materialista (Russell Crowe) que herda a fazenda do tio-avô. Sem a menor nuance (o executivo sacana, a bela e bondosa mocinha do campo), o filme trabalha apenas na superfície da máscara, buscando algo próximo da suposta fonte de inspiração do cineasta, as screwball comedies de Howard Hawks. Só que, nestas, cada personagem carregava múltiplas personas, abrigando num mesmo corpo paixão e crueldade, por exemplo. Obras como Levada da Breca eram soberbos trabalhos de decupagem, valsa entre os planos e dentro deles. Já o cinema de Ridley Scott é blocado, pouco feliz na comunicação entre tempo de enquadramento e montagem entre planos e seqüências. Posado como uma 3x4 aberta a retoques no photoshop, mostra uma galeria de objetos-fetiche do sonho consumidor burguês espalhados pelos enquadramentos iluminados com aquela típica luz de seu cinema: luz de quando abrimos a geladeira com a cozinha escura - só que adaptada à região da Provence francesa, ou seja, mais solar, vertida em tons dourados e banhando mais democraticamente os espaços. Com tanto lamê na imagem, claro que não é preocupação da câmera se sujar junto às coisas. Ela, mesmo quando colada no casal romântico, parece fora da cena. Uma câmera que estaria melhor assistindo, incrédula, ao (belo, confesso) exibicionismo cenográfico do plano inicial de Blade Runner. Porque o projeto estético de Ridley Scott aparenta, sem ser, de autoria de um único fotógrafo: uma estética ultra-artificialista, com cones de luz fazendo geometrias kitsch, que não vê tanto o movimento e mais atende à disposição de elementos na cena – ou seja, privilegia a forma dos seres e dos espaços, um quase empate entre cinema e publicidade, com o primeiro fazendo 2 a 1 sobre o outro. Se o seu irmão, Tony Scott, leva esse projeto ao vazio absoluto, com imagens em cadência extrema (e, por esse motivo, uma obra que me é mais interessante de análise), Ridley ainda faz algo ligado à tradição do cinema. E entra numa armadilha, porque nele não há seres, mas sim elementos formais no plano. Que fique claro, não como Michelangelo Antonioni fazia, pois com o velho Ridley não existe e tampouco está em questão a relação entre seres e espaço ou sobre o que se é nesse mundo.

Bom Pastor, O (The Good Shepherd),
de Robert DeNiro (EUA, 2006)

por Eduardo Valente
Há um difícil paradoxo a ser enfrentado por Robert DeNiro neste seu segundo longa como diretor: para que seu filme realmente faça sentido, é importante que o personagem de Matt Damon escape do nosso entendimento completo, uma vez que ele é figura central numa trama de constantes trocas de identidade. Por outro lado, o filme se centra de tal maneira no personagem dele que, a partir do momento em que nos é negada a empatia com ele, esta “coerência interna” torna o filme absolutamente frio e distanciado do nosso olhar. Com isso, suas duas horas e vinte (certamente excessivas) passam dolorosamente pela tela como um enorme jogo de “gato-e-rato” que é menos dos personagens entre si, do que entre nós e o andamento da narrativa. Se é fato de que o filme não idealiza em nenhum momento o trabalho da CIA (envolvida em atos horrendos de tortura e marcada pela supressão e desprezo pela vida pessoal de todos à sua volta), também é verdade que há um certo excesso romântico no retrato da “vida do espião”. No meio disso tudo, passeia pela tela uma esfinge encarnada por Matt Damon, cujas reais motivações nunca serão claras para nós. Pior do que isso, no entanto, é a dificuldade de comprarmos a passagem de 20 anos na vida deste personagem – tanto no sentido físico do trabalho do ator neste envelhecimento, quanto principalmente na completa inadequação dele ao papel central que ocupa nos escritórios da CIA. Entre momentos de admiração e outros de desinteresse completo, O Bom Pastor se mantém sempre a milhas de distância de seu espectador.

Bons Costumes (Easy Virtue), de Stephan Elliott (Inglaterra, 2008)
por Eduardo Valente
Desde o desenho dos créditos iniciais, Stephan Elliott deixa claro que, nessa volta ao cinema depois de nove anos afastado (inclusive por motivos de doença), ele quer muito se divertir. E esta é a principal virtude de Easy Virtue - uma, aliás, nem sempre tão fácil assim, com o perdão do trocadilho. Elliott se aproveita em parte do texto de um Noel Coward ferino (embora, a bem da verdade, em alguns momentos o texto seja um pouco witty demais da conta) e em parte de uma mise-en-scène de uma fluidez notável, entre elegantes movimentos de câmera e uma montagem de cortes rápidos, mas nada bobos. Fica claro que seu desejo é o de retomar uma certa tradição da comédia de costumes, não só no teatro como no cinema dos anos 30-40, e ele consegue reproduzir o que talvez seja o principal de alguns dos melhores filmes do período: a capacidade de transformar a diversão na realização em diversão na tela, que transborda então para o espectador. Por fim, não podemos deixar de falar de três escolhas sábias no elenco: Colin Firth dando muita dignidade ao seu personagem; Kristin Scott Thomas se divertindo como a megera inglesa; e, acima de tudo, uma Jessica Biel que, se não chega a ser brilhante como comediante, também não faz feio - ou melhor, faz o principal, que é ter uma presença de tela que dá total veracidade ao impacto de sua personagem no espaço onde se passa a trama.

Buenos Aires 100km (Buenos Aires 100km),
de Pablo José Meza (Argentina, 2004)

por Felipe Bragança
Para um filme sobre o despertar da adolescência, Buenos Aires 100 km sofre uma séria tendência para o bom comportamento. Reunindo clichês, seqüências afetivas reiteradas no cinema juvenil e uma encenação realista bem amarrada, o filme não deixa de alcançar a graça melancólica que parece pretender, ainda que sem entusiasmo. Articulado diretamente à linhagem pós-melodramática que vem marcando boa parte da produção argentina atual, Buenos Aires 100km tem como principal trunfo a firmeza de artesanato, a sutileza de linguagem e a coerência dramatúrgica que fazem de seu desenrolar na tela um objeto enxuto. A graça possível dessa pequena crônica juvenil aparece, portanto, não tanto por seu apelo ao novo, à inquietação, à descoberta, mas por sua firmeza de construção de um pouco mais do mesmo. Essa melancolia programática, porém, e as resoluções mais que esperadas de roteiro, deixam abertas uma questão e um porvir: a juventude construída como nostalgia e impotência é a fórmula por excelência a que teremos que recorrer? A inquietação perdeu todo o território para a crônica contemplativa? Contemplação é sinônimo de letargia? Buenos Aires 100 km pratica com tanta calma a cartilha do bom-cinema-de-arte-do-estado-dormente, que desperdiça grande parte da carga afetiva que insinua. Que cinema se iniciará após o plano final no campo de futebol vazio? Que filmes se insinuam quando a observação melancólica se esgota em sua bem comportada expressão?

Casa Verde, de Paulo Nascimento, A; (Brasil, 2010)
por Eduardo Valente
Pode parecer (e até é) um despropósito falar de Manoel de Oliveira ao escrever sobre um filme como este A Casa Verde, mas não se trata nem de longe de aproximar as obras. O fato é que uma das frases mais sábias (dentre as muitas) já ditas pelo grande cineasta português foi sua afirmação de que seus filmes usavam uma linguagem cinematográfica tão frontal e direta porque já tratavam de coisas muito complicadas, para ainda querer complicar na sua forma. Pois este filme de Paulo Nascimento nos faz pensar na frase porque parece inconsciente de que, na enorme incapacidade de realizar o mais simples (contar uma história, dirigir atores, etc), se torna tão mais constrangedor ao optar por ainda querer ser narrativamente complexo (incorporando uma metalinguagem na figura do desenhista, que nunca justifica sua existência em tela). Assim como dirige atores (e câmera) como se estivesse registrando uma péssima peça infantil, onde vilões e mocinhos são igualmente desprovidos de qualquer carisma, Nascimento ainda se arvora de um desejo raso de “contemporaneidade”, com uma discussão sobre virtualidades e ecologia que não passa de oportunismo puro e simples. O fato é que temos aqui um pretenso filme infantil que subestima enormemente o que é a inteligência de uma criança, além de parecer ignorar tudo de bom que já se fez no gênero não só no cinema (nacional e internacional), mas até mesmo na TV brasileira. O fato é que, perto de qualquer Sítio do Picapau Amarelo, Castelo Rá Tim Bum ou mesmo Cocoricó, A Casa Verde não seria nada mais do que um tremendo retrocesso – só não o sendo de fato porque está fadado a ser esquecido antes mesmo de ser assimilado.

Cashback (idem), de Sean Ellis (Inglaterra, 2007)
por Ronaldo Passarinho
O protagonista de Cashback é um aspirante a artista plástico que consegue congelar o tempo para melhor observar o mundo a seu redor. Principalmente as mulheres, a forma feminina. O tempo realmente pára e o artista pode, a seu bel prazer, mudar objetos e pessoas de lugar. Depois basta um estalo de dedos para que o tempo volte a fluir. Não, Cashback não é um filme de ficção-científica. O protagonista não quer salvar o mundo como o japonês de Heroes. Seu “superpoder” pode até ser visto apenas como uma metáfora, ainda que seja real o suficiente para gerar momentos de comédia pastelão. Sean Ellis, diretor e roteirista do filme, busca um efeito mais lírico do que fantástico. Tão lírico quanto a imagem final, com flocos de neve parados no ar ao redor de um casal. “Estou farto do lirismo comedido / Do lirismo bem comportado / Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente / protocolo e manifestações de apreço ao Sr. Diretor”, escreveu Manuel Bandeira. O lirismo de Cashback não agradaria a Bandeira. É lirismo funcionário público, protocolar. O que sobra é uma comédia romântica episódica – até simpática, mas sem foco, falada demais para um filme que se pretende interessado no poder da imagem, com uma narração em off na maioria vezes redundante. É filme para se ver domingo à tarde, na TV a cabo; quem sabe até, de olhos fechados.

