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500 Dias com Ela (500 Days of Summer),
de Marc Webb (EUA, 2009)
por Filipe Furtado
500
Dias com Ela poderia ser um bom filme, mas ao invés disso
é uma bela ilustração. Raramente nos vemos diante de um filme
que ilustre tão bem toda a indústria de cheeseburger do
cinema independente americano. 500 Dias com Ela tem um
bom ator (Joseph Gordon-Levitt) se esforçando muito para vender
o filme e uma premissa (rapaz precisa se recuperar de um fora
enquanto relembra a relação) de interesse. A partir daí Marc Webb
completa a idéia inicial com todos os cacoetes esperados para
vender seu filme, seja as referências musicais aceitáveis (o primeiro
dialogo do casal se dá quando ela o elogio por gostar dos Smiths),
a narrativa atemporal (com cartão de explicação para o espectador
não ficar perdido), os atores indie (Gordon-Levitt, Zoey
Deschanel), etc. Nada ilustra isto melhor que as cenas entre o
protagonista e seus dois melhores amigos: são seqüências funcionais,
com os dois coadjuvantes ali essencialmente para dar ao protagonista
alguém para conversa e/ou servirem a alguma piada. O que impressiona
é como não existe nenhuma intimidade sugerida nestas cenas, como
é impossível diante delas dizer “ei, estes caras se conhecem há
anos e estão sempre muito à vontade entre eles”. 500 Dias com
Ela se preocupa demais em se vender de forma eficiente para
que tal intimidade possa se instaurar. Entre Gordon-Levitt e o
profissionalismo industrial, 500 Dias com Ela certamente
se deixa ver facilmente. Mas diz muito sobre este cinema que o
blockbuster que o ator fez este ano pelo cheque (GI
Joe) pareça ter muito mais personalidade que isto aqui.
Agente 86 (Get Smart),
de Peter Segal (EUA, 2008)
por Eduardo Valente
Logo no começo desta versão
cinematográfica e moderna da clássica série
de TV, uma cena deixa clara a relação que o filme
optará por estabelecer com a iconografia (e, por tabela,
com todo o resto) de sua predecessora: quando Maxwell Smart entra
no que de fato é o quartel-general da CONTROL, ele passa
por uma espécie de museu onde se podem ver velhos conhecidos
da série, como o terno, o carro esporte ou o sapato-fone.
É verdade que no final estes serão retomados, mas
ainda assim não deixa de ser um momento sintomático
da aproximação de Peter Segal e dos roteiristas/produtores:
a série de TV é coisa de museu. Com isso, como poderíamos
esperar, cabe ao filme trazer o personagem e
seu universo para o presente - e por isso entendamos acima de
tudo para a platéia (jovem, inclusive) dos dias de hoje.
Então, por um lado tome referências sócio-políticas
à atualidade (principalmente através da trama em
torno do presidente interpretado por James Caan, cheio de referências
a Bush), mas de maneira ainda menos sutil através de um
desejo de filmar as desventuras de Smart não apenas pelo
viés cômico, mas também a partir de uma cartilha
do cinema de ação contemporâneo, seguida à
risca por uma lógica do "quanto maior, melhor"
numa série de cenas de ação francamente sem
muito nexo (e não falamos aqui de verossimilhança,
mas sim de lógica interna mesmo), marcadas acima de tudo
por uma mise-en-scène sem qualquer senso de timing
ou de clima (um micro-exemplo bastante forte é o péssimo
primeiro encontro com a Agente 99, enquanto ela pratica jogging).
Por conta deste desejo de fazer um filme de ação
"à vera" que complemente a parte cômica,
este Agente 86 se revela uma experiência bastante
esquizofrênica e quase nada engajante. Temos um Steve Carrell
no piloto automático (o que, lógico, significará
duas ou três gags fantásticas, mas pouco mais
que isso), uma deliciosa Anne Hathaway bastante perdida em si
mesma, um Dwayne "The Rock" Johnson de enorme carisma
pedindo um personagem que faça jus a ele, e um Terence
Stamp absolutamente dispensável. Mas o que temos mesmo,
acima de tudo, é uma típica experiência hollywoodiana
moderna segundo uma competência desprovida de qualquer vida
própria, de qualquer diferencial ou desejo de encanto.
Um "filme de resultados", que certamente atingirá
os desejados (leia-se, basicamente, a bilheteria mundial).
Algo como a Felicidade (Stestí),
de Bohdan Slama (República Tcheca/Alemanha, 2005)
por Francis Vogner dos Reis
Em uma cidadezinha industrial na República
Tcheca, um rapaz que trabalha em uma oficina rejeita sistematicamente
os convites do pai para ir trabalhar na fábrica. Há também a garota
que pretende ir aos Estados Unidos junto do namorado que lá trabalha,
o que sua mãe apóia, porque não quer que filha tenha o mesmo destino
que teve. Esses dois jovens serão obrigados a cuidar dos dois
filhos de uma terceira personagem – autodestrutiva – que entra
em colapso, fazendo com que o rapaz aceite o emprego na fábrica
e a garota desista de ir para a América. E o que o diretor Bohdan
Slama faz com isso tudo? Ele, ao encenar dramas de jovens nascidos
e crescidos na reta final do leste europeu
comunista e a articulação deles com suas famílias, visa fazer
de suas imagens não um diagnóstico, mas, um modo de compreender
a postura deles perante um mundo que só lhes deixou ruínas e sucata.
Assim, em uma dramaturgia feita, sobretudo de intimidades, a câmera
se vincula à pulsação dos corpos desses personagens, como que
para embarcar de modo mais “incisivo” na vida deles. Só que tudo
tem o efeito inverso do que o diretor parece propor. A câmera
busca um fluxo de imagens mais livre, mas faz desse processo algo
pesado; uma narrativa mais solta, que se revela bem burocrática,
propõe personagens complexos, mas restringe-os a uma psicologia
esquemática. O diretor asfixia e oprime os personagens nesse esquema
que transforma qualquer tentativa de aproximação mais crua e direta
em mera complacência. Toda essa dinâmica cênica e dramática contemporânea
se revela, nesse caso especificamente, como um novo tipo de academicismo,
pois submete todo seu processo a um controle pesado que não respira
nem por meio de seus defeitos. Algo como a Felicidade é
refém de seu dispositivo.
Amigo é pra Essas Coisas (Zim
et Co.),
de Pierre Jolivet (França, 2005)
por Eduardo Valente
Tudo parece estar no lugar certo, em Amigo
é pra Essas Coisas: a comédia de tipos se misturando
à perfeição com as preocupações
étnico-sociais para se falar da França de hoje;
as pitadas de realismo intensificadas pela câmera sempre
na mão interagindo com a música que parece perfeitamente
integrada ao ambiente de seus protagonistas; os limites entre
manter os olhos numa ética pessoal firme e os desafios
da realidade que pedem constantemente que se quebrem as regras
de conduta social. O filme de Pierre Jolivet parece fluir deliciosamente
pela tela, com atores absolutamente engajantes, diálogos
bem escritos e rápidos, familiaridade com o ambiente filmado.
No entanto, um incômodo se estabelece pouco a pouco lá
no estômago do espectador mais atento, só tomando
real forma quando o casal interracial de jovens prepara-se para
a primeira noite juntos, e (no que parece ser uma piada) ela pergunta
se ele tem uma camisinha - apenas para descobrir que os dois possuem
preservativos. Ali, o filme nos dá a imagem precisa do
que nos parecia um tanto errado: aquela realidade tão "no
lugar certo" parece mesmo estar com pelo menos duas camisinhas
de distância de qualquer verdadeira contaminação
deste disfarçado projeto de sitcom cinematográfica.
E nada contra as sitcoms, diga-se - mas sim contra o fato delas
se disfarçarem. Ao fim e ao cabo, Amigo é pra
Essas Coisas é isso: uma bela opção para
a diversão "socialmente consciente" do fim de
semana. Mas, quando tenta se portar como se fosse algo além
disso, perde pontos pelo excesso de proteção quase
ingênuo com que parece tratar seus personagens - nunca menos
que heróicos mesmo em seus erros, sempre plenamente compreensíveis.
Talvez o que quiséssemos fossem alguns erros menos facilmente
compreensíveis - como aqueles que cometemos todos os dias.
Almas à Venda (Cold Souls),
de Sophie Barthes (EUA/França, 2009)
por Eduardo Valente
Desde a leitura da sinopse de Almas
à Venda, é mais do que justificada a impressão de que
o filme tenha mais do que uma mera semelhança com Quero Ser
John Malkovich. Só que aqui o ator que interpreta a si mesmo
é Paul Giamatti (de fama curiosamente semelhante com a de Malkovich),
e não só ele é o protagonista do filme (o que Malkovich estava
longe de ser), como o que ele quer é deixar de ser Giamatti, por
assim dizer – e, para isso, vai procurar uma empresa que promete
“armazenar almas”. A sequência em que ele entra na empresa pela
primeira vez, e
se consulta com o médico interpretado por David Strathairn faz
crer que o filme enveredará pelo caminho da farsa absoluta através
de um diálogo bastante inteligente, dito num timing preciso
por estes dois ótimos atores. No entanto, desde a abertura do
filme há uma montagem paralela que traz uma outra personagem para
o foco da narrativa, uma russa que vamos ao pouco entendendo como
se relaciona com a história de Giamatti. Quando a câmera está
com ela, muda de registro: vai para a mão, com os tiques mais
óbvios de um dito “realismo”. Aos poucos as histórias se unem,
e aí fica claro que, sem abrir totalmente mão do humor, o filme
deseja que levemos minimamente a sério questões como a relação
da alma com o indivíduo ou os abusos de empresas com empregados
de países como a Rússia. E aí é um esforço excessivo que se pede
do espectador: por um lado, que acredite numa idéia tão esperta
e absurda quanto afirmar que a alma de alguém, uma vez extraída
do corpo, pode assumir a forma de um grão de bico; por outro,
filmar cenas “sensíveis” de subjetividade “dentro da alma” de
Giamatti, em que ele se vê bebê, com a mãe, a mulher (ficcional,
interpretada por Emily Watson), etc. Em grande parte é por querer
rezar para estes dois santos bem distintos que, passado seu curto
momento de graça inicial, o filme vai perdendo o interesse do
espectador, que não consegue mais nem levar a sério o absurdo
nem rir sem preocupações. Pensando bem, esse sentimento tem realmente
muito a ver com o trabalho de Charlie Kaufman.
Assombração (Re-Cycle),
de Danny Pang e Oxide Pang (Hong Kong/Tailândia, 2006)
por Leonardo Mecchi
Assombração,
novo filme dos irmãos Pang, é um engodo. A começar por sua tentativa
de se vender como um exemplar do terror asiático, gênero em voga
atualmente, responsável (com Visões) pelo sucesso dos diretores.
Embora comece na mesma chave de filmes do gênero já conhecidos
pelo público (O Grito ou O Chamado), Assombração
logo envereda para a fantasia, registro ideal para que os diretores
possam exercer livremente sua inegável criatividade visual. Nada
errado, a priori – para além da má-fé em se vender gato
por lebre –, não fosse o fato de que, por baixo desse vistoso
verniz visual, de cenários mirabolantes e efeitos especiais aos
borbotões, repousa uma sucessão de clichês e equívocos que levam
o filme a se tornar (involuntariamente) uma paródia dos maus hábitos
cinematográficos: o uso incessante de flashbacks para relembrar
o espectador sobre o porquê da protagonista tomar determinada
decisão (num didatismo de deixar Sérgio Rezende no chinelo), uma
trilha sonora abusiva e rasgada em todos os momentos românticos
ou de suspense, e finalmente um moralismo sem precedentes – com
direito a diversas cenas do tipo “no episódio de hoje, aprendemos
que...”. Pensando bem, talvez os irmãos Pang tenham, afinal, conseguido
seu objetivo: realizar um dos filmes mais assustadores do ano.
Atirador (Shooter), de Antoine Fuqua
(EUA, 2007)
por Eduardo Valente
Difícil evitar a sensação de “já vi este
filme antes” quando assistimos este Atirador: trata-se
de uma óbvia reciclagem do mito do herói americano injustiçado
por seu próprio país que dá a volta por cima se vingando dele,
do qual o mais recente e bem sucedido exemplo é o primeiro Rambo.
Antoine Fuqua tenta capitalizar um discurso politicamente mais
forte e direcionado (as menções ao Iraque abundam – e mesmo a
questão etíope está plenamente up-to-date com o noticiário
internacional), mas parece bastante inconsciente das incongruências
de um discurso que quer desmistificar um ideal de país (representado
pelos poderes estabelecidos – políticos
e agências de espionagem) através da reiteração de outro (o do
justiceiro puro e de grandes ideais); e que deseja crucificar
uma violência desenfreada enquanto nos oferta um espetáculo de
considerável sadismo, e principalmente de idealização do “super-soldado”
criado pelo mesmo exército americano tão questionado. Se há de
fato alguns bons momentos, quando o filme parece quase incorporar
uma certa auto-ironia (a visita ao especialista em armas sendo
a mais curiosa), há outros francamente constrangedores (como tudo
que diz respeito à personagem do interesse romântico do protagonista
ou o ogro-engravatado interpretado por Elias Koteas). Ao fim e
ao cabo o que ficam são alguns bons momentos de ação em meio a
uma narrativa com arroubos demais de uma frágil “importância política”.
Ato de Liberdade, Um; (Defiance),
de Edward Zwick (EUA, 2008)
por Julio Bezerra
Baseado no livro homônimo de
Nechama Tec, Um Ato de Liberdade conta a história de um
grupo de judeus liderado por Tuvia Bielski (Daniel Craig), que
consegue sobreviver na floresta durante a ocupação nazista da
Polônia – eles ainda operaram como aliado do exército soviético,
consertando armas e costurando roupas. Dirigido por Edward Zwick
(Diamantes de Sangue e O Último Samurai), o filme
é explícito em sua estratégia: logo no início, imagens documentais
em preto e branco nos mostram nazistas
assassinando pessoas desarmadas; a seqüência se dissolve na seguinte,
em um longo fade, para os atores de Zwick (famosos, e em cores).
Ou seja: o que veremos é ficção, embora colada aos fatos. É preciso
dizer, no entanto, que nem uma nem a outra dimensão se desenvolvem
a contento – nem a reconstrução da conjuntura histórica, nem a
ação dramática propriamente dita. Os nazistas não ganham rosto
e o filme centra suas atenções à vida quotidiana da comunidade
na floresta. O roteiro de Clayton Frohman e Zwick recorre ao quadro
talvez obsoleto de convenções hollywoodianas. Os amores melodramáticos,
os diálogos espertos entre supostos intelectuais e até mesmo a
relação conflituosa entre os irmãos parecem completamente impróprias
para o cenário e as circunstâncias narradas. Não há dúvidas: este
material foi escrito por americanos contemporâneos de um determinado
contexto social e perspectivas, não esquecendo as mensagens humanistas
de sempre. Zwick ainda persegue um certo elemento poético (com
a melodiosa trilha de James Newton Howard e a suave fotografia
de tons azulados de Eduardo Serra), e um determinado impacto na
parcela aventuresca do filme jamais alcançados. Zwick faz um cinema
de pretensões heróicas e épicas, veículos para estrelas, mas é
um historiador amador um tanto oportunista.
Beijo
a Mais, Um (The Last Kiss),
de Tony Goldwyn (EUA, 2007)
por Eduardo Valente
Qual o sentido de uma refilmagem? Claro que
os mais céticos podem simplesmente gritar “lucro, oras!” ou sussurrar
“a falta de uma idéia original boa”. No entanto, só para ficarmos
em exemplos recentes de dentro da grande indústria, um Planeta
dos Macacos, de Tim Burton; ou um As Loucuras de Dick e
Jane, de Dean Parisot, nos fazem ver que, com um mínimo de
interesse da parte do realizador, “refazer” pode ser também parte
integral de uma obra maior ou uma maneira de se reaproximar de
um material com um olhar inevitavelmente distinto, atualizado.
Claro que numa chave bem mais radical, podemos pensar no Psicose,
de Gus Van Sant: exemplo absolutamente desestruturante de aproximação
com uma obra clássica onde toda a diferença se dá, justamente,
pelo desejo de emular, de copiar. Nada disso, porém, parece ter
se tornado questão na cabeça de Tony Goldwyn ao realizar este
Um Beijo a Mais, refilmagem do italiano O Último Beijo,
filme tão gracioso quanto mais ingênuo (e cujo diretor, Gabriele
Muccino, também foi importado pela indústria americana – com muito
mais sucesso que o seu filme, diga-se). Pois
o que faz Goldwyn aqui? Praticamente um exercício vansantiano
de cópia, só que aqui involuntário e sem qualquer propósito realmente
“artístico”. Mais do que exatamente um filme ruim (o que o roteiro
original torna difícil se fazer), o que temos é o equivalente
a uma copiagem de fita de vídeo ou uma xerox com pouca tinta:
reproduzimos um mesmo material, mas perdemos uma “geração” ou
temos uma pálida cópia do original. Tudo que era graça e frescor
em Muccino parece aqui forçado, estudado. Do elenco original,
marcado principalmente pelo cativante Stefano Accorsi e pela estonteante
Martina Stella – que justificaria qualquer pecado –, passamos
para um Zach Braff absolutamente desinteressante e uma Rachel
Bilson graciosa, mas tristemente comum. Como o último plano (ou
melhor, a ausência do plano que encerra o filme italiano) comprova,
o que se faz aqui é apenas uma tradução menos complicada de um
filme que já era, em si mesmo, conscientemente “pós-adolescente”.
Assim, só nos sobra ao final da projeção a pergunta lá do começo:
qual o sentido em fazê-lo, afinal?
Bom Ano, Um (A Good Year), de Ridley
Scott (EUA, 2006)
por Paulo Santos Lima
Um Bom Ano é
uma comédia romântica cujo mote é a guinada de um canalha materialista
(Russell Crowe) que herda a fazenda do tio-avô. Sem a menor nuance
(o executivo sacana, a bela e bondosa mocinha do campo), o filme
trabalha apenas na superfície da máscara, buscando algo próximo
da suposta fonte de inspiração do cineasta, as screwball comedies
de Howard Hawks. Só que, nestas, cada personagem carregava múltiplas
personas, abrigando num mesmo corpo paixão e crueldade, por exemplo.
Obras como Levada da Breca eram soberbos trabalhos de decupagem,
valsa entre os planos e dentro deles. Já o cinema de Ridley Scott
é blocado, pouco feliz na comunicação entre tempo de enquadramento
e montagem entre planos e seqüências. Posado como uma 3x4 aberta
a retoques no photoshop, mostra uma galeria de objetos-fetiche
do sonho consumidor burguês espalhados pelos enquadramentos iluminados
com aquela típica luz de seu cinema: luz
de quando abrimos a geladeira com a cozinha escura - só que adaptada
à região da Provence francesa, ou seja, mais solar, vertida em
tons dourados e banhando mais democraticamente os espaços. Com
tanto lamê na imagem, claro que não é preocupação da câmera se
sujar junto às coisas. Ela, mesmo quando colada no casal romântico,
parece fora da cena. Uma câmera que estaria melhor assistindo,
incrédula, ao (belo, confesso) exibicionismo cenográfico do plano
inicial de Blade Runner. Porque o projeto estético de Ridley
Scott aparenta, sem ser, de autoria de um único fotógrafo: uma
estética ultra-artificialista, com cones de luz fazendo geometrias
kitsch, que não vê tanto o movimento e mais atende à disposição
de elementos na cena – ou seja, privilegia a forma dos seres e
dos espaços, um quase empate entre cinema e publicidade, com o
primeiro fazendo 2 a 1 sobre o outro. Se o seu irmão, Tony Scott,
leva esse projeto ao vazio absoluto, com imagens em cadência extrema
(e, por esse motivo, uma obra que me é mais interessante de análise),
Ridley ainda faz algo ligado à tradição do cinema. E entra numa
armadilha, porque nele não há seres, mas sim elementos formais
no plano. Que fique claro, não como Michelangelo Antonioni fazia,
pois com o velho Ridley não existe e tampouco está em questão
a relação entre seres e espaço ou sobre o que se é nesse mundo.
Bom Pastor, O (The Good Shepherd),
de Robert DeNiro (EUA, 2006)
por Eduardo Valente
Há um difícil paradoxo a ser enfrentado por
Robert DeNiro neste seu segundo longa como diretor: para que seu
filme realmente faça sentido, é importante que o personagem de
Matt Damon escape do nosso entendimento completo, uma vez que
ele é figura central numa trama de constantes trocas de identidade.
Por outro lado, o filme se centra de tal maneira no personagem
dele que, a partir do momento em que nos é negada a empatia com
ele, esta “coerência interna” torna o filme absolutamente frio
e distanciado do nosso olhar. Com
isso, suas duas horas e vinte (certamente excessivas) passam dolorosamente
pela tela como um enorme jogo de “gato-e-rato” que é menos dos
personagens entre si, do que entre nós e o andamento da narrativa.
Se é fato de que o filme não idealiza em nenhum momento o trabalho
da CIA (envolvida em atos horrendos de tortura e marcada pela
supressão e desprezo pela vida pessoal de todos à sua volta),
também é verdade que há um certo excesso romântico no retrato
da “vida do espião”. No meio disso tudo, passeia pela tela uma
esfinge encarnada por Matt Damon, cujas reais motivações nunca
serão claras para nós. Pior do que isso, no entanto, é a dificuldade
de comprarmos a passagem de 20 anos na vida deste personagem –
tanto no sentido físico do trabalho do ator neste envelhecimento,
quanto principalmente na completa inadequação dele ao papel central
que ocupa nos escritórios da CIA. Entre momentos de admiração
e outros de desinteresse completo, O Bom Pastor se mantém
sempre a milhas de distância de seu espectador.
Bons Costumes (Easy Virtue), de Stephan
Elliott (Inglaterra, 2008)
por Eduardo Valente
Desde
o desenho dos créditos iniciais, Stephan Elliott deixa
claro que, nessa volta ao cinema depois de nove anos afastado
(inclusive por motivos de doença), ele quer muito se divertir.
E esta é a principal virtude de Easy Virtue - uma,
aliás, nem sempre tão fácil assim, com o
perdão do trocadilho. Elliott se aproveita em parte do
texto de um Noel Coward ferino (embora, a bem da verdade, em alguns
momentos o texto seja um pouco witty demais da conta) e
em parte de uma mise-en-scène de uma fluidez notável,
entre elegantes movimentos de câmera e uma montagem de cortes
rápidos, mas nada bobos. Fica claro que seu desejo é
o de retomar uma certa tradição da comédia
de costumes, não só no teatro como no cinema dos
anos 30-40, e ele consegue reproduzir o que talvez seja o principal
de alguns dos melhores filmes do período: a capacidade
de transformar a diversão na realização em
diversão na tela, que transborda então para o espectador.
Por fim, não podemos deixar de falar de três escolhas
sábias no elenco: Colin Firth dando muita dignidade ao
seu personagem; Kristin Scott Thomas se divertindo como a megera
inglesa; e, acima de tudo, uma Jessica Biel que, se não
chega a ser brilhante como comediante, também não
faz feio - ou melhor, faz o principal, que é ter uma presença
de tela que dá total veracidade ao impacto de sua personagem
no espaço onde se passa a trama.