Conduta de Risco (Michael Clayton)
de Tony Gilroy (EUA, 2007)
por Eduardo Valente
Em determinado momento de Conduta de Risco, o personagem interpretado por Sidney Pollack (um dos sócios de um grande escritório de advocacia) vira-se para seu empregado (o personagem-título no original em inglês, interpretado por George Clooney), que se vê frente a uma “crise de valores” e diz: “when did you get so fucking delicate?” (“quando você se tornou tão delicadinho?”). A frase é um resumo de tudo que há de errado com Conduta de Risco: o problema principal de mais este filme-denúncia sobre o estado imoral das negociatas no mundo das grandes corporações versus o cidadão comum é justamente que precisamos acreditar no processo porque passa Michael Clayton ao longo do filme, só que nunca conseguimos atingir este sentimento. Seja porque George Clooney interpreta o personagem numa mistura de charme e sonambulismo que nunca nos soa desagradável (e que nos faz pensar “when were you not so fucking delicate?”), seja porque o fato do sócio do escritório entrar num surto psicótico a partir de um memorando que, francamente, sempre nos parece pouco mais do que óbvio. Claro, o filme tenta construir nuances aqui e ali (o sócio pirado teria ficado sem tomar remédios, o personagem de Clooney diz que é o tipo de cara que “se compra”, a personagem mefistofélica de Tilda Swinton sua debaixo do braço), mas as nuances são tão friamente estudadas que não podemos evitar que Conduta de Risco soe, do primeiro ao último plano (literalmente) uma obra tão certa de tudo que tem a dizer sobre um determinado tema que nunca consegue nos mover da nossa cadeira – o que aparentemente era boa parte de suas intenções. Talvez se fosse um curta-metragem, composto apenas pelos seus belos primeiros planos, do escritório vazio, o filme resultasse mais contundente a partir de uma mesma sensação.

Corte, O (Le Couperet),
de Costa-Gavras (França, 2005)

por Felipe Bragança
O Corte flerta com o cinema policial, com o suspense, com o drama social, sem dialogar com nenhuma dessas referências – apenas sugando delas o que lhe interessa como muletas de linguagem para discorrer sua tese extra-imagem, extra-cinema. A proposta do filme é a de um jogo pedagógico, de cinismo cômico, cujo foco é um avanço de deboche cítrico contra uma lógica empresarial que o filme mapeia como praga social consensual. A violência naturalizada pela psicopatia do protagonista se acumula na tela de forma reiterativa, levando personagens e elementos de narração apenas a cumprir funções dentro de uma engrenagem de cartas marcadas. A estrutura dramatúrgica engessada e a levada blasé da montagem do filme não seriam um problema a priori se não chegassem ao limite de esvaziar as imagens que o compõe. Não parece haver qualquer sentido de presença física, de imagem orgânica no filme – o que fica claro na decupagem, que muitas vezes se resolve em truques de choque levados como pastiches. Só há, de fato, alguma vida, alguma graça na imagem quando o filme deriva para a sub-trama do filho que rouba programas de computador – mas mesmo essas passagens mais cadenciadas, encarnadas, parecem estar ali para abrir espaço para a emergência final do enunciado que dita o filme como um manual sem desvios de “como usar”. O desfecho, que indica uma intriga de continuidade, não traz qualquer charme especial ou surpresa ao filme, a não ser o de um didatismo sem saída. Pode dar prazer a quem se identifique com o cotidiano empresarial vivido pelo personagem, para quem se vê espelhado nas relações empregatícias robotizadas – mas me parece uma função menor do cinema dar espelhos masoquistas para uma cultura sem encantamento visual. Se o cinema político como desenhado por Costa-Gavras nunca me encantou especialmente, há em seus melhores filmes um sentido de documento, de testemunho memorialista e positivamente ideológico da história, que aqui perde espaço para um pobre teatrinho anti-capitalista. Sinal de um cinema que não consegue mais afirmar seu espaço, sua dinâmica comportamental e ideológica? Parece restar ao filme esse “ser do contra” ingênuo e generalizado, que Costa-Gavras indica achar que se basta, hoje.

C.R.A.Z.Y. – Loucos de Amor (C.R.A.Z.Y.),
de Jean-Marc Vallée (Canadá, 2005)

por Eduardo Valente
Depois de uma primeira sequência que parece indicar uma certa tendência ao humor “esperto” e modernoso, C.R.A.Z.Y. conquista o espectador com um inesperado ritmo mais ralentado e um cuidadoso trabalho com a relação entre os personagens, tanto através de um trabalho de atores muito destacado, quanto pela delicadeza na composição de cada personagem (onde o filme faz uma feliz opção por desenvolver mais alguns deles – especialmente o pai – e deixar outros mais como tipos – o irmão atleta, o irmão intelecual, etc). Sua atenção aos detalhes (o jogo dos olhares entre os atores, a reconstituição de época absolutamente discreta e pouco auto-centrada) diferencia o filme e dá frescor a uma estrutura já mais do que conhecida – a do filme de conflito de gerações. Infelizmente, da metade para o final os tons melodramáticos começam a ganhar peso excessivo no filme, que com isso perde um pouco da leveza que o faz quase flutuar na primeira hora. E, pior ainda, quando o protagonista se exila em Jerusalém, o filme perde de vez o norte – uma vez que o que dava real força ao filme era as relações familiares, com o isolamento do personagem e sua individualização de conflitos, ele se revela bem menos interesse do que como parte de um grupo. Se com isso o filme perde um pouco do seu encanto, nem assim pode ser considerado desinteressante.

Crônicas de Nárnia - Príncipe Caspian, As;
(The Chronicles of Narnia: Prince Caspian),

de Andrew Adamson (EUA, 2008)

por Eduardo Valente
Existe uma curiosa distância entre os recentes fenômenos de bilheteria infanto-juvenis norte-americanos e os livros (ou melhor as séries de livros, uma sacada de resto incrivelmente lucrativa) que os inspiram. Sim, porque da literatura dos Harry Potter, dos Senhor dos Anéis e deste Nárnia, tem sido retirada algo que, na maioria das vezes (e certamente nos dois capítulos vistos até agora desta série aqui), ao invés de remeter às fantasias que seus originais aspiram, se aproximam muito mais de uma realização quase documental. O termo é forte, sim, mas não despropositado: fato é que a tecnologia dos efeitos de computação gráfica têm levado o desejo de verossimilhança no fantástico cinematográfico a um tal paroxismo que o que temos visto cada vez mais é uma aposta em recriar um "mundo fantástico", com suas paisagens, seres míticos e narrativas, da maneira mais fidedigna possível a uma idéia de realidade. Com isso, perde-se de vista toda e qualquer fabulação possível, e o exercício de assistir a filmes como este segundo Nárnia se resume ao espetáculo de maravilhar-se com as proezas cinematografico-realistas dos realizadores. Se esta redução drástica dos poderes encantatórios da ficção cinematográfica fantástica já soava desinteressante há alguns anos, agora consegue nos fazer sentir um precoce dejà vu, onde ajuda muito pouco que este segundo episódio de Nárnia tenha tantas cenas em comum com o que vimos há pouquíssimo tempo na série do Senhor dos Anéis: a batalha na fortaleza de pedra num espaço sem saída, a montagem paralela com a solução que virá em cima da hora, até mesmo a revolta das árvores. Talvez a principal diferença seja esta imagem um tanto perturbadora de meninos empunhando suas ferramentas de matar (que, claro, nunca derramam sangue dos inimigos - afinal não podemos perder a censura livre, mesmo com toda a carnificina na tela), algo que pode soar heróico num livro mas que tornado imagem tão desejadamente "realista" certamente tem algo de soturnamente semelhante a episódios menos felizes da história humana (imagens de nazistas ou de guerrilhas vêm à mente). Se somamos isso ao subtexto claramente cristão do livro, onde o "deus-leão" nos remete à ironia e crueldade do Deus do Velho Testamento, este Crônicas de Nárnia 2 adquire um tom perturbador que, entretido com o que pensa ser sua ode ao heroísmo clean, aparentemente passa desapercebido do diretor Adamson.

Diário de uma Babá, O (The Nanny Diaries)
de Shari Springer Berman e Robert Pulcini (EUA, 2007)
por Fábio Andrade
O Diário de uma Babá é o novo filme de Shari Springer Berman e Robert Pulcini, dupla bastante celebrada por Anti-Herói Americano, de 2003. Se muitos viam na mistura de documentário e ficção do filme de 2003 um bom caminho para o cinema independente americano, não deixa de ser surpreendente que o longa seguinte da dupla viesse a ser uma típica produção de verão dos grandes estúdios norte-americanos. O Diário de uma Babá é herdeiro dos filmes-família que inundavam nossas férias na década de 1990, e que aos poucos vêm perdendo espaço para as franquias à Harry Potter e a linha de montagem dos longas de animação que dominam as salas multiplex nessa época do ano. De fato, a dupla de diretores tenta arejar um gênero já bastante datado com uma construção visual mais inventiva. Em alguns casos, a inquietação formal funciona (as seqüências no museu), e em outros chega a ser de gratuidade francamente constrangedora (o flashback tencionado pela montagem quando Annie, a personagem de Scarlett Johansson, vai embora da casa de praia da família para quem trabalha). Apesar de bons momentos de Johansson e, em especial, de Laura Linney, O Diário de uma Babá não evita o cacoete recente que condena tantos filmes ao desinteresse: ao se propor como investigação de uma elite disfuncional norte-americana (Annie é uma estudante de antropologia, ora pois), o faz sempre com extrema ingenuidade, sem se preocupar em re-trabalhar os clichês que traz para a tela, sem se interessar em pensar o outro. Se essa visão de mundo não convencia em Pequena Miss Sunshine ou em O Diabo Veste Prada, não é O Diário de uma Babá que vem afirmar-se como exceção. Não deixa de ser curioso, porém, que na migração do cenário independente para os grandes estúdios a dupla de Anti-Herói Americano tenha trazido consigo o maior problema do filme de 2003: uma condescendência tão estrita às escolhas de seus protagonistas que empurra qualquer contraste possível para a indignidade. Ao menos dessa vez a babá percebe que o gatão de Harvard pode até ser um cara bacana. Já é um avanço.