Buenos Aires 100km (Buenos Aires
100km),
de Pablo José Meza (Argentina, 2004)
por Felipe Bragança
Para um filme sobre o despertar da adolescência,
Buenos Aires 100 km sofre uma séria tendência para o bom
comportamento. Reunindo clichês, seqüências afetivas reiteradas
no cinema juvenil e uma encenação realista bem amarrada, o filme
não deixa de alcançar a graça melancólica que parece pretender,
ainda que sem entusiasmo. Articulado diretamente à linhagem pós-melodramática
que vem marcando boa parte da produção argentina atual, Buenos
Aires 100km tem como principal trunfo a firmeza de artesanato,
a sutileza de linguagem e a coerência dramatúrgica que fazem de
seu desenrolar na tela um objeto enxuto. A
graça possível dessa pequena crônica juvenil aparece, portanto,
não tanto por seu apelo ao novo, à inquietação, à descoberta,
mas por sua firmeza de construção de um pouco mais do mesmo. Essa
melancolia programática, porém, e as resoluções mais que esperadas
de roteiro, deixam abertas uma questão e um porvir: a juventude
construída como nostalgia e impotência é a fórmula por excelência
a que teremos que recorrer? A inquietação perdeu todo o território
para a crônica contemplativa? Contemplação é sinônimo de letargia?
Buenos Aires 100 km pratica com tanta calma a cartilha
do bom-cinema-de-arte-do-estado-dormente, que desperdiça grande
parte da carga afetiva que insinua. Que cinema se iniciará após
o plano final no campo de futebol vazio? Que filmes se insinuam
quando a observação melancólica se esgota em sua bem comportada
expressão?
Casa Verde, de Paulo Nascimento,
A; (Brasil, 2010)
por Eduardo Valente
Pode
parecer (e até é) um despropósito falar de Manoel de Oliveira
ao escrever sobre um filme como este A Casa Verde, mas
não se trata nem de longe de aproximar as obras. O fato é que
uma das frases mais sábias (dentre as muitas) já ditas pelo grande
cineasta português foi sua afirmação de que seus
filmes usavam uma linguagem cinematográfica tão frontal e direta
porque já tratavam de coisas muito complicadas, para ainda querer
complicar na sua forma. Pois este filme de Paulo Nascimento nos
faz pensar na frase porque parece inconsciente de que, na enorme
incapacidade de realizar o mais simples (contar uma história,
dirigir atores, etc), se torna tão mais constrangedor ao optar
por ainda querer ser narrativamente complexo (incorporando uma
metalinguagem na figura do desenhista, que nunca justifica sua
existência em tela). Assim como dirige atores (e câmera) como
se estivesse registrando uma péssima peça infantil, onde vilões
e mocinhos são igualmente desprovidos de qualquer carisma, Nascimento
ainda se arvora de um desejo raso de “contemporaneidade”, com
uma discussão sobre virtualidades e ecologia que não passa de
oportunismo puro e simples. O fato é que temos aqui um pretenso
filme infantil que subestima enormemente o que é a inteligência
de uma criança, além de parecer ignorar tudo de bom que já se
fez no gênero não só no cinema (nacional e internacional), mas
até mesmo na TV brasileira. O fato é que, perto de qualquer
Sítio do Picapau Amarelo, Castelo Rá Tim Bum ou mesmo Cocoricó,
A Casa Verde não seria nada mais do que um tremendo retrocesso
– só não o sendo de fato porque está fadado a ser esquecido antes
mesmo de ser assimilado.
Cashback (idem), de Sean Ellis
(Inglaterra, 2007)
por Ronaldo Passarinho
O
protagonista de Cashback é um aspirante a artista plástico
que consegue congelar o tempo para melhor observar o mundo a seu
redor. Principalmente as mulheres, a forma feminina. O tempo realmente
pára e o artista pode, a seu bel prazer, mudar objetos e pessoas
de lugar. Depois basta um estalo de dedos para que o tempo volte
a fluir. Não, Cashback não é um filme de ficção-científica.
O protagonista não quer salvar o mundo como o japonês de Heroes.
Seu “superpoder” pode até ser visto apenas como uma metáfora,
ainda que seja real o suficiente para gerar momentos de comédia
pastelão. Sean Ellis, diretor e roteirista do filme, busca um
efeito mais lírico do que fantástico. Tão lírico quanto a imagem
final, com flocos de neve parados no ar ao redor de um casal.
“Estou farto do lirismo comedido / Do lirismo bem comportado /
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente /
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. Diretor”, escreveu
Manuel Bandeira. O lirismo de Cashback não agradaria a Bandeira.
É lirismo funcionário público, protocolar. O que sobra é uma comédia
romântica episódica – até simpática, mas sem foco, falada demais
para um filme que se pretende interessado no poder da imagem,
com uma narração em off na maioria vezes redundante. É filme para
se ver domingo à tarde, na TV a cabo; quem sabe até, de olhos
fechados.
Conduta de Risco (Michael Clayton)
de Tony Gilroy (EUA, 2007)
por Eduardo Valente
Em
determinado momento de Conduta de Risco, o personagem interpretado
por Sidney Pollack (um dos sócios de um grande escritório de advocacia)
vira-se para seu empregado (o personagem-título no original em
inglês, interpretado por George Clooney), que se vê frente a uma
“crise de valores” e diz: “when did you get so fucking delicate?”
(“quando você se tornou tão delicadinho?”). A frase é um resumo
de tudo que há de errado com Conduta de Risco: o problema
principal de mais este filme-denúncia sobre o estado imoral das
negociatas no mundo das grandes corporações versus o cidadão comum
é justamente que precisamos acreditar no processo porque passa
Michael Clayton ao longo do filme, só que nunca conseguimos atingir
este sentimento. Seja porque George Clooney interpreta o personagem
numa mistura de charme e sonambulismo que nunca nos soa desagradável
(e que nos faz pensar “when were you not so fucking delicate?”),
seja porque o fato do sócio do escritório entrar num surto psicótico
a partir de um memorando que, francamente, sempre nos parece pouco
mais do que óbvio. Claro, o filme tenta construir nuances aqui
e ali (o sócio pirado teria ficado sem tomar remédios, o personagem
de Clooney diz que é o tipo de cara que “se compra”, a personagem
mefistofélica de Tilda Swinton sua debaixo do braço), mas as nuances
são tão friamente estudadas que não podemos evitar que Conduta
de Risco soe, do primeiro ao último plano (literalmente) uma
obra tão certa de tudo que tem a dizer sobre um determinado tema
que nunca consegue nos mover da nossa cadeira – o que aparentemente
era boa parte de suas intenções. Talvez se fosse um curta-metragem,
composto apenas pelos seus belos primeiros planos, do escritório
vazio, o filme resultasse mais contundente a partir de uma mesma
sensação.
Corte, O (Le Couperet),
de Costa-Gavras (França, 2005)
por Felipe Bragança
O Corte
flerta com o cinema policial, com o suspense, com o drama social,
sem dialogar com nenhuma dessas referências – apenas sugando delas
o que lhe interessa como muletas de linguagem para discorrer sua
tese extra-imagem, extra-cinema. A proposta do filme é a de um
jogo pedagógico, de cinismo cômico, cujo foco é um avanço de deboche
cítrico contra uma lógica empresarial que o filme mapeia como
praga social consensual. A violência naturalizada pela psicopatia
do protagonista se acumula na tela de forma reiterativa, levando
personagens e elementos de narração apenas a cumprir funções dentro
de uma engrenagem de cartas marcadas. A estrutura dramatúrgica
engessada e a levada blasé da montagem do filme não seriam
um problema a priori se não chegassem ao limite de esvaziar
as imagens que o compõe. Não parece haver qualquer sentido de
presença física, de imagem orgânica no filme – o que fica claro
na decupagem, que muitas vezes se resolve em truques de choque
levados como pastiches. Só
há, de fato, alguma vida, alguma graça na imagem quando o filme
deriva para a sub-trama do filho que rouba programas de computador
– mas mesmo essas passagens mais cadenciadas, encarnadas, parecem
estar ali para abrir espaço para a emergência final do enunciado
que dita o filme como um manual sem desvios de “como usar”. O
desfecho, que indica uma intriga de continuidade, não traz qualquer
charme especial ou surpresa ao filme, a não ser o de um didatismo
sem saída. Pode dar prazer a quem se identifique com o cotidiano
empresarial vivido pelo personagem, para quem se vê espelhado
nas relações empregatícias robotizadas – mas me parece uma função
menor do cinema dar espelhos masoquistas para uma cultura sem
encantamento visual. Se o cinema político como desenhado por Costa-Gavras
nunca me encantou especialmente, há em seus melhores filmes um
sentido de documento, de testemunho memorialista e positivamente
ideológico da história, que aqui perde espaço para um pobre teatrinho
anti-capitalista. Sinal de um cinema que não consegue mais afirmar
seu espaço, sua dinâmica comportamental e ideológica? Parece restar
ao filme esse “ser do contra” ingênuo e generalizado, que Costa-Gavras
indica achar que se basta, hoje.
C.R.A.Z.Y. – Loucos de Amor (C.R.A.Z.Y.),
de Jean-Marc Vallée (Canadá, 2005)
por Eduardo Valente
Depois
de uma primeira sequência que parece indicar uma certa tendência
ao humor “esperto” e modernoso, C.R.A.Z.Y. conquista o
espectador com um inesperado ritmo mais ralentado e um cuidadoso
trabalho com a relação entre os personagens, tanto através de
um trabalho de atores muito destacado, quanto pela delicadeza
na composição de cada personagem (onde o filme faz uma feliz opção
por desenvolver mais alguns deles – especialmente o pai – e deixar
outros mais como tipos – o irmão atleta, o irmão intelecual, etc).
Sua atenção aos detalhes (o jogo dos olhares entre os atores,
a reconstituição de época absolutamente discreta e pouco auto-centrada)
diferencia o filme e dá frescor a uma estrutura já mais do que
conhecida – a do filme de conflito de gerações. Infelizmente,
da metade para o final os tons melodramáticos começam a ganhar
peso excessivo no filme, que com isso perde um pouco da leveza
que o faz quase flutuar na primeira hora. E, pior ainda, quando
o protagonista se exila em Jerusalém, o filme perde de vez o norte
– uma vez que o que dava real força ao filme era as relações familiares,
com o isolamento do personagem e sua individualização de conflitos,
ele se revela bem menos interesse do que como parte de um grupo.
Se com isso o filme perde um pouco do seu encanto, nem assim pode
ser considerado desinteressante.
Crônicas de Nárnia
- Príncipe Caspian, As;
(The Chronicles of Narnia: Prince Caspian),
de Andrew Adamson (EUA, 2008)
por Eduardo Valente
Existe uma curiosa distância entre
os recentes fenômenos de bilheteria infanto-juvenis norte-americanos
e os livros (ou melhor as séries de livros, uma sacada
de resto incrivelmente lucrativa) que os inspiram. Sim, porque
da literatura dos Harry Potter, dos Senhor dos Anéis e
deste Nárnia, tem sido retirada algo que, na maioria das
vezes (e certamente nos dois capítulos vistos até
agora desta série aqui), ao invés de remeter às
fantasias que seus originais aspiram, se aproximam muito mais
de uma realização quase documental. O termo é
forte, sim, mas não despropositado: fato é que a
tecnologia dos efeitos de computação gráfica
têm levado o desejo de verossimilhança no fantástico
cinematográfico a um tal paroxismo que o que temos visto
cada vez mais é uma aposta em recriar um "mundo fantástico",
com
suas paisagens, seres míticos e narrativas, da maneira
mais fidedigna possível a uma idéia de realidade.