As Doze Estrelas, de Luiz Alberto Pereira (Brasil, 2010)
por Paulo Santos Lima
Herculano (Leonardo Brício) recebe a visita do Destino (Paulo Betti), este lhe aconselhando como lidar com um trabalho no qual terá de entrevistar 12 atrizes (Lívia Guerra, Paula Franco, Mylla Christie, Carla Regina, Leona Cavalli, Rosane Mulholland, Martha Meola etc) de signos diferentes, para uma telenovela. Com cada uma, ele terá uma experiência sui generis, a ver com cada um dos signos astrológicos – ou seja, encontrará duas geminianas, uma ariana doida, uma leonina altiva etc., todas representando o que há de mais óbvio e conhecido sobre o assunto. Nem vale a pena discorrer mais sobre o enredo. Estamos num tipo de auto-ajuda/cômico/trash/chanchadesca, que, na conclusão, soa mística e medieval. Esta é a ponta de um iceberg de problemas: más escolhas, um aparente oportunismo, mão ruim para a escrita do roteiro, visão de mundo simplória. O diretor usa atores renomados, coloca nuas algumas atrizes de corpo bem delineado, vai a um tema de apelo popular, opta pela raridade de uma comédia mais escrachada e direta. É uma questão de gosto pessoal, mas não há como deixar de lado a medida do que e como tem de ser mostrado num filme. Homem transformando-se em gato preto, deixando pétalas num labirinto de isopor, correndo seminu, virando menino... enfim, As Doze Estrelas é brega, pois é cafona também aquilo que escorrega pelo excesso, pela reiteração hemorrágica, pelo adorno. A má medida, que está, inclusive, na escolha do lugar onde se coloca a câmera, na falta de senso crítico para achar que um roteiro ou a preparação de um ator está bom... um grau torto para observar as coisas, das que são filmadas às que aparecem reproduzidas na tela. Um filme morto.


Dreamgirls - Em Busca de um Sonho (Dreamgirls),
de Bill Condon (EUA, 2006)

por Eduardo Valente
Sobre Dreamgirls talvez bastasse dizer que trata-se de um musical, com uma quase onipresença da trilha sonora, em que a música é tão ruim quanto a filmagem dos números musicais (cuja incapacidade de criar ambientes pela rapidez de cortes sem nexo no começo “vibrante” é somente trocada posteriormente pela dinâmica da “montagem paralela que nos revela algo” antes de todo número musical terminar em constrangedor – porque saída fácil das cenas, e nada mais – fade out). Mas, mesmo sendo este um “textículo”, convém ir um pouco além das frases bombásticas – por mais fiel ao filme que estas sejam. Convém mergulhar, por exemplo, na realidade de um filme de mais de duas horas em que nunca nos interessamos pelos seus dois protagonistas (Jamie Foxx – constrangedor em suas constantes olhadas para o lado em que “descobre algo” sobre os outros personagens; e Beyoncé – nunca qualquer coisa mais do que uma poster girl, o que até pode ser condizente com sua personagem, mas não cria qualquer empatia ou questão dramática que justifique seu protagonismo). Trata-se, portanto, de um filme totalmente entregue aos coadjuvantes, onde (como bem notou o amigo Filipe Furtado) Eddie Murphy precisa fazer pouco mais do que repetir uma de suas antigas esquetes do Saturday Night Live (uma imitação de James Brown) para parecer estar em outra dimensão de interesse cinematográfico. Já Jennifer Hudson, a outra laureada coadjuvante do filme, apenas se aproveita de ter em mãos o único papel que parece realmente ter sido escrito por algum roteirista – mas não chega a fazer muito com ele. De resto, o filme tem a leveza de um elefante branco ao tentar fazer do nascimento da Motown e de um determinado império do som negro o seu verdadeiro tema – passando por cima dos personagens com o rolo compressor da História. Por trás de sua narrativa, o mesmo dilema que já estava presente em À Procura da Felicidade: como fazer um filme que se coloca contra a dureza de um sistema, quando tudo que seus personagens querem (e, finalmente, conseguem – num suposto happy end) é serem bem sucedidos dentro dele? Pelo menos, dentro da incoerência moral, o filme de Gabriele Muccino alcança inúmeros sucessos como cinema (seja pelas graças de seus atores, seja pela construção de um universo poucas vezes visto da vida na middle america). Já Dreamgirls tem o poder de uma daquelas obras-primas tardias que nos faz querer olhar de novo toda uma carreira não-reconhecida de um cineasta: defensor (embora não entusiasta) que sou dos filmes anteriores de Bill Condon (Kinsey e Deuses e Monstros), sua incapacidade aqui quase faz querer rever os anteriores para saber se eu não estava errado, afinal.

Duas Faces da Lei, As (Righteous Kill),
de Jon Avnet (EUA, 2008)

por Francis Vogner dos Reis
A essa altura da carreira, depois de terem feito juntos aquele que foi um os grandes filmes da década de noventa (Fogo Contra Fogo, de Michael Mann), Robert De Niro e Al Pacino não precisavam de algo assim no currículo. As Duas Faces da Lei é um caça-níqueis que só serve para que seus astros façam a caricatura dos personagens que vêm fazendo há bastante tempo. A impressão é que nenhum dos dois leva mais o cinema a sério, porque até para fazer um “filme biscate” é preciso alguma competência. O filme se centra na investigação de uma série de assassinatos em que as vítimas são criminosos impunes. Claro que as suspeitas recaem sobre Robert De Niro, o tira mau, já que Al Pacino é o cara comedido (o tira bom) que tenta provar a inocência do amigo. Até ai nenhum problema porque premissas vagabundas renderam obras-primas do cinema americano, sobretudo do gênero policial. Mas o problema é que Jon Avnet é um diretor de aluguel (sequer é um artesão regular) e filma como se tivesse que colocar o máximo de informações em um filme com menos de duas horas. As imagens se bastam como informações e pistas necessárias para entendermos o que se passa, como os eventos se desdobram, portanto, não existe cena, só acontecimentos. Como não há cena, seus astros não precisam se aplicar a um trabalho mais rigoroso, é só reproduzir uma série de expressões de outros filmes a que estamos acostumados há pelo menos dez anos: Pacino, hiperativo; e De Niro, rabugento. Uma pena.

Edifício Yacoubian (Omaret Yakobean),
de Marwan Hamed (Egito, 2005)

por Paulo Santos Lima
Se é fato que a sinopse de Edifício Yacoubian não mente, na sua leitura temos a impressão que o tal edifício será um espaço de experiências. No entanto, o centro do filme está na relação (sobretudo verbal) entre personagens, não necessariamente onde eles vivem, transitam, vivem. Não faria diferença, então, se o prédio, a loja de carros, as ruas do Cairo, etc fossem meros cenários. O filme tenta um painel humano amplo, indo do aristocrata decadente e galanteador às mocinhas românticas e interesseiras, dos políticos corruptos ao rapaz pobre que se converte ao islamismo e é torturado pela polícia, do jornalista gay que sustenta um militar casado ao dono de uma loja que bolina suas funcionárias. Fica claro, logo no início, que o dinheiro é uma questão para todos ali, pois a miséria germinada pelo capitalismo é um dos assombros no Egito atual (segundo o filme). O outro é o da contemporaneidade estar arruinando os valores que faziam do Egito um grande país, que faziam do Cairo uma cidade melhor que Paris, sem miséria, sem tristezas etc (segundo o filme, novamente). Se já é problemático esse moralismo saudosista (ou saudosismo moralista), que mais olha pra trás do que para o seu momento, o pior está na dramaturgia e mise-en-scène, pois tudo isso sai da boca dos atores, e muito pouco das imagens. O resultado tem algo de Bollywood, mas sem os espetáculos cafonas das seqüências musicais. Câmera mostra edifício por fora, às vezes, e nos coloca dentro dele, no elevador, em algum meio corredor e já dentro dos apartamentos, onde atores se esgrimam ou se amam – verbalmente sobretudo. Há espaço para uma chanchada mais ousadinha, inclusive com alguns momentos mais espetaculares, como quando o jovem ingresso no Jihad faz treinamento para, tempo depois, atacar a polícia que o seviciou. Mas, até aí, nada além do que as telenovelas espetaculosas da Globo já vêm fazendo há tempos.

Embarque Imediato, de Allan Fiterman (Brasil, 2009)
por Eduardo Valente
No cinema, como de resto em qualquer outra parte da vida, ambições são sempre bem vindas – no entanto, quanto maiores sejam, mais fortes podem ser as quedas. Talvez isso ajude a entender porque a queda que sentimos vendo Embarque Imediato pareça tão grande: aquilo que poderia ser apenas um exercício de gênero sem maiores habilidades ou talento vira um desastre justamente porque almeja ser mais do que isso. Por um lado, há o claro interesse em propor um clima para além do realismo naturalista, sob influência forte dos tons almodovarianos (algo que surge em cena desde uma personagem que fala em espanhol até a relação direta de um personagem com o cinema clássico, aqui via Gilda); por outro, a ambição de fazer uma observação aguda sobre o desejo brasileiro de emigrar para o Primeiro Mundo em busca de oportunidades. O problema é que, no primeiro caso, falta a Fiterman o domínio do artesanato básico do cinema, algo que Almodóvar sempre teve e que especialmente hoje esbanja. Por um lado, Embarque Imediato parece editado com um machado, retirando qualquer possibilidade de clima no interior de suas seqüências já bastante problematicamente encenadas e decupadas (os exemplos são inúmeros, mas a cena de sexo e aquela em que Marilia Pêra aparece fazendo ginástica são os ápices); por outro, no desejo de colocar os atores um tom acima do naturalismo, o filme se perde em desempenhos quase grotescos (ou totalmente, no caso de José Wilker), nos lembrando sempre que a sátira e a farsa não são uma simples exacerbação da realidade para os campos de qualquer comicidade. O que é uma pena nisso tudo é que, no meio de toda a inaptidão de linguagem e no discurso sócio-econômico simplório, há ali um ponto de interesse inegável: a relação amorosa entre um casal tão improvável como o formado por Marilia Pêra e Jonathan Haagensen. Infelizmente, porém, Embarque Imediato não consegue criar nem narrativa, nem dramaturgia que nos permita minimamente partilhar desta relação.

Entre os Dedos, de Tiago Guedes e Frederico Serra
(Portugal/Brasil, 2008)
por Eduardo Valente
É muito adequado que Entre os Dedos tenha início com a retirada do corpo de um homem soterrado em um acidente numa obra. Isso porque o mesmo peso da areia que o matou parece ser o peso do mundo que cada um dos personagens do filme carrega sobre os ombros. Como as opções pela fotografia em preto e branco e pela câmera na mão (do tipo que balança mesmo quando parada) não nos deixam esquecer, se trata de um filme sobre uma realidade nua e (bastante) crua. A câmera está sempre se escondendo atrás de algum objeto ou pessoa, enxergando por frestas de portas e paredes, como que querendo nos revelar alguma "verdade escondida". O que significa, é óbvio, que os personagens se comportarão com uma dureza que só é superada pela dos diretores na delineação da via-crúcis de cada um deles em suas narrativas entrecruzadas. Há algo de interessante (embora não exatamente novo) na exploração da arquitetura urbana degradada e fria da periferia de Lisboa, mas não se trata tanto de uma questão sócio-geográfica, e sim de um estado de mundo mesmo (como deixam claro os personagens de uma mãe e seu filho à beira da morte, igualmente fadados ao sofrimento conjunto, mesmo sendo de uma classe mais abastada). Se há algo que o filme parece querer tematizar em meio a este mundo cão é uma certa necessidade das pessoas de continuarem atadas a quem os causa enorme sofrimento, seja por medo da solidão seja por laços familiares. É uma tese que poderia causar interesse, mas a estrutura sufocante do roteiro e filmagem não deixa espaço quase nunca para o contraditório. O caso é que, ao montar o exato contrário de uma ficção alienada onde todos são absurdamente felizes e tudo dá certo, o resultado acaba sendo quase o mesmo. E tudo terminará em catarse e resignação, claro.

Eragon (Eragon),
de Stefan Fangmeier (EUA, 2006)

por Felipe Bragança
Especialmente mal filmado, mal montado, mal encenado, o filme dirigido por Stefen Fangmeier (dono de curiosa carreira como diretor de efeitos especiais) não consegue sequer se realizar como uma narrativa de peripécias fisicamente entretenedoras. A penúria estética do filme se dá de forma tão consistente que não é possível localizar Eragon como um genérico representante da grife de fantasia anglo-saxônica pós-Senhor dos Anéis. Seu plot de gênero (baseado em best-seller juvenil que, por pior que possa ser, não deve chegar perto da nulidade aqui apresentada) não carrega nenhuma particularidade que dê ao filme uma identidade ou um sentido dentro do universo mapeado da “fantasia”. O que vemos é um espetáculo de glamour forçado e sentimento épico simulado que não consegue ser, em momento algum, mais do que uma imitação de um blockbuster desejado e projetado. O cinema de aventura (desde os primórdios), com suas mazelas todas, sempre foi um lugar possível para a aura e o fetiche da imagem, da sacralidade do que se vê – Eragon, no entanto, ignora inclusive essa herança iconográfica, não conseguindo nada além de banalizar tudo a seu redor: da trilha sonora às interpretações risíveis, da sala de cinema ao pipoqueiro. Autêntico filme-sem-filme, não consegue ser mais do que um jogo de RPG mal-narrado, por um “game master” preguiçoso e sem imaginação.

Estados Unidos Contra John Lennon, Os; (The U.S. vs. John Lennon),
de David Leaf e John Scheinfeld (EUA, 2006)
por Eduardo Valente
O começo do filme faz temer o pior: surge o logotipo de uma TV a cabo americana (VH1), e a introdução ao documentário usa uma sequência de talking heads (termo técnico para aquelas entrevistas bem caretas, onde só aparece o rosto/tronco do entrevistado) com grafismos de um quase inacreditável mau gosto ao fundo. Em seguida, quando começa a narrativa em si, vem um daqueles exemplos do que o jornalismo americano tem de pior: aquelas generalizações explicativas, como se as duas frases pronunciadas sobre a infância de John Lennon (sobre algumas fotos de arquivo) nos permitissem entender tudo sobre aquele homem. É um susto e tanto. Mas, quando o filme se assenta sobre o seu tema (a relação entre John Lennon e o Governo americano entre o fim dos anos 60 e os anos 70), daí por diante o filme entra nos eixos e passa a mostrar o melhor do jornalismo americano: a atenção obsessiva aos detalhes, a busca incansável por materiais numa pesquisa deslumbrante e ilustrativa, e finalmente a questão de ouvir os dois lados (deixando que os representantes do FBI e do Governo Nixon se enforquem por seus próprios meios). E o fato é que John Lennon tem uma história tão fascinante e representativa da sua época, com um manancial inacreditável de imagens e sons disponíveis (já que boa parte de sua "luta" se deu em frente a câmeras), que não dá para negar a força que a obra adquire, de ressonância fortíssima e atual (não por acaso dão entrevistas os atuais luminares da resistência intelectual a mericana - Gore Vidal e Noam Chonsky - e ainda Tariq Ali). Talvez seja um exagero chamar este trabalho de "filme", pelo menos com os conceitos estéticos (mesmo em documentários) que esta palavra carrega. Mas é um senhor programa jornalístico de TV. E que, se a exibição em cinema ajudar a dar maior visibilidade, tanto melhor.

Estranho em Mim, O; (Das Fremde in Mir),
de Emily Atef (Alemanha, 2008)
por Eduardo Valente
O Estranho em Mim estabelece bem rápido sua premissa: Rebecca está grávida do seu primeiro filho, acaba de se mudar para uma nova casa com seu marido, tem uma mãe carinhosa mas distante. O nascimento do filho não vem como uma benção nem um alívio, e sim com um certo clima de horror e de estranhamento: o bebê parece um corpo ameaçador a ela, e os rituais advindos daí (do mais simples cuidado diário ao ato de succionar o leite de seus próprios seios) têm algo de opressor, como a trilha sonora não cansa de indicar. Logo entendemos que a cena inicial, que nos mostrava a personagem caminhando perdida por uma floresta, era um flashforward do momento em que se dá nome, sobrenome e diagnóstico ao seu problema: depressão pós-parto. Pronto, é neste momento em que O Estranho em Mim parece abrir mão de qualquer interesse minimamente construído pela linguagem do cinema que o carregava até ali (e não falamos aqui apenas de efeitos visuais ou inovações de linguagem, mas sim de algo que possa advir de elementos simples como o trabalho de ator ou a construção narrativa ficcional) e se revela como filme “de utilidade pública”. Independente do pedigree artístico adquirido com exibição no Festival de Cannes e afins, estas são suas ambições: esclarecer, ilustrar e ajudar a identificar sintomas e possíveis tratamentos/posturas frente a um mal pouco discutido ou conhecido. Tudo muito nobre, mas o fato é que O Estranho em Mim é pouco mais do que o equivalente do cinema de arte século 21 (leia-se planos lentos, poucas construções narrativas ou psicológicas, cacoetes simples de copiar) ao bom e velho Supercine de sábado à noite sobre uma aflição médica ou patológica. Sintomas, diagnóstico, cura: é disso que se trata, nada mais.

Eu os Declaro Marido e... Larry (I now pronounce you Chuck and Larry),
de Dennis Dugan (EUA, 2007)

por Eduardo Valente
No cartaz brasileiro de Eu os Declaro Marido e... Larry, qualquer dúvida que exista sobre suas verdadeiras intenções e/ou "mensagem" fica bastante sanada: enquanto Adam Sandler tenta pegar na mão de Jessica Biel, Kevin James surge entre eles, como que um amigo intrometido e desagradável que separa aquele tranquilo casal heterosexual. E, de fato, uma vez que assistimos o filme, fica comprovado que sua narrativa fica tão longe quanto a descrição desse cartaz de insinuar qualquer tipo de subversão ou elogio da diferença, como pareceser o discurso corrente em defesa do filme (e que o filme claramente quer pretender incorporar). De fato, é este desejo do politicamente correto à todo custo que torna o filme especialmente incomodativo: a "tomada de consciência" dos amigos (MUITO heteros, insiste o filme em afirmar e reafirmar o tempo todo, com medo de perder a adesão do espectador médio) sobre as injustiças no tratamento com os gays é de uma condescendência impressionante, assumindo o ponto de vista do "homem branco hetero que entende que os gays também são gente". Mas, claro, sem nenhum risco real de contaminação pela doença homosexual e com muitas e muitas piadas (buscando comunhão com o público, sempre) sobre o que aconteceria se, de fato, eles fossem gays. O humor do filme se disfarça num pretenso "amoralismo", que se deseja próximo ao dos irmãos Farrelly, só que não há nunca a aposta pela radicalização destes, muito pelo contrário: o humor aqui é sempre safe, distante, quando não claramente homofóbico, só que "liberal" ("Eu rio porque eu gosto deles, eu posso"). Só que ri de longe, como o patrão que chama um empregado negro de "negão" pra mostrar intimidade com a raça negra e diz "quê isso, sou muito amigo deles..." Spike Lee, se gay fosse, teria no filme um prato cheio para suas ironias. Isso tudo para ficarmos no campo do discurso, já que os campos da estética e construção narrativa são ainda mais inclementes com Dennis Dugan - cuja carreira pregressa, aliás, não faria esperar nada melhor. Há cenas francamente constrangedoras (especialmente as que simulam alguma ação, nos incêndios), opções quase ridículas (como ter Adam Sandler interpretando o que seria um suposto bombeiro sex symbol) e no geral sobra muito pouco para o espectador minimanente exigente: só mesmo o uso simpaticamente discreto da trilha de canções, Ving Rhames rindo de si mesmo e Jessica Biel - pelo conjunto da sua obra.