Com isso, perde-se de vista toda e qualquer fabulação
possível, e o exercício de assistir a filmes como
este segundo Nárnia se resume ao espetáculo
de maravilhar-se com as proezas cinematografico-realistas dos
realizadores. Se esta redução drástica dos
poderes encantatórios da ficção cinematográfica
fantástica já soava desinteressante há alguns
anos, agora consegue nos fazer sentir um precoce dejà
vu, onde ajuda muito pouco que este segundo episódio
de Nárnia tenha tantas cenas em comum com o que
vimos há pouquíssimo tempo na série do Senhor
dos Anéis: a batalha na fortaleza de pedra num espaço
sem saída, a montagem paralela com a solução
que virá em cima da hora, até mesmo a revolta das
árvores. Talvez a principal diferença seja esta
imagem um tanto perturbadora de meninos empunhando suas ferramentas
de matar (que, claro, nunca derramam sangue dos inimigos - afinal
não podemos perder a censura livre, mesmo com toda a carnificina
na tela), algo que pode soar heróico num livro mas que
tornado imagem tão desejadamente "realista" certamente
tem algo de soturnamente semelhante a episódios menos felizes
da história humana (imagens de nazistas ou de guerrilhas
vêm à mente). Se somamos isso ao subtexto claramente
cristão do livro, onde o "deus-leão" nos
remete à ironia e crueldade do Deus do Velho Testamento,
este Crônicas de Nárnia 2 adquire um tom perturbador
que, entretido com o que pensa ser sua ode ao heroísmo
clean, aparentemente passa desapercebido do diretor Adamson.
Diário de uma Babá, O (The Nanny
Diaries)
de Shari Springer Berman e Robert Pulcini (EUA,
2007)
por Fábio Andrade
O Diário de uma Babá é
o novo filme de Shari Springer Berman e Robert Pulcini, dupla
bastante celebrada por Anti-Herói Americano, de 2003. Se
muitos viam na mistura de documentário e ficção do filme de 2003
um bom caminho para o cinema independente americano, não deixa
de ser surpreendente que o longa seguinte da dupla viesse a ser
uma típica produção de verão dos grandes estúdios norte-americanos.
O Diário de uma Babá é herdeiro dos filmes-família que
inundavam nossas férias na década de 1990, e que aos poucos vêm
perdendo espaço para as franquias à Harry Potter e a linha
de montagem dos longas de animação que dominam as salas multiplex
nessa época do ano. De fato, a dupla de diretores tenta arejar
um gênero já bastante datado com uma construção visual mais inventiva.
Em
alguns casos, a inquietação formal funciona (as seqüências no
museu), e em outros chega a ser de gratuidade francamente constrangedora
(o flashback tencionado pela montagem quando Annie, a personagem
de Scarlett Johansson, vai embora da casa de praia da família
para quem trabalha). Apesar de bons momentos de Johansson e, em
especial, de Laura Linney, O Diário de uma Babá não evita
o cacoete recente que condena tantos filmes ao desinteresse: ao
se propor como investigação de uma elite disfuncional norte-americana
(Annie é uma estudante de antropologia, ora pois), o faz sempre
com extrema ingenuidade, sem se preocupar em re-trabalhar os clichês
que traz para a tela, sem se interessar em pensar o outro. Se
essa visão de mundo não convencia em Pequena Miss Sunshine
ou em O Diabo Veste Prada, não é O Diário de uma Babá
que vem afirmar-se como exceção. Não deixa de ser curioso, porém,
que na migração do cenário independente para os grandes estúdios
a dupla de Anti-Herói Americano tenha trazido consigo o
maior problema do filme de 2003: uma condescendência tão estrita
às escolhas de seus protagonistas que empurra qualquer contraste
possível para a indignidade. Ao menos dessa vez a babá percebe
que o gatão de Harvard pode até ser um cara bacana. Já é um avanço.
As Doze Estrelas,
de Luiz Alberto Pereira (Brasil, 2010)
por Paulo Santos Lima
Herculano
(Leonardo Brício) recebe a visita do Destino (Paulo Betti), este
lhe aconselhando como lidar com um trabalho no qual terá de entrevistar
12 atrizes (Lívia Guerra, Paula Franco, Mylla Christie, Carla
Regina, Leona Cavalli, Rosane Mulholland, Martha Meola etc) de
signos diferentes, para uma telenovela. Com cada uma, ele terá
uma experiência sui generis, a ver com cada um dos signos
astrológicos – ou seja, encontrará duas geminianas, uma ariana
doida, uma leonina altiva etc., todas representando o que há de
mais óbvio e conhecido sobre o assunto. Nem vale a pena discorrer
mais sobre o enredo. Estamos num tipo de auto-ajuda/cômico/trash/chanchadesca,
que, na conclusão, soa mística e medieval. Esta é a ponta de um
iceberg de problemas: más escolhas, um aparente oportunismo, mão
ruim para a escrita do roteiro, visão de mundo simplória. O diretor
usa atores renomados, coloca nuas algumas atrizes de corpo bem
delineado, vai a um tema de apelo popular, opta pela raridade
de uma comédia mais escrachada e direta. É uma questão de gosto
pessoal, mas não há como deixar de lado a medida do que e como
tem de ser mostrado num filme. Homem transformando-se em gato
preto, deixando pétalas num labirinto de isopor, correndo seminu,
virando menino... enfim, As Doze Estrelas é brega, pois
é cafona também aquilo que escorrega pelo excesso, pela reiteração
hemorrágica, pelo adorno. A má medida, que está, inclusive, na
escolha do lugar onde se coloca a câmera, na falta de senso crítico
para achar que um roteiro ou a preparação de um ator está bom...
um grau torto para observar as coisas, das que são filmadas às
que aparecem reproduzidas na tela. Um filme morto.
Dreamgirls - Em Busca de um Sonho
(Dreamgirls),
de Bill Condon (EUA, 2006)
por Eduardo Valente
Sobre Dreamgirls talvez bastasse dizer
que trata-se de um musical, com uma quase onipresença da trilha
sonora, em que a música é tão ruim quanto a filmagem dos números
musicais (cuja incapacidade de criar ambientes pela rapidez de
cortes sem nexo no começo “vibrante” é somente trocada posteriormente
pela dinâmica da “montagem paralela que nos revela algo” antes
de todo número musical terminar em constrangedor – porque saída
fácil das cenas, e nada mais – fade out). Mas, mesmo sendo
este um “textículo”, convém ir um pouco além das frases bombásticas
– por mais fiel ao filme que estas sejam. Convém mergulhar, por
exemplo, na realidade de um filme de mais de duas horas em que
nunca nos interessamos pelos seus dois protagonistas (Jamie Foxx
– constrangedor em suas constantes olhadas para o lado em que
“descobre algo” sobre os outros personagens; e Beyoncé – nunca
qualquer coisa mais do que uma poster girl, o que até pode
ser condizente com sua personagem, mas não cria qualquer empatia
ou questão dramática que justifique seu protagonismo).
Trata-se, portanto, de um filme totalmente
entregue aos coadjuvantes, onde (como bem notou o amigo Filipe
Furtado) Eddie Murphy precisa fazer pouco mais do que repetir
uma de suas antigas esquetes do Saturday Night Live (uma imitação
de James Brown) para parecer estar em outra dimensão de interesse
cinematográfico. Já Jennifer Hudson, a outra laureada coadjuvante
do filme, apenas se aproveita de ter em mãos o único papel que
parece realmente ter sido escrito por algum roteirista – mas não
chega a fazer muito com ele. De resto, o filme tem a leveza de
um elefante branco ao tentar fazer do nascimento da Motown e de
um determinado império do som negro o seu verdadeiro tema – passando
por cima dos personagens com o rolo compressor da História. Por
trás de sua narrativa, o mesmo dilema que já estava presente em
À Procura da Felicidade: como fazer um filme que se coloca
contra a dureza de um sistema, quando tudo que seus personagens
querem (e, finalmente, conseguem – num suposto happy end)
é serem bem sucedidos dentro dele? Pelo menos, dentro da incoerência
moral, o filme de Gabriele Muccino alcança inúmeros sucessos como
cinema (seja pelas graças de seus atores, seja pela construção
de um universo poucas vezes visto da vida na middle america).
Já Dreamgirls tem o poder de uma daquelas obras-primas
tardias que nos faz querer olhar de novo toda uma carreira não-reconhecida
de um cineasta: defensor (embora não entusiasta) que sou dos filmes
anteriores de Bill Condon (Kinsey e Deuses e Monstros),
sua incapacidade aqui quase faz querer rever os anteriores para
saber se eu não estava errado, afinal.
Duas Faces da Lei, As (Righteous
Kill),
de Jon Avnet (EUA, 2008)
por Francis Vogner dos Reis
A
essa altura da carreira, depois de terem feito juntos aquele que
foi um os grandes filmes da década de noventa (Fogo Contra
Fogo, de Michael Mann), Robert De Niro e Al Pacino não precisavam
de algo assim no currículo. As Duas Faces da Lei é um caça-níqueis
que só serve para que seus astros façam a caricatura dos personagens
que vêm fazendo há bastante tempo. A impressão é que nenhum dos
dois leva mais o cinema a sério, porque até para fazer um “filme
biscate” é preciso alguma competência. O filme se centra na investigação
de uma série de assassinatos em que as vítimas são criminosos
impunes. Claro que as suspeitas recaem sobre Robert De Niro, o
tira mau, já que Al Pacino é o cara comedido (o tira bom) que
tenta provar a inocência do amigo. Até ai nenhum problema porque
premissas vagabundas renderam obras-primas do cinema americano,
sobretudo do gênero policial. Mas o problema é que Jon Avnet é
um diretor de aluguel (sequer é um artesão regular) e filma como
se tivesse que colocar o máximo de informações em um filme com
menos de duas horas. As imagens se bastam como informações e pistas
necessárias para entendermos o que se passa, como os eventos se
desdobram, portanto, não existe cena, só acontecimentos. Como
não há cena, seus astros não precisam se aplicar a um trabalho
mais rigoroso, é só reproduzir uma série de expressões de outros
filmes a que estamos acostumados há pelo menos dez anos: Pacino,
hiperativo; e De Niro, rabugento. Uma pena.
Edifício Yacoubian
(Omaret Yakobean),
de Marwan Hamed (Egito, 2005)
por Paulo Santos Lima
Se
é fato que a sinopse de Edifício Yacoubian não mente,
na sua leitura temos a impressão que o tal edifício será um espaço
de experiências. No entanto, o centro do filme está na relação
(sobretudo verbal) entre personagens, não necessariamente onde
eles vivem, transitam, vivem. Não faria diferença, então, se o
prédio, a loja de carros, as ruas do Cairo, etc fossem meros cenários.
O filme tenta um painel humano amplo, indo do aristocrata decadente
e galanteador às mocinhas românticas e interesseiras, dos políticos
corruptos ao rapaz pobre que se converte ao islamismo e é torturado
pela polícia, do jornalista gay que sustenta um militar casado
ao dono de uma loja que bolina suas funcionárias. Fica claro,
logo no início, que o dinheiro é uma questão para todos ali, pois
a miséria germinada pelo capitalismo é um dos assombros no Egito
atual (segundo o filme). O outro é o da contemporaneidade estar
arruinando os valores que faziam do Egito um grande país, que
faziam do Cairo uma cidade melhor que Paris, sem miséria, sem
tristezas etc (segundo o filme, novamente). Se já é problemático
esse moralismo saudosista (ou saudosismo moralista), que mais
olha pra trás do que para o seu momento, o pior está na dramaturgia
e mise-en-scène, pois tudo isso sai da boca dos atores,
e muito pouco das imagens. O resultado tem algo de Bollywood,
mas sem os espetáculos cafonas das seqüências musicais. Câmera
mostra edifício por fora, às vezes, e nos coloca dentro dele,
no elevador, em algum meio corredor e já dentro dos apartamentos,
onde atores se esgrimam ou se amam – verbalmente sobretudo. Há
espaço para uma chanchada mais ousadinha, inclusive com alguns
momentos mais espetaculares, como quando o jovem ingresso no Jihad
faz treinamento para, tempo depois, atacar a polícia que o seviciou.