Eu Matei Minha Mãe (J'ai tué ma mère),
de Xavier Dolan (Canadá, 2009)
por Filipe Furtado
Muito do interesse que Eu Matei Minha Mãe desperta no circuito de festivais deriva da proximidade do jovem cineasta para com seu material. O próprio Dolan interpreta o adolescente gay que mantém uma relação de amor e ódio com sua mãe, e é inegável a energia que injeta no filme. Seria extremamente injusto chamar Dolan de charlatão, pois por mais óbvios que sejam boa parte dos recursos “artísticos” do qual lança mão é visível que trata-se de um filme sentido. O problema é que nada disso impede Eu Matei Minha Mãe de ser um filme, no fundo, muito tolo. O apelo de um diário adolescente em forma de greatest hits de cinema de arte pode ser grande, mas seu limite é óbvio. Na maior parte do tempo, Dolan varia o registro entre o psicodrama quase amador e a diluição de muitos filmes melhores. Resta uma ou outra cena que despertam algum interesse e uma impressão de que tudo é um tanto calculado demais (como a decisão de incluir uma cena em que o namorado aponta como o alter-ego de Dolan é difícil próximo ao fim do filme). Fica também a certeza de que entrega e a energia do cineasta nunca compensam de todo sua falta de talento.

Evocando Espíritos (The Haunting in Connecticut),
de Peter Cornwell (EUA, 2008)
por Eduardo Valente
Não é sem relevância para expor os problemas deste Evocando Espíritos notar o destaque quase exagerado dado no seu crédito inicial para o fato dele ser “baseado na história real” – algo que se reafirma em seguida com o filme sentindo a necessidade sem muito nexo de começar com Virginia Madsen dando uma entrevista sobre “o que aconteceu”, atrelando sua personagem a uma realidade externa ao filme. Claro, existe o fator “nossa, será que algo assim realmente pode acontecer?”, mas o que parece mais determinante é esta mania do horror americano (especialmente o mais recente) de precisar adequar o sobrenatural a uma determinada lógica – na maior parte do tempo, gastando boa parte de sua trama (como é o caso aqui) tentando “entender o que está acontecendo”. Nenhum espaço, portanto, para o que realmente nos fica do melhor do cinema de horror: o sobrenatural em estado bruto, o incompreensível, tudo aquilo que não é, portanto, “baseado em realidade”. Se este é um defeito de nascença a (com o perdão do trocadilho) assombrar este Evocando Espíritos desde o começo, ainda assim poderíamos ver elementos de interesse fortes como a própria idéia que liga um doente incurável ao mundo dos mortos (e a presença física do protagonista do filme como um zumbi é bem marcante) ou a imagem de uma casa praticamente construída de cadáveres. No entanto, não interessa de fato a Cornwell ou aos produtores do filme gastar muito tempo ou pensamento em busca de idéias a explorar com alguma ousadia, novidade ou visceralidade: sua agenda é outra, a de somente bater ponto em “mais um filme de horror americano”, contando para isso exclusivamente com clichês inexplicáveis – não no sentido sobrenatural, infelizmente (como a presença das duas crianças); e uma estética acéfala e exagerada (especialmente no uso da espacialidade do som, banal e estridente, causando total distanciamento).

Família do Futuro, A (Meet the Robinsons),
de Steve Anderson (EUA, 2007)

por Felipe Bragança
Quando John Lasseter (Toy Story) assumiu os estúdios Disney de animação, veio com a promessa de que iria fazer de tudo para resgatar a vitalidade e a criatividade vividas nos anos 40-50-60. Esse A Familia do Futuro, primeiro filme dessa nova safra, parece ser antes de tudo um cartão de visitas dessas possilidades, na sua tentativa de atualizar a dramaturgia do conto de fadas Disney sem perder o sentido de fábula (longe da ironia, da paródia) ou de exercício moral de sua narrativa. Consegue fazer isso com graça, um roteiro detalhista e que se abre a um humor menos infantil e adocicado, ainda que faça isso em um ritmo dramático por demais acelerado. Uma homenagem ao animador-empresário Walt Disney,no elogio do gesto visionário e da criatividade, assim como uma reafirmação dos velhos "valores familiares" agora em um hipérbole quase circense de um futuro próximo. Com personagens bem delineados, mas pouco desdobrados (destaque para o vilão inspiradíssimo), o filme dirigido pelo estreante Steve Anderson se apresenta como um piloto do que poderia vir a ser uma série de TV ou de cinema, faltando-lhe a consistência para se colocar em destaque no imaginário Disney – que se faça a anotação, porém, de que não foi visto no formato 3D em que foi lançado em algumas poucas salas. Ainda que plenamente esquecível, mostra o potencial que essa arejada de estilos e pegada, trazida por Lasseter, pretende levar ao estúdio mais tradicional da animação norte-americana. Ficamos ainda na expectativa. 

Filhos da Esperança (Children of Men),
de Alfonso Cuarón (EUA/Inglaterra, 2006)
por Eduardo Valente
Há cinco anos, Filhos da Esperança seria politicamente revolucionário. Mas, qual valor real tem um filme de ficção “futurista” que afirma uma crise ecológico-política para daqui a vinte anos, quando até mesmo a Veja e o Fantástico já concordam com isso? E esse é o grande problema do novo filme de Alfonso Cuarón: para além de sua dimensão mais óbvia e direta (de uma cautionary tale de como o presente nos indica que o futuro do mundo é negro) ele tem pouco, muito pouco valor cinematográfico. Claro, em se tratando do diretor que nos deu E Sua Mãe Também e aquele que é de longe o melhor Harry Potter (Prisioneiro de Azkaban), o filme possui algumas boas cenas (curiosamente, quase todas baseadas no uso “espetacular” do plano-sequência, começando pelo da morte de Julianne Moore – realmente impressionante – e terminando com o resgate do bebê no prédio sob ataque). Mas isso não chega a esconder uma ficção cujo impacto é todo baseado na encenação (sob o manto de “futuro sombrio”) da realidade atual do Iraque numa cena, da Palestina na outra, da África em outra, de Guantánamo ou Abu Ghraib em outra. Com isso, sobra muito pouco espaço para a “ficção” de fato, e aqui nem falo da ficção científica, mas sim da abstração sobre a realidade. Todos os personagens servem exatamente aos propósitos que o filme anuncia desde suas entradas em cena, e a câmera na mão nos lembra o tempo todo que se trata de algo “realista”. No fundo, Filhos da Esperança quer ser uma versão “cinematográfica” de Uma Verdade Inconveniente, mas mal consegue ser uma versão não-exploitation de O Dia Depois do Amanhã.

Fonte da Vida (The Fountain),
de Darren Aronofsky (EUA, 2006)
por Pedro Butcher
Fonte da Vida talvez seja o exemplo mais próximo de como o cinema pode ser kitsch (para usar um termo fora de moda). O sentimentalismo e uma certa autopiedade são o motor desse filme sobre um médico (Hugh Jackman) que tenta descobrir a cura para o câncer enquanto um tumor cresce no cérebro de sua mulher (Rachel Weisz). Se a ciência não poderá ser redentora, a arte poderá. As experiências do médico falham, mas caberá a ele completar o livro que sua mulher deixou incompleto, sobre um cavaleiro espanhol que foi à América Central em busca de árvore da juventude – uma história que é apresentada paralelamente, com os mesmos atores. Tudo isso permeado por uma terceira subtrama, de tom filosófico-religioso, que visualmente é uma das coisas mais cafonas que o cinema contemporâneo já produziu. 

Frost/Nixon (idem), de Ron Howard (EUA, 2008)
por Eduardo Valente
Assistindo a este Frost/Nixon, não chegamos ao final com qualquer dúvida sobre o que pode ter fascinado Ron Howard para realizá-lo: a entrevista real entre o David Frost e o Richard Nixon originais tem, claramente, a potência de um daqueles momentos humanos e audiovisuais bigger than life que fascina e faz sonhar. Só que também são momentos como esse que, depois de ver o filme realizado por Howard, nós preferíamos que ficassem eternamente preservados do tratamento for dummies que o diretor dá ao material (como seria de se esperar de quem conhece seus filmes anteriores). Sim, porque ao querer encenar o entorno de um momento histórico, Howard deseja nada mais do que simplificá-lo ao mínimo denominador comum do entendimento da ficção cinematográfica. Daí, dá-lhe formato de falso documentário sem qualquer nexo para além de poder explicar minuciosamente tudo aquilo que não precisava ser (especialmente os sentimentos de cada um dos envolvidos, e sua evolução cena a cena). Dá-lhe overacting, seja pelo caminho da imitação histórica (Frank Langella, Michael Sheen), seja dos personagens anônimos (Oliver Platt, Sam Rockwell), todos usando a lógica da construção que visa atingir complexidade pela simplificação, ou seja: os personagens se resumem a uma ou duas características que desejam sublinhar sua “humanidade”, e ficam repetindo-as ao máximo (exceção para Rebecca Hall e Matthew MacFadyen, que conseguem existir, uma pela persona assumidamente unidimensional que resulta mais adequada ao “tratamento Howard”; o outro, por seu personagem não ter um arco próprio óbvio, resultando curiosamente complexo). Dá-lhe, finalmente, desejo claro de igualar o duelo de palavras a um duelo de boxe, resultando numa estrutura que transforma um dos grandes momentos de contato entre a política e o entertainment na história numa simples reedição falada da simplicidade de um filme de Rocky (azarão começa apanhando, apanha mais e mais, mas descobre sua força interior, e vira a luta no final against all odds). Mas, ok, o filme tem uma qualidade: dá uma vontade grande de ir conhecer o material original, e assim tentar esquecer a versão “PG-13”.