Mas, até aí, nada além do que as telenovelas espetaculosas da
Globo já vêm fazendo há tempos.
Embarque Imediato, de Allan Fiterman
(Brasil, 2009)
por Eduardo Valente
No cinema, como de resto em qualquer
outra parte da vida, ambições são sempre bem vindas – no entanto,
quanto maiores sejam, mais fortes podem ser as quedas. Talvez
isso ajude a entender porque a queda que sentimos vendo Embarque
Imediato pareça tão grande: aquilo que poderia ser apenas
um exercício de gênero sem maiores habilidades ou talento vira
um desastre justamente porque almeja ser mais do que isso. Por
um lado, há o claro interesse em propor um clima para além do
realismo naturalista, sob influência forte dos tons almodovarianos
(algo
que surge em cena desde uma personagem que fala em espanhol até
a relação direta de um personagem com o cinema clássico, aqui
via Gilda); por outro, a ambição de fazer
uma observação aguda sobre o desejo brasileiro de emigrar para
o Primeiro Mundo em busca de oportunidades. O problema é que,
no primeiro caso, falta a Fiterman o domínio do artesanato básico
do cinema, algo que Almodóvar sempre teve e que especialmente
hoje esbanja. Por um lado, Embarque Imediato parece editado
com um machado, retirando qualquer possibilidade de clima no interior
de suas seqüências já bastante problematicamente encenadas e decupadas
(os exemplos são inúmeros, mas a cena de sexo e aquela em que
Marilia Pêra aparece fazendo ginástica são os ápices); por outro,
no desejo de colocar os atores um tom acima do naturalismo, o
filme se perde em desempenhos quase grotescos (ou totalmente,
no caso de José Wilker), nos lembrando sempre que a sátira e a
farsa não são uma simples exacerbação da realidade para os campos
de qualquer comicidade. O que é uma pena nisso tudo é que, no
meio de toda a inaptidão de linguagem e no discurso sócio-econômico
simplório, há ali um ponto de interesse inegável: a relação amorosa
entre um casal tão improvável como o formado por Marilia Pêra
e Jonathan Haagensen. Infelizmente, porém, Embarque Imediato
não consegue criar nem narrativa, nem dramaturgia que nos permita
minimamente partilhar desta relação.
Entre os Dedos, de Tiago Guedes
e Frederico Serra
(Portugal/Brasil, 2008)
por Eduardo Valente
É
muito adequado que Entre os Dedos tenha início com
a retirada do corpo de um homem soterrado em um acidente numa
obra. Isso porque o mesmo peso da areia que o matou parece ser
o peso do mundo que cada um dos personagens do filme carrega sobre
os ombros. Como as opções pela fotografia em preto
e branco e pela câmera na mão (do tipo que balança
mesmo quando parada) não nos deixam esquecer, se trata
de um filme sobre uma realidade nua e (bastante) crua. A câmera
está sempre se escondendo atrás de algum objeto
ou pessoa, enxergando por frestas de portas e paredes, como que
querendo nos revelar alguma "verdade escondida". O que
significa, é óbvio, que os personagens se comportarão
com uma dureza que só é superada pela dos diretores
na delineação da via-crúcis de cada um deles
em suas narrativas entrecruzadas. Há algo de interessante
(embora não exatamente novo) na exploração
da arquitetura urbana degradada e fria da periferia de Lisboa,
mas não se trata tanto de uma questão sócio-geográfica,
e sim de um estado de mundo mesmo (como deixam claro os personagens
de uma mãe e seu filho à beira da morte, igualmente
fadados ao sofrimento conjunto, mesmo sendo de uma classe mais
abastada). Se há algo que o filme parece querer tematizar
em meio a este mundo cão é uma certa necessidade
das pessoas de continuarem atadas a quem os causa enorme sofrimento,
seja por medo da solidão seja por laços familiares.
É uma tese que poderia causar interesse, mas a estrutura
sufocante do roteiro e filmagem não deixa espaço
quase nunca para o contraditório. O caso é que,
ao montar o exato contrário de uma ficção
alienada onde todos são absurdamente felizes e tudo dá
certo, o resultado acaba sendo quase o mesmo. E tudo terminará
em catarse e resignação, claro.
Eragon (Eragon),
de Stefan Fangmeier (EUA, 2006)
por Felipe Bragança
Especialmente mal filmado, mal montado, mal
encenado, o filme dirigido por Stefen Fangmeier (dono de curiosa
carreira como diretor de efeitos especiais) não consegue sequer
se realizar como uma narrativa de peripécias fisicamente entretenedoras.
A penúria estética do filme se dá de forma tão consistente que
não é possível localizar Eragon como um genérico representante
da grife de fantasia anglo-saxônica pós-Senhor dos Anéis.
Seu plot de gênero (baseado em best-seller
juvenil que, por pior que possa ser, não deve chegar perto da
nulidade aqui apresentada) não carrega nenhuma particularidade
que dê ao filme uma identidade ou um sentido dentro do universo
mapeado da “fantasia”. O que vemos é um espetáculo de glamour
forçado e sentimento épico simulado que não consegue ser, em momento
algum, mais do que uma imitação de um blockbuster desejado
e projetado. O cinema de aventura (desde os primórdios), com suas
mazelas todas, sempre foi um lugar possível para a aura e o fetiche
da imagem, da sacralidade do que se vê – Eragon, no entanto,
ignora inclusive essa herança iconográfica, não conseguindo nada
além de banalizar tudo a seu redor: da trilha sonora às interpretações
risíveis, da sala de cinema ao pipoqueiro. Autêntico filme-sem-filme,
não consegue ser mais do que um jogo de RPG mal-narrado, por um
“game master” preguiçoso e sem imaginação.
Estados Unidos Contra John Lennon,
Os; (The U.S. vs. John Lennon),
de David Leaf e John Scheinfeld (EUA, 2006)
por Eduardo Valente
O
começo do filme faz temer o pior: surge o logotipo de uma
TV a cabo americana (VH1), e a introdução ao documentário
usa uma sequência de talking heads (termo técnico
para aquelas entrevistas bem caretas, onde só aparece o
rosto/tronco do entrevistado) com grafismos de um quase inacreditável
mau gosto ao fundo. Em seguida, quando começa a narrativa
em si, vem um daqueles exemplos do que o jornalismo americano
tem de pior: aquelas generalizações explicativas,
como se as duas frases pronunciadas sobre a infância de
John Lennon (sobre algumas fotos de arquivo) nos permitissem entender
tudo sobre aquele homem. É um susto e tanto. Mas, quando
o filme se assenta sobre o seu tema (a relação entre
John Lennon e o Governo americano entre o fim dos anos 60 e os
anos 70), daí por diante o filme entra nos eixos e passa
a mostrar o melhor do jornalismo americano: a atenção
obsessiva aos detalhes, a busca incansável por materiais
numa pesquisa deslumbrante e ilustrativa, e finalmente a questão
de ouvir os dois lados (deixando que os representantes do FBI
e do Governo Nixon se enforquem por seus próprios meios).
E o fato é que John Lennon tem uma história tão
fascinante e representativa da sua época, com um manancial
inacreditável de imagens e sons disponíveis (já
que boa parte de sua "luta" se deu em frente a câmeras),
que não dá para negar a força que a obra
adquire, de ressonância fortíssima e atual (não
por acaso dão entrevistas os atuais luminares da resistência
intelectual a mericana - Gore Vidal e Noam Chonsky - e ainda Tariq
Ali). Talvez seja um exagero chamar este trabalho de "filme",
pelo menos com os conceitos estéticos (mesmo em documentários)
que esta palavra carrega. Mas é um senhor programa jornalístico
de TV. E que, se a exibição em cinema ajudar a dar
maior visibilidade, tanto melhor.
Estranho em Mim, O; (Das Fremde in
Mir),
de Emily Atef (Alemanha, 2008)
por Eduardo Valente
O
Estranho em Mim estabelece bem
rápido sua premissa: Rebecca está grávida do seu primeiro filho,
acaba de se mudar para uma nova casa com seu marido, tem uma mãe
carinhosa mas distante. O nascimento do filho não vem como uma
benção nem um alívio, e sim com um certo clima de horror e de
estranhamento: o bebê parece um corpo ameaçador a ela, e os rituais
advindos daí (do mais simples cuidado diário ao ato de succionar
o leite de seus próprios seios) têm algo de opressor, como a trilha
sonora não cansa de indicar. Logo entendemos que a cena inicial,
que nos mostrava a personagem caminhando perdida por uma floresta,
era um flashforward do momento em que se dá nome, sobrenome
e diagnóstico ao seu problema: depressão pós-parto. Pronto, é
neste momento em que O Estranho em Mim parece abrir mão
de qualquer interesse minimamente construído pela linguagem do
cinema que o carregava até ali (e não falamos aqui apenas
de efeitos visuais ou inovações de linguagem, mas sim de algo
que possa advir de elementos simples como o trabalho de ator ou
a construção narrativa ficcional) e se revela como filme “de utilidade
pública”. Independente do pedigree artístico adquirido
com exibição no Festival de Cannes e afins, estas são suas ambições:
esclarecer, ilustrar e ajudar a identificar sintomas e possíveis
tratamentos/posturas frente a um mal pouco discutido ou conhecido.
Tudo muito nobre, mas o fato é que O Estranho em Mim é
pouco mais do que o equivalente do cinema de arte século 21 (leia-se
planos lentos, poucas construções narrativas ou psicológicas,
cacoetes simples de copiar) ao bom e velho Supercine de sábado
à noite sobre uma aflição médica ou patológica. Sintomas, diagnóstico,
cura: é disso que se trata, nada mais.
Eu
os Declaro Marido e... Larry (I now pronounce you Chuck and Larry),
de Dennis Dugan (EUA, 2007)
por Eduardo Valente
No cartaz brasileiro de Eu os Declaro
Marido e... Larry, qualquer dúvida que exista sobre
suas verdadeiras intenções e/ou "mensagem"
fica bastante sanada: enquanto Adam Sandler tenta pegar na mão
de Jessica Biel, Kevin James surge entre eles, como que um amigo
intrometido e desagradável que separa aquele tranquilo
casal heterosexual. E, de fato, uma vez que assistimos o filme,
fica comprovado que sua narrativa fica tão longe quanto
a descrição desse cartaz de insinuar qualquer tipo
de subversão ou elogio da diferença, como pareceser
o discurso corrente em defesa do filme (e que o filme claramente
quer pretender incorporar). De
fato, é este desejo do politicamente correto à todo
custo que torna o filme especialmente incomodativo: a "tomada
de consciência" dos amigos (MUITO heteros, insiste
o filme em afirmar e reafirmar o tempo todo, com medo de perder
a adesão do espectador médio) sobre as injustiças
no tratamento com os gays é de uma condescendência
impressionante, assumindo o ponto de vista do "homem branco
hetero que entende que os gays também são gente".
Mas, claro, sem nenhum risco real de contaminação
pela doença homosexual e com muitas e muitas piadas (buscando
comunhão com o público, sempre) sobre o que aconteceria
se, de fato, eles fossem gays. O humor do filme se disfarça
num pretenso "amoralismo", que se deseja próximo
ao dos irmãos Farrelly, só que não há
nunca a aposta pela radicalização destes, muito
pelo contrário: o humor aqui é sempre safe,
distante, quando não claramente homofóbico, só
que "liberal" ("Eu rio porque eu gosto deles, eu
posso"). Só que ri de longe, como o patrão
que chama um empregado negro de "negão" pra mostrar
intimidade com a raça negra e diz "quê isso,
sou muito amigo deles..." Spike Lee, se gay fosse,
teria no filme um prato cheio para suas ironias. Isso tudo para
ficarmos no campo do discurso, já que os campos da estética
e construção narrativa são ainda mais inclementes
com Dennis Dugan - cuja carreira pregressa, aliás, não
faria esperar nada melhor. Há cenas francamente constrangedoras
(especialmente as que simulam alguma ação, nos incêndios),
opções quase ridículas (como ter Adam Sandler
interpretando o que seria um suposto bombeiro sex symbol)
e no geral sobra muito pouco para o espectador minimanente exigente:
só mesmo o uso simpaticamente discreto da trilha de canções,
Ving Rhames rindo de si mesmo e Jessica Biel - pelo conjunto da
sua obra.
Eu Matei Minha Mãe
(J'ai tué ma mère),
de Xavier Dolan (Canadá, 2009)
por Filipe Furtado
Muito
do interesse que Eu Matei Minha Mãe desperta no circuito
de festivais deriva da proximidade do jovem cineasta para com
seu material. O próprio Dolan interpreta o adolescente gay que
mantém uma relação de amor e ódio com sua mãe, e é inegável a
energia que injeta no filme. Seria extremamente injusto chamar
Dolan de charlatão, pois por mais óbvios que sejam boa parte dos
recursos “artísticos” do qual lança mão é visível que trata-se
de um filme sentido. O problema é que nada disso impede Eu
Matei Minha Mãe de ser um filme, no fundo, muito tolo. O apelo
de um diário adolescente em forma de greatest hits de cinema
de arte pode ser grande, mas seu limite é óbvio. Na maior parte
do tempo, Dolan varia o registro entre o psicodrama quase amador
e a diluição de muitos filmes melhores. Resta uma ou outra cena
que despertam algum interesse e uma impressão de que tudo é um
tanto calculado demais (como a decisão de incluir uma cena em
que o namorado aponta como o alter-ego de Dolan é difícil próximo
ao fim do filme). Fica também a certeza de que entrega e a energia
do cineasta nunca compensam de todo sua falta de talento.
Evocando Espíritos (The Haunting
in Connecticut),
de Peter Cornwell (EUA, 2008)
por Eduardo Valente
Não
é sem relevância para expor os problemas deste Evocando Espíritos
notar o destaque quase exagerado dado no seu crédito inicial para
o fato dele ser “baseado na história real” – algo que se reafirma
em seguida com o filme sentindo a necessidade sem muito nexo de
começar com Virginia Madsen dando uma entrevista sobre “o que
aconteceu”, atrelando sua personagem a uma realidade externa ao
filme. Claro, existe o fator “nossa, será que algo assim realmente
pode acontecer?”, mas o que parece mais determinante é esta mania
do horror americano (especialmente o mais recente) de precisar
adequar o sobrenatural a uma determinada lógica – na maior parte
do tempo, gastando boa parte de sua trama (como é o caso aqui)
tentando “entender o que está acontecendo”. Nenhum espaço, portanto,
para o que realmente nos fica do melhor do cinema de horror: o
sobrenatural em estado bruto, o incompreensível, tudo aquilo que
não é, portanto, “baseado em realidade”. Se este é um defeito
de nascença a (com o perdão do trocadilho) assombrar este Evocando
Espíritos desde o começo, ainda assim poderíamos ver elementos
de interesse fortes como a própria idéia que liga um doente incurável
ao mundo dos mortos (e a presença física do protagonista do filme
como um zumbi é bem marcante) ou a imagem de uma casa praticamente
construída de cadáveres. No entanto, não interessa de fato a Cornwell
ou aos produtores do filme gastar muito tempo ou pensamento em
busca de idéias a explorar com alguma ousadia, novidade ou visceralidade:
sua agenda é outra, a de somente bater ponto em “mais um filme
de horror americano”, contando para isso exclusivamente com clichês
inexplicáveis – não no sentido sobrenatural, infelizmente (como
a presença das duas crianças); e uma estética acéfala e exagerada
(especialmente no uso da espacialidade do som, banal e estridente,
causando total distanciamento).
Família do Futuro, A (Meet
the Robinsons),
de Steve Anderson (EUA, 2007)
por Felipe Bragança
Quando John Lasseter (Toy Story) assumiu
os estúdios Disney de animação, veio com a promessa de que iria
fazer de tudo para resgatar a vitalidade e a criatividade vividas
nos anos 40-50-60. Esse A Familia do Futuro, primeiro filme
dessa nova safra, parece ser antes de tudo um cartão de visitas
dessas possilidades, na sua tentativa de atualizar a dramaturgia
do conto de fadas Disney sem perder o sentido de fábula (longe
da ironia, da paródia) ou de exercício moral de sua narrativa.
Consegue
fazer isso com graça, um roteiro detalhista e que se abre a um
humor menos infantil e adocicado, ainda que faça isso em um ritmo
dramático por demais acelerado. Uma homenagem ao animador-empresário
Walt Disney,no elogio do gesto visionário e da criatividade, assim
como uma reafirmação dos velhos "valores familiares"
agora em um hipérbole quase circense de um futuro próximo. Com
personagens bem delineados, mas pouco desdobrados (destaque para
o vilão inspiradíssimo), o filme dirigido pelo estreante Steve
Anderson se apresenta como um piloto do que poderia vir a ser
uma série de TV ou de cinema, faltando-lhe a consistência para
se colocar em destaque no imaginário Disney – que se faça a anotação,
porém, de que não foi visto no formato 3D em que foi lançado em
algumas poucas salas. Ainda que plenamente esquecível, mostra
o potencial que essa arejada de estilos e pegada, trazida por
Lasseter, pretende levar ao estúdio mais tradicional da animação
norte-americana. Ficamos ainda na expectativa.
Filhos da Esperança (Children
of Men),
de Alfonso Cuarón (EUA/Inglaterra, 2006)
por Eduardo Valente
Há
cinco anos, Filhos da Esperança seria politicamente revolucionário.
Mas, qual valor real tem um filme de ficção “futurista” que afirma
uma crise ecológico-política para daqui a vinte anos, quando até
mesmo a Veja e o Fantástico já concordam com isso? E esse é o
grande problema do novo filme de Alfonso Cuarón: para além de
sua dimensão mais óbvia e direta (de uma cautionary tale
de como o presente nos indica que o futuro do mundo é negro) ele
tem pouco, muito pouco valor cinematográfico. Claro, em se tratando
do diretor que nos deu E Sua Mãe Também e aquele que é
de longe o melhor Harry Potter (Prisioneiro de Azkaban),
o filme possui algumas boas cenas (curiosamente, quase todas baseadas
no uso “espetacular” do plano-sequência, começando pelo da morte
de Julianne Moore – realmente impressionante – e terminando com
o resgate do bebê no prédio sob ataque). Mas isso não chega a
esconder uma ficção cujo impacto é todo baseado na encenação (sob
o manto de “futuro sombrio”) da realidade atual do Iraque numa
cena, da Palestina na outra, da África em outra, de Guantánamo
ou Abu Ghraib em outra. Com isso, sobra muito pouco espaço para
a “ficção” de fato, e aqui nem falo da ficção científica, mas
sim da abstração sobre a realidade. Todos os personagens servem
exatamente aos propósitos que o filme anuncia desde suas entradas
em cena, e a câmera na mão nos lembra o tempo todo que se trata
de algo “realista”. No fundo, Filhos da Esperança quer
ser uma versão “cinematográfica” de Uma Verdade Inconveniente,
mas mal consegue ser uma versão não-exploitation de O Dia Depois
do Amanhã.
Fonte da Vida (The Fountain),
de Darren Aronofsky (EUA, 2006)
por Pedro Butcher
Fonte
da Vida talvez seja o exemplo
mais próximo de como o cinema pode ser kitsch (para usar
um termo fora de moda). O sentimentalismo e uma certa autopiedade
são o motor desse filme sobre um médico (Hugh Jackman) que tenta
descobrir a cura para o câncer enquanto um tumor cresce no cérebro
de sua mulher (Rachel Weisz). Se a ciência não poderá ser redentora,
a arte poderá. As experiências do médico falham, mas caberá a
ele completar o livro que sua mulher deixou incompleto, sobre
um cavaleiro espanhol que foi à América Central em busca de árvore
da juventude – uma história que é apresentada paralelamente, com
os mesmos atores. Tudo isso permeado por uma terceira subtrama,
de tom filosófico-religioso, que visualmente é uma das coisas
mais cafonas que o cinema contemporâneo já produziu.
Frost/Nixon (idem), de Ron
Howard (EUA, 2008)
por Eduardo Valente
Assistindo
a este Frost/Nixon, não chegamos ao final com qualquer
dúvida sobre o que pode ter fascinado Ron Howard para realizá-lo:
a entrevista real entre o David Frost e o Richard Nixon originais
tem, claramente, a potência de um daqueles momentos humanos e
audiovisuais bigger than life que fascina e faz sonhar.
Só que também são momentos como esse que, depois de ver o filme
realizado por Howard, nós preferíamos que ficassem eternamente
preservados do tratamento for dummies que o diretor dá
ao material (como seria de se esperar de quem conhece seus filmes
anteriores). Sim,
porque ao querer encenar o entorno de um momento histórico, Howard
deseja nada mais do que simplificá-lo ao mínimo denominador comum
do entendimento da ficção cinematográfica. Daí, dá-lhe formato
de falso documentário sem qualquer nexo para além de poder explicar
minuciosamente tudo aquilo que não precisava ser (especialmente
os sentimentos de cada um dos envolvidos, e sua evolução cena
a cena). Dá-lhe overacting, seja pelo caminho da imitação
histórica (Frank Langella, Michael Sheen), seja dos personagens
anônimos (Oliver Platt, Sam Rockwell), todos usando a lógica da
construção que visa atingir complexidade pela simplificação, ou
seja: os personagens se resumem a uma ou duas características
que desejam sublinhar sua “humanidade”, e ficam repetindo-as ao
máximo (exceção para Rebecca Hall e Matthew MacFadyen, que conseguem
existir, uma pela persona assumidamente unidimensional que resulta
mais adequada ao “tratamento Howard”; o outro, por seu personagem
não ter um arco próprio óbvio, resultando curiosamente complexo).
Dá-lhe, finalmente, desejo claro de igualar o duelo de palavras
a um duelo de boxe, resultando numa estrutura que transforma um
dos grandes momentos de contato entre a política e o entertainment
na história numa simples reedição falada da simplicidade de um
filme de Rocky (azarão começa apanhando, apanha mais e mais, mas
descobre sua força interior, e vira a luta no final against
all odds). Mas, ok, o filme tem uma qualidade: dá uma vontade
grande de ir conhecer o material original, e assim tentar esquecer
a versão “PG-13”.
Grilo Feliz e Os Insetos Gigantes,
O;
de Walbercy Ribas e Rafael Ribas (Brasil, 2009)
por Eduardo Valente
Nem
mesmo para o mais sisudo dos críticos é fácil
escapar da tentação de capitular frente a um filme
que, ao mesmo tempo, quer se colocar como alternativa nacional
aos filmes para o público infantil (e que, por isso mesmo,
poderia ser o começo de um processo de formação
de público), e luta para conseguir firmar um mercado de
trabalho real para os animadores nacionais no cinema. Politicamente,
a agenda parece impor o elogio ao simples ato de realizar, de
chegar ao fim. Mas será que é isso mesmo que os
animadores ou os realizadores de filmes para o público
infantil desejam: esta condescendência piedosa que, ao fim
e ao cabo, os relega ao papel de artistas/artesãos de segunda
classe que precisam ser protegidos só por existirem? Torcendo
que não, o que nos resta é constatar que este segundo
filme dedicado ao Grilo Feliz repete aquela que já
era a mais marcante insuficiência do primeiro: uma incapacidade
de fazer com que a partir de sua combinação de personagens
eventualmente promissores e uma capacidade inegável de
criar ambientes visualmente atraentes consiga resultar algo mais
que um amontoado de cenas que nunca compõem de fato uma
narrativa com o menor resquício de uma lógica interna
ou de desenvolvimento satisfatório de personagens e tramas
- ou seja, nada que se deva a insuficiências técnicas/tecnológicas.