Grilo Feliz e Os Insetos Gigantes, O;
de Walbercy Ribas e Rafael Ribas (Brasil, 2009)
por Eduardo Valente
Nem mesmo para o mais sisudo dos críticos é fácil escapar da tentação de capitular frente a um filme que, ao mesmo tempo, quer se colocar como alternativa nacional aos filmes para o público infantil (e que, por isso mesmo, poderia ser o começo de um processo de formação de público), e luta para conseguir firmar um mercado de trabalho real para os animadores nacionais no cinema. Politicamente, a agenda parece impor o elogio ao simples ato de realizar, de chegar ao fim. Mas será que é isso mesmo que os animadores ou os realizadores de filmes para o público infantil desejam: esta condescendência piedosa que, ao fim e ao cabo, os relega ao papel de artistas/artesãos de segunda classe que precisam ser protegidos só por existirem? Torcendo que não, o que nos resta é constatar que este segundo filme dedicado ao Grilo Feliz repete aquela que já era a mais marcante insuficiência do primeiro: uma incapacidade de fazer com que a partir de sua combinação de personagens eventualmente promissores e uma capacidade inegável de criar ambientes visualmente atraentes consiga resultar algo mais que um amontoado de cenas que nunca compõem de fato uma narrativa com o menor resquício de uma lógica interna ou de desenvolvimento satisfatório de personagens e tramas - ou seja, nada que se deva a insuficiências técnicas/tecnológicas. Pois se fosse pouco, aqui soma-se um preocupante dado à equação: na busca de um "tema urgente", este segundo filme abraça um ataque à pirataria que enxerga a função do cinema infantil segundo tintas de um didatismo tacanho, moralizante e capitalista, com requintes de calhordice como colocar o "heróico" personagem principal dizendo coisas como "dinheiro é bom". Mas talvez faça todo sentido ser este o triste fim de um personagem nascido como garoto-propaganda em publicidades dos anos 70.

Homem de Ferro 2 (Iron Man 2),
de Jon Favreau (EUA, 2010)
por Eduardo Valente
Em meio ao desfecho da ação de Homem de Ferro 2, uma cena bastante desimportante no todo de sua trama nos deixa entender um pouco melhor o inegável charme que o filme possui. Nesta, o personagem do motorista (interpretado pelo mesmo Jon Favreau que dirige o filme) diverte-se e se excita vendo Scarlett Johansson trocar de roupa no banco traseiro de seu carro, enquanto dirige rumo a um confronto com o grande vilão da história. Que ali tenhamos o diretor do filme em cena acaba servindo como símbolo perfeito do que Homem de Ferro 2 nos faz sentir ao longo de toda sua duração: um sentimento incontornável de enorme diversão; do prazer deliciosamente tolo de receber milhões de dólares para colocar Johansson em cena como uma femme fatale moderna, acompanhar Robert Downey Jr dar um pequeno show de interpretação jocosa e/ou brincar de efeitos visuais de última geração para explodir coisas e criar batalhas entre máquinas de guerra. Ainda que possua uma relação inegável com o contexto atual das relações internacionais, claramente Homem de Ferro 2 não se pretende um sério discurso/análise/metáfora destas, mas tão somente parte deste espelho distorcido para, como cabe muito bem a um filme baseado em HQs pulp de super-heroi, divertir-se enormemente. E aí é que o toque de Favreau, um comediante de origem, se revela especialmente feliz: mais do que as competentes cenas de ação, o segredo do interesse de seu filme está no domínio do timing dos seus atores (principalmente Downey Jr, claro, mas também os muito bem escalados Sam Rockwell e Mickey Rourke, ou até mesmo o bom uso de Gwyneth Paltrow como uma espécie de Kathryn Hepburn moderna), que criam um sentimento de playfullness constante. Não por acaso falamos em pulp: todas as cenas de Nick Fury e da SHIELD, principalmente a conversa na lanchonete entre Downey Jr e (claro) Samuel L. Jackson, fazem pensar muito no cinema dos primeiros Quentin Tarantino. Retomamos aqui o prazer da palavra, da performance, do prazer por habitar o domínio absoluto da ficção. Só que Favreau deseja, ainda mais do que Tarantino, refastelar-se no pulp, sendo parte dessa indústria ao mesmo tempo que parece rir-se dela (ao invés de enxergá-la e retrabalhá-la de fora e a posteriori). Com isso, propõe uma categoria não prevista por Pound ou Scorsese: entre os artesãos e os “smugglers”, Favreau é um autêntico artesão smuggler.

Honeydripper – Do Blues ao Rock (Honeydripper),
de John Sayles (EUA, 2007)
por Eduardo Valente
John Sayles tem quase 30 anos de carreira como um dos diretores americanos independentes mais coerentes dentro de sua trajetória, através de algumas eras bem distintas no significado que o termo adquiriu. Nesse sentido, talvez, ver este Honeydripper chegar à luz do sol do mercado distribuidor não deixe de ser um tributo a uma carreira mantida à moda antiga, trabalhando em reescrever roteiros para os grandes estúdios como maneira de se manter enquanto realiza pequenos filmes com orçamentos mínimos. No entanto, o filme também representa uma certa encruzilhada para o realizador, que hoje (e de algum tempo) já consegue o reconhecimento de um bom nome de grandes atores (neste aqui podemos ver quase um all-star dos atores negros da classe B americana – sendo a classe A reservada para figuras como Will Smith, Denzel Washington, Halle Berry, etc) e pode se propor a aventuras que exijam um pouco mais de orçamento, como esta reconstituição histórica dos anos 50 no sul dos EUA. O problema é que, entre as necessidades de justificar este orçamento e responder a certos anseios que vêm com um elenco como este, Sayles parece aqui bastante engessado, realizando um filme que aponta questões elementares do seu cinema (como a discussão social dentro dos EUA), mas que parece quase sempre se resolver de maneira morna, quase didática. Ao acumular elementos muito explorados do imaginário negro daquela época e local (o blues, a colheita do algodão, a herança da escravidão sempre viva, etc), Sayles parece mesmo um professor de história daqueles que elenca “causas e conseqüências” de um processo, num movimento que resulta sempre um tanto redutor das possibilidades individuais de seus personagens. Assistimos ao filme, assim, com um desejo maior de apreciá-lo do que ele realmente nos permite fazer.

Horton e o Mundo dos Quem! (Horton Hears a Who!),
de Jimmy Hayward e Steve Martino (EUA, 2008)

por Nikola Matevski
O consenso crítico sobre animações blockbuster veio à tona novamente em Horton e o Mundo dos Quem!: laureia-se a "técnica", termo genericamente aplicado a tudo o que resulta nas imagens do filme, enquanto o roteiro é uma esfera autônoma que usualmente esquenta discussões sobre as lições moralistas ou outros valores implícitos à narrativa. Não há nenhum problema na moralidade representada no mundo de Horton, mas na maneira como personagens tornam-se vozes dessa moralidade. Se na fábula criada originalmente por Dr. Seuss os animais são veículo para representar as ambições humanas maiores do que eles, na adaptação dirigida por Jimmy Hayward e Steve Martino suas motivações e valores surgem da interioridade (da psicologia, do caráter) em detrimento da superficialidade. Disney, em suma. Porém, o filme sofre seriamente com isso apenas nos minutos finais e até lá vemos algumas liberdades interessantes no uso da animação para construir a atuação, especialmente no prefeito do Mundo dos Quem.Em determinados momentos sua gestualidade é curiosamente "borrachuda", ou seja, há manipulações arrojadas nas transições entre as expressões faciais e movimentos das extremidades do corpo. Assim, um braço amortecido por uma injeção de anestesia torna-se um veículo para algumas gags físicas - para ser humanizado, o corpo não imita simplesmente os movimentos humanóides (como ocorre em Happy Feet, Shrek, etc), mas explora algumas possibilidades únicas da animação para gerar movimentos exagerados que caracterizam certeiramente a atuação. Algumas pontas dessas qualidades podem ser vistas no trailer oficial do filme. Infelizmente, essa é uma característica inconsistente, que parece ter sido mantida sob controle (pela direção? pelos executivos?), porque em momentos-chave somos novamente dirigidos para a habitual quota de templates genéricos de expressões (alegria, tristeza, etc) que infestam os cartazes de divulgação do filme.

Iluminados, de Cristina Leal (Brasil, 2008)
por Eduardo Valente
Há uma idéia interessante em Iluminados: pedir a seis grandes fotógrafos do cinema brasileiro (entre eles o desde então falecido Mario Carneiro, que vemos na foto ao lado) que proponham iluminações e decupagem para uma mesma proposta de cena realizada num estúdio. A estrutura do filme, então, passa a ser esta: acompanhar como cada um deles realiza esta tarefa, ao mesmo tempo em que se intercala este processo com depoimentos dos seis para a câmera, falando de suas carreiras e das imagens que mais os marcaram no cinema brasileiro (e mundial também). Claro que, esteticamente, o exercício em si é o forte do filme, com cada fotógrafo revelando um olhar e forma de trabalhar, mas talvez o que mais marque o espectador sejam mesmo as inúmeras cenas pinçadas da história do cinema brasileiro, que acabam nos chamando a atenção para aspectos da história das imagens deste. No entanto, nem um nem outro conseguem mudar a sensação de que estamos vendo no cinema algo que está no suporte errado: Iluminados parece que funcionaria melhor como uma série semanal de TV (no Canal Brasil, claro, pois nenhum outro canal se interessaria pelo tema), principalmente por quebrar com a aleatoriedade que sentimos na escolha dos seis fotógrafos retratados (o filme nunca se pronuncia sobre esta escolha), uma vez que, como a exibição no começo do filme de um sem número de fotografias paradas de rostos de fotógrafos trabalhando deixa bem claro, poderíamos ter várias outras análises combinatórias. A sensação é que o filme não tem em si um discurso para além do desejo de deixar os fotógrafos falarem um pouco, exibir cenas do seu trabalho e do cinema nacional e montar a tal cena. Tudo ótimo, mas que poderia ser reproduzido na TV com mais espectadores e com mais fotógrafos, atingindo resultados mais potentes.

Inversão, de Edu Felistoque (Brasil, 2009)
por Filipe Furtado
Em conjunto com alguns outros filmes recenes (Bellini e o Demônio ou Sem Fio sendo bons exemplos), Inversão é um exemplo de um cinema brasileiro que, na busca de tentar chegar ao que seria um cinema moderno e contemporâneo, termina incapaz de produzir um único plano de cinema. Não há uma única imagem articulada em Inversão: dois planos que construam um sentido, um posicionamento de câmera que sugira que se gastou mais que alguns segundos se considerando como filmar determinada seqüência. Basta dizer que o mais próximo de um pensamento estético em Inversão é tentar sugerir uma doença generalizada através de filmar mais da metade do filme com um filtro verde-vômito. Fora isso, estamos diante de um típico exemplar de um cinema completamente incapaz de existir simplesmente como tal, com sua trama de gênero seqüestrada por uma constante tentativa de ser mais do que isso. Não deixa de ser impressionante a tentativa do filme de se colar nos ataques do PCC em busca de significância, a despeito de que sua única função no filme seja justificar o casting de Marisol Ribeiro como a menos crível delegada da história do cinema. Nesse tipo de vampirismo da realidade extra-tela, o projeto de Felistoque deixa de ser só incompetente, e se torna um tanto torpe.

Janela, A (La Ventana), de Carlos Sorin
(Argentina e Espanha, 2008)

por Julio Bezerra
Carlos Sorin (Histórias Mínimas, O Cachorro) vem sendo muito associado a uma espécie de “minimalismo” estético. Uma acepção talvez apressada de seu cinema, pois se é verdade que o realizador argentino se restringe à contenção dramática e à introspecção de sensações e sentimentos, a mão por vezes incrivelmente pesada de Sorin acaba quase sempre configurando seu minimalismo como uma certa prisão estética. Isso é evidente neste A Janela, em que um escritor em idade avançada espera acamado o retorno de um filho pródigo enquanto encara a iminência da morte. A janela de seu quarto funciona como uma fresta não só para o mundo, como também para o universo de suas memórias. Sorin aborda a velhice como um estado físico, e este será um filme sobre o tempo (de sua sobra e de sua falta). Pena que o cineasta faça questão de reafirmar isso o tempo todo, povoando o filme com o tilintar de relógios ou até mesmo de planos-detalhes dos mesmos. Como em seus outros filmes, tudo é da ordem da simplicidade (talvez o melhor termo para descrever seu cinema): Sorin dá ênfase aos gestos, aos pequenos diálogos, aos detalhes. Não há reviravoltas, transformações ou sentimentos mais carregados. O desejo é por um lirismo das pequenas coisas, por uma transcendência no cotidiano mais banal. Sorin persegue a beleza, mas não nos coloca em um contato mais próximo com os seus personagens e suas circunstâncias. Nós somos seduzidos pela perseguição e pela beleza quando encontrada; mas permanecemos distantes. O fato é que A Janela fica preso a uma certa cartilha. Falta textura às suas criaturas e às situações que as envolvem. A estratégia de aproximação com o personagem não se configura como uma verdadeira aproximação.

Jogo de Amor em Las Vegas (What Happens in Vegas),
de Tom Vaughan (EUA, 2008)

por Eduardo Valente
Desde que o cinema é cinema que a comédia romântica segue as mesmas regras: homem conhece mulher, homem e mulher se estranham no começo, homem e mulher vão se acertando, homem e mulher se amam no final. De fato, a comédia romântica só não é tão velha e previsível quanto os dilemas amorosos de homens e mulheres, que revolvem em torno de mais ou menos as mesmas coisas desde que o mundo é mundo - o que antecede o cinema em alguns séculos. Até por isso não faria o menor sentido se opor a este Jogo de Amor em Las Vegas baseado na sua previsibilidade como narrativa - até porque inúmeros outros filmes do gênero seguem o mesmo modelo e atingem píncaros de qualidade (só para ficarmos no hiper-recente, lembremos de Ligeiramente Grávidos, de Judd Apatow e de Antes Só do que Mal Casado, dos irmãos Farrelly). Só que Tom Vaughan, um senhor ninguém da TV americana, não tem o menor interesse em ser Apatow ou os Farrelly. De fato, ele não tem o menor interesse pelo cinema. Sua missão em Jogo de Amor em Las Vegas lhe parece simples e direta: basear-se no star power de seus dois protagonistas, copiando todos os tiques de atuações dos personagens pelos quais eles ficaram famosos, usar o roteiro mantido de pé por apenas uma premissa esperta (o enriquecimento repetino após um casamento movido pela bebida em Las Vegas) e... bem, e é isso. Só que Vaughan parece esquecer dois dados essenciais: que o verdadeiro humor vem do inesperado, da possibilidade de ver algo por um lado ainda não visto; e que não há bom humor "a favor", o humor é um gesto contestatório por definição. E isso é tudo que não existe em seu filme, não deixando dúvidas do porquê ele não tem qualquer graça. Não é a narrativa que é previsível por seguir um modelo eterno baseado nas relações humanas: são todas as suas piadas que são previsíveis porque se baseiam na colocação de câmera mais óbvia, patética mesmo; no tique de interpretação mais fora de tom, exagerado; no comportamento de personagens mais fora da lógica que os constrói a cada cena. O humor tenta ser retirado a fórceps, e está sempre a favor: da moral mais vagabunda, da estética mais porca, do comércio mais puro. Não há cinema para se analisar em Jogo de Amor em Las Vegas, porque nenhum dos seus realizadores assim deseja ou se importa.

Jumper (idem), de Doug Liman (EUA, 2008)
por Eduardo Valente
David Rice (Hayden Christensen) faz uso do seu poder de teletransporte com o único objetivo de se tornar um proverbial playboy, com renda garantida, mulheres, viagens. Acima de tudo, ele é cool: surfa as maiores ondas, pega as mais belas mulheres. Claro que, ao longo do filme, ele aprenderá que "com grande poder, vem grande responsabilidade" - afinal as histórias de heróis, especialmente os jovens, são feitas disso desde que o mundo é mundo. No entanto, o que o herói de Jumper tem de diferente é sua necessidade de viver a vida "à toda velocidade": não tem paciência sequer para atravessar a rua sem se teletransportar, de subir no seu prédio na velocidade do elevador. E aí, o herói se transmuta na própria forma do filme, pois Jumper representa um cinema de ação "sem tempo a perder": cenas de ação hiper-cinéticas ao ponto da incompreensão, pouco tempo para se dar a conhecer com personagens e tramas, nenhuma preocupação com coerêcia de qualquer espécie. Interessa a Jumper não perder o contato com seu espectador, indo sempre em busca do mínimo denominador comum narrativo, e rápido, sempre bem rápido. Doug Liman fazia outro dia num jornal carioca a defesa de um cinema de efeitos especiais "físicos", ou seja, que use ao máximo situações e locações reais. No entanto, se Jumper de fato vai a Roma, ao Egito e ao Japão para filmar, ele o faz através da imagem mais simples e facilmente reconhecível de cada lugar, pois não há tempo a perder com aclimatação. Seu olhar equivale ao do turista hiper-apressado que precisa ir logo para o próximo ponto a fim de "conhecer tudo", sem conhecer nada - não por acaso a parede da casa do personagem principal parece cheia de cartões postais, como se sua vida se resumisse a um passeio apressado. Num determinado momento do filme, nosso herói vira-se para alguém e pede: "skip the boring parts" ("pule as partes chatas"). Num mundo mais honesto, esta seria não apenas a frase que resumiria o filme, mas todo um modo de olhar o mundo (e essencialmente o cinema) que Jumper representa. Neste sentido, talvez, o filme seja um exemplar valioso para entendermos o olhar do adolescente de hoje - ou, pelo menos, do adolescente que o filme idealiza como o seu público.

Killshot - Tiro Certo (Killshot),
de John Madden (EUA, 2008)
por Julio Bezerra
Killshot – Tiro Certo veio ao mundo de maneira conturbada: foi filmado há quase quatro anos; sofreu uma série de versões de roteiro; algumas de suas seqüências tiveram de ser refilmadas; e a estréia este ano nos EUA foi em míseras cinco telas. Essa história talvez explique muito sobre as fragilidades desse filme, pois a impressão que ele passa é a de auto-sabotagem. Baseado em romance homônimo de Elmore Leonard, John Madden (Shakespeare apaixonado) mistura os ingredientes tradicionais do escritor e aposta em uma descrição dura e seca do mundo do crime. Em termos de mise-en-scène, o que se vê é o esboço de uma proposta quase física de cinema, em que Mickey Rourke, como o matador Blackbird é mais uma vez a grande atração. Ele é um “grande mistério”, uma aparição: a câmera o persegue, hipnotizada. Rourke corporifica as tensões de seu personagem, suja e modula as ações do longa. Quando abre a boca, no entanto, suas falas entram com dificuldade nos ouvidos. Os diálogos (a adaptação do romance foi feita pelo próprio Elmore Leonard, em parceria com Hossein Amini) prejudicam a atuação do elenco de maneira geral – em especial a de Joseph Gordon-Levitt que, como o marginal que Blackbird “apadrinha”, extrapola na afetação, como se estivesse em um filme mudo. As subtramas crescem de maneira inesperada, com Madden direcionando muito de nossa atenção para as caracterizações psicológicas de seus personagens – de todos os seus personagens. O filme começa com uma narração em off em que Blackbird sublinha "que é preciso saber onde você está se metendo". Killshot, no entanto, quebra essa afirmação: parecendo não ter rumo ou foco é um filme sem personalidade.