Pois se fosse pouco, aqui soma-se um preocupante dado à
equação: na busca de um "tema urgente",
este segundo filme abraça um ataque à pirataria
que enxerga a função do cinema infantil segundo
tintas de um didatismo tacanho, moralizante e capitalista, com
requintes de calhordice como colocar o "heróico"
personagem principal dizendo coisas como "dinheiro é
bom". Mas talvez faça todo sentido ser este o triste
fim de um personagem nascido como garoto-propaganda em publicidades
dos anos 70.
Homem de Ferro 2 (Iron Man 2),
de Jon Favreau (EUA, 2010)
por Eduardo Valente
Em
meio ao desfecho da ação de Homem de Ferro 2, uma cena
bastante desimportante no todo de sua trama nos deixa entender
um pouco melhor o inegável charme que o filme possui. Nesta, o
personagem do motorista (interpretado pelo mesmo Jon Favreau que
dirige o filme) diverte-se e se excita vendo Scarlett Johansson
trocar de roupa no banco traseiro de seu carro, enquanto dirige
rumo a um confronto com o grande vilão da história. Que ali tenhamos
o diretor do filme em cena acaba servindo como símbolo perfeito
do que Homem de Ferro 2 nos faz sentir ao longo de toda
sua duração: um sentimento incontornável de enorme diversão; do
prazer deliciosamente tolo de receber milhões de dólares para
colocar Johansson em cena como uma femme fatale moderna,
acompanhar Robert Downey Jr dar um pequeno show de interpretação
jocosa e/ou brincar de efeitos visuais de última geração para
explodir coisas e criar batalhas entre máquinas de guerra. Ainda
que possua uma relação inegável com o contexto atual das relações
internacionais, claramente Homem de Ferro 2 não se pretende
um sério discurso/análise/metáfora destas, mas tão somente parte
deste espelho distorcido para, como cabe muito bem a um filme
baseado em HQs pulp de super-heroi, divertir-se enormemente.
E aí é que o toque de Favreau, um comediante de origem, se revela
especialmente feliz: mais do que as competentes cenas de ação,
o segredo do interesse de seu filme está no domínio do timing
dos seus atores (principalmente Downey Jr, claro, mas também os
muito bem escalados Sam Rockwell e Mickey Rourke, ou até mesmo
o bom uso de Gwyneth Paltrow como uma espécie de Kathryn Hepburn
moderna), que criam um sentimento de playfullness constante.
Não por acaso falamos em pulp: todas as cenas de Nick Fury
e da SHIELD, principalmente a conversa na lanchonete entre Downey
Jr e (claro) Samuel L. Jackson, fazem pensar muito no cinema dos
primeiros Quentin Tarantino. Retomamos aqui o prazer da palavra,
da performance, do prazer por habitar o domínio absoluto da ficção.
Só que Favreau deseja, ainda mais do que Tarantino, refastelar-se
no pulp, sendo parte dessa indústria ao mesmo tempo que
parece rir-se dela (ao invés de enxergá-la e retrabalhá-la de
fora e a posteriori). Com isso, propõe uma categoria não
prevista por Pound ou Scorsese: entre os artesãos e os “smugglers”,
Favreau é um autêntico artesão smuggler.
Honeydripper – Do Blues ao Rock (Honeydripper),
de John Sayles (EUA, 2007)
por Eduardo Valente
John
Sayles tem quase 30 anos de carreira como um dos diretores americanos
independentes mais coerentes dentro de sua trajetória, através
de algumas eras bem distintas no significado que o termo adquiriu.
Nesse sentido, talvez, ver este Honeydripper chegar à luz
do sol do mercado distribuidor não deixe de ser um tributo a uma
carreira mantida à moda antiga, trabalhando em reescrever roteiros
para os grandes estúdios como maneira de se manter enquanto realiza
pequenos filmes com orçamentos mínimos. No entanto, o filme também
representa uma certa encruzilhada para o realizador, que hoje
(e de algum tempo) já consegue o reconhecimento de um bom nome
de grandes atores (neste aqui podemos ver quase um all-star
dos atores negros da classe B americana – sendo a classe A reservada
para figuras como Will Smith, Denzel Washington, Halle Berry,
etc) e pode se propor a aventuras que exijam um pouco mais de
orçamento, como esta reconstituição histórica dos anos 50 no sul
dos EUA. O problema é que, entre as necessidades de justificar
este orçamento e responder a certos anseios que vêm com um elenco
como este, Sayles parece aqui bastante engessado, realizando um
filme que aponta questões elementares do seu cinema (como a discussão
social dentro dos EUA), mas que parece quase sempre se resolver
de maneira morna, quase didática. Ao acumular elementos muito
explorados do imaginário negro daquela época e local (o blues,
a colheita do algodão, a herança da escravidão sempre viva, etc),
Sayles parece mesmo um professor de história daqueles que elenca
“causas e conseqüências” de um processo, num movimento que resulta
sempre um tanto redutor das possibilidades individuais de seus
personagens. Assistimos ao filme, assim, com um desejo maior de
apreciá-lo do que ele realmente nos permite fazer.
Horton e o Mundo
dos Quem! (Horton Hears a Who!),
de Jimmy Hayward e Steve Martino (EUA, 2008)
por Nikola Matevski
O consenso crítico sobre animações
blockbuster veio à tona novamente em Horton e
o Mundo dos Quem!: laureia-se a "técnica",
termo genericamente aplicado a tudo o que resulta nas imagens
do filme, enquanto o roteiro é uma esfera autônoma
que usualmente esquenta discussões sobre as lições
moralistas ou outros valores implícitos à narrativa.
Não há nenhum problema na moralidade representada
no mundo de Horton, mas na maneira como personagens tornam-se
vozes dessa moralidade. Se na fábula criada originalmente
por Dr. Seuss os animais são veículo para representar
as ambições humanas maiores do que eles, na adaptação
dirigida por Jimmy Hayward e Steve Martino suas motivações
e valores surgem da interioridade (da psicologia, do caráter)
em detrimento da superficialidade. Disney, em suma.
Porém, o filme sofre seriamente com
isso apenas nos minutos finais e até lá vemos algumas
liberdades interessantes no uso da animação para
construir a atuação, especialmente no prefeito do
Mundo dos Quem.Em determinados momentos sua gestualidade é
curiosamente "borrachuda", ou seja, há manipulações
arrojadas nas transições entre as expressões
faciais e movimentos das extremidades do corpo. Assim, um braço
amortecido por uma injeção de anestesia torna-se
um veículo para algumas gags físicas - para ser
humanizado, o corpo não imita simplesmente os movimentos
humanóides (como ocorre em Happy Feet, Shrek,
etc), mas explora algumas possibilidades únicas da animação
para gerar movimentos exagerados que caracterizam certeiramente
a atuação. Algumas pontas dessas qualidades podem
ser vistas no trailer oficial do filme. Infelizmente, essa é
uma característica inconsistente, que parece ter sido mantida
sob controle (pela direção? pelos executivos?),
porque em momentos-chave somos novamente dirigidos para a habitual
quota de templates genéricos de expressões (alegria,
tristeza, etc) que infestam os cartazes de divulgação
do filme.
Iluminados, de Cristina Leal (Brasil,
2008)
por Eduardo Valente
Há
uma idéia interessante em Iluminados: pedir a seis grandes
fotógrafos do cinema brasileiro (entre eles o desde então falecido
Mario Carneiro, que vemos na foto ao lado) que proponham iluminações
e decupagem para uma mesma proposta de cena realizada num estúdio.
A estrutura do filme, então, passa a ser esta: acompanhar como
cada um deles realiza esta tarefa, ao mesmo tempo em que se intercala
este processo com depoimentos dos seis para a câmera, falando
de suas carreiras e das imagens que mais os marcaram no cinema
brasileiro (e mundial também). Claro que, esteticamente, o exercício
em si é o forte do filme, com cada fotógrafo revelando um olhar
e forma de trabalhar, mas talvez o que mais marque o espectador
sejam mesmo as inúmeras cenas pinçadas da história do cinema brasileiro,
que acabam nos chamando a atenção para aspectos da história das
imagens deste. No entanto, nem um nem outro conseguem mudar a
sensação de que estamos vendo no cinema algo que está no suporte
errado: Iluminados parece que funcionaria melhor como uma
série semanal de TV (no Canal Brasil, claro, pois nenhum outro
canal se interessaria pelo tema), principalmente por quebrar com
a aleatoriedade que sentimos na escolha dos seis fotógrafos retratados
(o filme nunca se pronuncia sobre esta escolha), uma vez que,
como a exibição no começo do filme de um sem número de fotografias
paradas de rostos de fotógrafos trabalhando deixa bem claro, poderíamos
ter várias outras análises combinatórias. A sensação é que o filme
não tem em si um discurso para além do desejo de deixar os fotógrafos
falarem um pouco, exibir cenas do seu trabalho e do cinema nacional
e montar a tal cena. Tudo ótimo, mas que poderia ser reproduzido
na TV com mais espectadores e com mais fotógrafos, atingindo resultados
mais potentes.
Inversão, de Edu Felistoque
(Brasil, 2009)
por Filipe Furtado
Em
conjunto com alguns outros filmes recenes (Bellini e o Demônio
ou Sem Fio sendo bons exemplos), Inversão
é um exemplo de um cinema brasileiro que, na busca de tentar
chegar ao que seria um cinema moderno e contemporâneo, termina
incapaz de produzir um único plano de cinema. Não há uma única
imagem articulada em Inversão: dois planos que construam
um sentido, um posicionamento de câmera que sugira que se gastou
mais que alguns segundos se considerando como filmar determinada
seqüência. Basta dizer que o mais próximo de um pensamento estético
em Inversão é tentar sugerir uma doença generalizada através
de filmar mais da metade do filme com um filtro verde-vômito.
Fora isso, estamos diante de um típico exemplar de um cinema completamente
incapaz de existir simplesmente como tal, com sua trama de gênero
seqüestrada por uma constante tentativa de ser mais do que isso.
Não deixa de ser impressionante a tentativa do filme de se colar
nos ataques do PCC em busca de significância, a despeito de que
sua única função no filme seja justificar o casting de
Marisol Ribeiro como a menos crível delegada da história do cinema.
Nesse tipo de vampirismo da realidade extra-tela, o projeto de
Felistoque deixa de ser só incompetente, e se torna um tanto torpe.
Janela, A (La Ventana), de Carlos
Sorin
(Argentina e Espanha, 2008)
por Julio Bezerra
Carlos
Sorin (Histórias Mínimas, O Cachorro) vem sendo
muito associado a uma espécie de “minimalismo” estético. Uma acepção
talvez apressada de seu cinema, pois se é verdade que o realizador
argentino se restringe à contenção dramática e à introspecção
de sensações e sentimentos, a mão por vezes incrivelmente pesada
de Sorin acaba quase sempre configurando seu minimalismo como
uma certa prisão estética. Isso é evidente neste A Janela,
em que um escritor em idade avançada espera acamado o retorno
de um filho pródigo enquanto encara a iminência da morte. A janela
de seu quarto funciona como uma fresta não só para o mundo, como
também para o universo de suas memórias. Sorin aborda a velhice
como um estado físico, e este será um filme sobre o tempo (de
sua sobra e de sua falta). Pena que o cineasta faça questão de
reafirmar isso o tempo todo, povoando o filme com o tilintar de
relógios ou até mesmo de planos-detalhes dos mesmos. Como em seus
outros filmes, tudo é da ordem da simplicidade (talvez o melhor
termo para descrever seu cinema): Sorin dá ênfase aos gestos,
aos pequenos diálogos, aos detalhes. Não há reviravoltas, transformações
ou sentimentos mais carregados. O desejo é por um lirismo das
pequenas coisas, por uma transcendência no cotidiano mais banal.