La León (idem), de Santiago Otheguy
(Argentina/França, 2007)

por Eduardo Valente
Na medida em que começa com pequenos barcos e canoas que correm por rios argentinos, em lentos travelings laterais e frontais, La León já nos remete a Los Muertos, o filme que projetou há três anos o também argentino Lisandro Alonso. E, de fato, apesar da escolha aqui de uma fotografia cujos tons de cinza nos fazem pensar mais nos filmes do húngaro Béla Tarr, a aproximação faz sentido: assim como no filme de Alonso, em La León o que importa é mergulhar o espectador num ambient cujas regras de sobrevivência no dia a dia ele desconheça. Só que aqui, ao invés de acompanharmos um só personagem, como era o caso com o Argentino Vargas de Los Muertos, Otheguy tenta montar um pequeno filme-tableau de um grupo de personagens envolvidos com situações ao mesmo tempo banais e limítrofes numa região pouco conhecida, na Bacia do Paraná (e aliás um dos problemas de recepção do filme é que ele explica pouco sobre a situação sócio-política local - o que nem seria sua obrigação como filme de ficção, mas que nem por isso deixa de ser algo que sentimos que nos falta para compreender o todo do que se passa). Além da opção pelo PB, há mais diferenças marcantes quanto ao filme de Alonso, como a opção pelo uso de atores profissionais como Jorge Román (o protagonista de El Bonaerense) e Daniel Valenzuela (de Mundo Grua e O Pântano, entre outros) - no entanto, curiosamente nenhum dos dois atinge o carisma na tela que o não-ator Argentino Vargas tinha. E é um pouco este o principal problema de La León: sem um foco real de empatia na tela, a impressão para o espectador é mais a de acompanhar um experimento estético, eventualmente até bem sucedido, do que de mergulhar de fato num outro tempo/tradição como parece ser o desejo do filme.

Lemon Tree (idem), de Eron Riklis
(Israel/Alemanha/França, 2008)

por Eduardo Valente
Uma viúva palestina solitária é dona de um limoeiro que é a grande memória viva de sua família. Certo dia, o ministro da Defesa de Israel (logo quem!) resolve se mudar para o terreno vizinho, e o Serviço Secreto israelense decide que aquele limoeiro é extremamente perigoso como possível refúgio de terroristas, por isso manda derrubá-lo. Daí começa uma guerra judicial entre o Estado israelense e esta pobre palestina. Por que começar um texto crítico sobre um filme por uma sinopse alongada como esta, algo tão pouco comum aqui na Cinética? Porque todos os interesses cinematográficos do filme de Eran Riklis são resumidos por esta sinopse, e o filme que surge na tela é tão somente uma transposição das explorações mais óbvias possíveis da mesma através de uma narrativa ficcional realista. Lemon Tree é um filme absolutamente claro nos seus objetivos: usar o modelo de uma ficção “político-humanista” para “esclarecer” o espectador sobre aspectos da realidade da região em questão (não por acaso há uma preocupação com uma localização geográfica das cenas com créditos na tela, transitado por espaços que vão da Cisjordânia a Jerusalém), ao mesmo tempo em que o “emociona” com a constatação de que os seres humanos podem ser bons e poderiam resolver as questões se “apenas se comunicassem”. Aqui e ali há pontos de interesse (como o romance entre a viúva e seu advogado, ou as imagens do muro que Israel constrói para cercar os palestinos, sempre filmado com uma menor qualidade de imagem de vídeo), mas eles são constantemente pouco ou mal explorados pelo filme, cujo interesse claro é o de urdir uma narrativa que mistura inúmeras improbabilidades de relato (algo absolutamente inerente à ficção que se assume como tal, mas problemático quando ela se disfarça de realidade como esta) com simplificações grosseiras (onde a personagem da ajudante do ministro talvez seja a mais obviamente esdrúxula, mas longe de ser a única). Tudo convergindo para a imagem “poética” final (que de poesia nada tem, porque sua interpretação é única e inequívoca), que, no fundo, é tudo que se queria dizer/mostrar desde o começo. Melhor se fosse um curta, ou ainda, uma foto – menos tempo seria gasto pela parte dos que não se “emocionam” com todo o lugar-comum das cartas jogadas pelo filme.

Libertino, O (The Libertine),
de Laurence Dunmore (EUA, 2004)
por Eduardo Valente
Não parece exagerado supor que o lançamento (e continuidade em cartaz) por aqui do desconhecido filme de Laurence Dunmore tem muito a ver com a simplicidade da imagem do seu cartaz: Johnny Depp, sex-symbol maior da platéia feminina cult (e, pós-Piratas do Caribe, da nem tão cult também), com a palavra "libertino" escrito em cima dele - uma correlação de idéias cuja promessa parece quase irresistível para esta platéia. No entanto, O Libertino é um filme que não se parece em nada com algo palatável pelos parâmetros do circuitinho de arte brasileiro atual. Aqueles que esperam ali um pouco de softcore com atores e dublês em elegantes reconstituições de época, se depararão com um filme muito pouco amigável, programa nada recomendado para as alegres noites de sábado. Já no primeiro plano, Depp olha a platéia de frente em plena penumbra (num plano curiosamente parecido com o posterior plano de abertura de O Plano Perfeito, de Spike Lee), e avisa que nós não gostaremos dele. A secura extremamente auto-consciente deste primeiro plano, e sua proposta desafiadora (a de um protagonista antipático e amoral), serão bastante abrandadas ao longo do filme, na medida em que a trajetória de seu personagem embarca por uma via-crúcis que inclui decadência física causada por doença - o que, inevitavelmente, lhe empresta um caráter trágico (e, portanto, passível de comoção da platéia). De fato, esta duplicidade não escapa ao filme, que parece buscar construir-se justamente no embate entre a compreensão e o desprezo que o espectador deve sentir pelo personagem. Mas, a dramaturgia com que o filme tenta construir esta história dá espaço a um outro embate, e este é que acaba trabalhando contra o projeto. Na opção por uma estrutura narrativa que siga e tente dar continuidade cronológica aos vários acontecimentos da vida do personagem e aqueles que o circundam, o filme encontra um obstáculo ao seu outro componente, eminentemente ensaístico, que busca lançar questões nada pouco complexas sobre a existência humana. Tentando dar voz simultânea a estes dois filmes não é tarefa fácil, e ambos acabam perdendo: os personagens secundários flutuam demais pela história para realmente nos importarmos com eles (e seu efeito no personagem), e a verbalização dos dilemas filosóficos parecem atravancar a história constantemente. Ao final, Dunmore consegue alguns feitos interessantes (a maioria deles advindos da fotografia em perturbador jogo de claro-escuro, ajudada por uma reconstituição de época nada idealizada), ainda que em vários momentos pareça forçar demais a mão no seu ímpeto autoral de estilo marcante (cuja semelhança com o primeiro cinema de Peter Greenaway vai bem mais longe do que apenas as notas do mesmo compositor de trilha sonora, Michael Nyman). E, se não realiza um grande filme, certamente apresenta um problema e tanto para as percepções preguiçosas de plantão.

Longe Dela (Away From Her),
de Sarah Polley (Canadá, 2006)

por Lila Foster
Estréia na direção de Sarah Polley, atriz canadense de filmes como O doce amanhã de Atom Egoyan (também produtor deste filme) e Minha vida sem mim e A vida secreta das palavras de Isabel Coixet, Longe dela mostra uma história de amor contada da perspectiva do envelhecimento. Grant e Fiona formam um belo casal mesmo depois de 44 anos de convivência, até que os esquecimentos progressivos de Fiona por conta do Alzheimer levam o casal a tomar a decisão de se separar para que ela tenha cuidados específicos numa clínica para idosos. É chocante para Grant perceber em uma visita a clínica o deterioramento causado pela doença e, aparentemente, ele parece ser o que mais sofre com a separação: um passado feliz e uma vida harmoniosa em conjunto estariam assim se desfazendo. Mas, as dores do passado não estão assim tão ausentes e esta pequena célula incômoda quebra a aura de idealidade conferida ao casal. Esta mudança é o que o filme apresenta de mais interessante, principalmente porque a partir dela cada um tenta estabelecer estratégias de sobrevivência diante da separação e também das novas condições de vida. Tema ainda pouco explorado no cinema, a velhice aparece de forma difícil e triste, mesmo que não sem levar em consideração que, para além do fim da vida, se trata também do tempo mais necessário para se reinventar. É aí que o passado e o medo da solidão parecem pesar muito mais do que o medo da morte. A direção de Sarah Polley se fia, até demais, no roteiro bem estruturado, contando ainda com a ótima atuação de Julie Christie.

Lugar na Platéia, Um (Fauteuils d'orchestre),
de Danièle Thompson (França, 2006)

por Eduardo Valente
O filme abre com uma visão noturna de Paris na qual se delineia o curso do Sena e ao fundo a Torre Eiffel: não exatamente uma forma criativa de se começar, mas uma que é plenamente coerente com o filme. Ao fundo uma vez em off prega que “se não podemos ser ricos, podemos ao menos trabalhar entre eles”. Ironia? Não há nenhum sinal no filme, que parece se dedicar justamente a operação semelhante: se não podemos ser ricos, artistas, parisienses, podemos pelo menos assistir um filme com eles em cena. O que segura um mínimo da nossa atenção é uma graciosidade de atriz chamada Cècile de France cujos olhos brilhantes e incrivelmente emotivos conseguem nos fazer acompanhar com alguma simpatia a trajetória da sua proto-Amèlie Poulain. A Danièle Thompson parece satisfazer tão somente filmar um pequeno folhetim cômico (daí as seguidas citações a Feydeau na narrativa), que de fato consegue eventualmente arrancar alguns sorrisos - e até duas ou três risadas com seu elenco hiperpreparado fazendo tudo que Feydeau não fazia: um espetáculo da psicologia de botequim. Inegavelmente, se o filme viaja pelo mundo é simplesmente pela certeza de que sempre haverá um público interessado em passar duas horas entre os ricos e famosos de Paris. Não é nada, não é nada... é quase nada mesmo.


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