Sorin persegue a beleza, mas não nos coloca em um contato mais
próximo com os seus personagens e suas circunstâncias. Nós somos
seduzidos pela perseguição e pela beleza quando encontrada; mas
permanecemos distantes. O fato é que A Janela fica preso
a uma certa cartilha. Falta textura às suas criaturas e às situações
que as envolvem. A estratégia de aproximação com o personagem
não se configura como uma verdadeira aproximação.
Jogo
de Amor em Las Vegas (What Happens in Vegas),
de Tom Vaughan (EUA, 2008)
por Eduardo Valente
Desde que o cinema é cinema que a
comédia romântica segue as mesmas regras: homem conhece
mulher, homem e mulher se estranham no começo, homem e
mulher vão se acertando, homem e mulher se amam no final.
De fato, a comédia romântica só não
é tão velha e previsível quanto os dilemas
amorosos de homens e mulheres, que revolvem em torno de mais ou
menos as mesmas coisas desde que o mundo é mundo - o que
antecede o cinema em alguns séculos. Até por isso
não faria o menor sentido se opor a este Jogo de Amor
em Las Vegas baseado na sua previsibilidade como narrativa
- até porque inúmeros outros filmes do gênero
seguem o mesmo modelo e atingem píncaros de qualidade (só
para ficarmos no hiper-recente, lembremos de Ligeiramente Grávidos,
de Judd Apatow e de Antes Só do que Mal Casado,
dos
irmãos Farrelly). Só que Tom Vaughan, um senhor
ninguém da TV americana, não tem o menor interesse
em ser Apatow ou os Farrelly. De fato, ele não tem o menor
interesse pelo cinema. Sua missão em Jogo de Amor em
Las Vegas lhe parece simples e direta: basear-se no star
power de seus dois protagonistas, copiando todos os tiques
de atuações dos personagens pelos quais eles ficaram
famosos, usar o roteiro mantido de pé por apenas uma premissa
esperta (o enriquecimento repetino após um casamento movido
pela bebida em Las Vegas) e... bem, e é isso. Só
que Vaughan parece esquecer dois dados essenciais: que o verdadeiro
humor vem do inesperado, da possibilidade de ver algo por um lado
ainda não visto; e que não há bom humor "a
favor", o humor é um gesto contestatório por
definição. E isso é tudo que não existe
em seu filme, não deixando dúvidas do porquê
ele não tem qualquer graça. Não é
a narrativa que é previsível por seguir um modelo
eterno baseado nas relações humanas: são
todas as suas piadas que são previsíveis porque
se baseiam na colocação de câmera mais óbvia,
patética mesmo; no tique de interpretação
mais fora de tom, exagerado; no comportamento de personagens mais
fora da lógica que os constrói a cada cena. O humor
tenta ser retirado a fórceps, e está sempre a favor:
da moral mais vagabunda, da estética mais porca, do comércio
mais puro. Não há cinema para se analisar em Jogo
de Amor em Las Vegas, porque nenhum dos seus realizadores
assim deseja ou se importa.
Jumper (idem), de
Doug Liman (EUA, 2008)
por Eduardo Valente
David
Rice (Hayden Christensen) faz uso do seu poder de teletransporte
com o único objetivo de se tornar um proverbial playboy,
com renda garantida, mulheres, viagens. Acima de tudo, ele é
cool: surfa as maiores ondas, pega as mais belas mulheres.
Claro que, ao longo do filme, ele aprenderá que "com
grande poder, vem grande responsabilidade" - afinal as histórias
de heróis, especialmente os jovens, são feitas disso
desde que o mundo é mundo. No entanto, o que o herói
de Jumper tem de diferente é sua necessidade de
viver a vida "à toda velocidade": não
tem paciência sequer para atravessar a rua sem se teletransportar,
de subir no seu prédio na velocidade do elevador. E aí,
o herói se transmuta na própria forma do filme,
pois Jumper representa um cinema de ação
"sem tempo a perder": cenas de ação hiper-cinéticas
ao ponto da incompreensão, pouco tempo para se dar a conhecer
com personagens e tramas, nenhuma preocupação com
coerêcia de qualquer espécie. Interessa a Jumper
não perder o contato com seu espectador, indo sempre em
busca do mínimo denominador comum narrativo, e rápido,
sempre bem rápido. Doug Liman fazia outro dia num jornal
carioca a defesa de um cinema de efeitos especiais "físicos",
ou seja, que use ao máximo situações e locações
reais. No entanto, se Jumper de fato vai a Roma, ao Egito
e ao Japão para filmar, ele o faz através da imagem
mais simples e facilmente reconhecível de cada lugar, pois
não há tempo a perder com aclimatação.
Seu olhar equivale ao do turista hiper-apressado que precisa ir
logo para o próximo ponto a fim de "conhecer tudo",
sem conhecer nada - não por acaso a parede da casa do personagem
principal parece cheia de cartões postais, como se sua
vida se resumisse a um passeio apressado. Num determinado momento
do filme, nosso herói vira-se para alguém e pede:
"skip the boring parts" ("pule as partes chatas").
Num mundo mais honesto, esta seria não apenas a frase que
resumiria o filme, mas todo um modo de olhar o mundo (e essencialmente
o cinema) que Jumper representa. Neste sentido, talvez,
o filme seja um exemplar valioso para entendermos o olhar do adolescente
de hoje - ou, pelo menos, do adolescente que o filme idealiza
como o seu público.
Killshot - Tiro Certo (Killshot),
de John Madden (EUA, 2008)
por Julio Bezerra
Killshot
– Tiro Certo veio ao mundo de
maneira conturbada: foi filmado há quase quatro anos; sofreu uma
série de versões de roteiro; algumas de suas seqüências tiveram
de ser refilmadas; e a estréia este ano nos EUA foi em míseras
cinco telas. Essa história talvez explique muito sobre as fragilidades
desse filme, pois a impressão que ele passa é a de auto-sabotagem.
Baseado em romance homônimo de Elmore Leonard, John Madden (Shakespeare
apaixonado) mistura os ingredientes tradicionais do escritor
e aposta em uma descrição dura e seca do mundo do crime. Em termos
de mise-en-scène, o que se vê é o esboço de uma proposta
quase física de cinema, em que Mickey Rourke, como o matador Blackbird
é mais uma vez a grande atração. Ele é um “grande mistério”, uma
aparição: a câmera o persegue, hipnotizada. Rourke corporifica
as tensões de seu personagem, suja e modula as ações do longa.
Quando abre a boca, no entanto, suas falas entram com dificuldade
nos ouvidos. Os diálogos (a adaptação do romance foi feita pelo
próprio Elmore Leonard, em parceria com Hossein Amini) prejudicam
a atuação do elenco de maneira geral – em especial a de Joseph
Gordon-Levitt que, como o marginal que Blackbird “apadrinha”,
extrapola na afetação, como se estivesse em um filme mudo. As
subtramas crescem de maneira inesperada, com Madden direcionando
muito de nossa atenção para as caracterizações psicológicas de
seus personagens – de todos os seus personagens. O filme começa
com uma narração em off em que Blackbird sublinha "que
é preciso saber onde você está se metendo". Killshot,
no entanto, quebra essa afirmação: parecendo não ter rumo ou foco
é um filme sem personalidade.
La
León (idem), de Santiago Otheguy
(Argentina/França, 2007)
por Eduardo Valente
Na
medida em que começa com pequenos barcos e canoas que correm
por rios argentinos, em lentos travelings laterais e frontais,
La León já nos remete a Los Muertos,
o filme que projetou há três anos o também
argentino Lisandro Alonso. E, de fato, apesar da escolha aqui
de uma fotografia cujos tons de cinza nos fazem pensar mais nos
filmes do húngaro Béla Tarr, a aproximação
faz sentido: assim como no filme de Alonso, em La León
o que importa é mergulhar o espectador num ambient cujas
regras de sobrevivência no dia a dia ele desconheça.
Só que aqui, ao invés de acompanharmos um só
personagem, como era o caso com o Argentino Vargas de Los Muertos,
Otheguy tenta montar um pequeno filme-tableau de um grupo
de personagens envolvidos com situações ao mesmo
tempo banais e limítrofes numa região pouco conhecida,
na Bacia do Paraná (e aliás um dos problemas de
recepção do filme é que ele explica pouco
sobre a situação sócio-política local
- o que nem seria sua obrigação como filme de ficção,
mas que nem por isso deixa de ser algo que sentimos que nos falta
para compreender o todo do que se passa). Além da opção
pelo PB, há mais diferenças marcantes quanto ao
filme de Alonso, como a opção pelo uso de atores
profissionais como Jorge Román (o protagonista de El
Bonaerense) e Daniel Valenzuela (de Mundo Grua e O
Pântano, entre outros) - no entanto, curiosamente nenhum
dos dois atinge o carisma na tela que o não-ator Argentino
Vargas tinha. E é um pouco este o principal problema de
La León: sem um foco real de empatia na tela, a
impressão para o espectador é mais a de acompanhar
um experimento estético, eventualmente até bem sucedido,
do que de mergulhar de fato num outro tempo/tradição
como parece ser o desejo do filme.
Lemon Tree (idem),
de Eron Riklis
(Israel/Alemanha/França, 2008)
por Eduardo Valente
Uma
viúva palestina solitária é dona de um limoeiro que é a grande
memória viva de sua família. Certo dia, o ministro da Defesa de
Israel (logo quem!) resolve se mudar para o terreno vizinho, e
o Serviço Secreto israelense decide que aquele limoeiro é extremamente
perigoso como possível refúgio de terroristas, por isso manda
derrubá-lo. Daí começa uma guerra judicial entre o Estado israelense
e esta pobre palestina. Por que começar um texto crítico sobre
um filme por uma sinopse alongada como esta, algo tão pouco comum
aqui na Cinética? Porque todos os interesses cinematográficos
do filme de Eran Riklis são resumidos por esta sinopse, e o filme
que surge na tela é tão somente uma transposição das
explorações mais óbvias possíveis da mesma através de uma narrativa
ficcional realista. Lemon Tree
é um filme absolutamente claro nos seus objetivos:
usar o modelo de uma ficção “político-humanista” para “esclarecer”
o espectador sobre aspectos da realidade da região em questão
(não por acaso há uma preocupação com uma localização geográfica
das cenas com créditos na tela, transitado por espaços que vão
da Cisjordânia a Jerusalém), ao mesmo tempo em que o “emociona”
com a constatação de que os seres humanos podem ser bons e poderiam
resolver as questões se “apenas se comunicassem”. Aqui e ali há
pontos de interesse (como o romance entre a viúva e seu advogado,
ou as imagens do muro que Israel constrói para cercar os palestinos,
sempre filmado com uma menor qualidade de imagem de vídeo), mas
eles são constantemente pouco ou mal explorados pelo filme, cujo
interesse claro é o de urdir uma narrativa que mistura inúmeras
improbabilidades de relato (algo absolutamente inerente à ficção
que se assume como tal, mas problemático quando ela se disfarça
de realidade como esta) com simplificações grosseiras (onde a
personagem da ajudante do ministro talvez seja a mais obviamente
esdrúxula, mas longe de ser a única). Tudo convergindo para a
imagem “poética” final (que de poesia nada tem, porque sua interpretação
é única e inequívoca), que, no fundo, é tudo que se queria dizer/mostrar
desde o começo. Melhor se fosse um curta, ou ainda, uma foto –
menos tempo seria gasto pela parte dos que não se “emocionam”
com todo o lugar-comum das cartas jogadas pelo filme.
Libertino, O (The Libertine),
de Laurence Dunmore (EUA, 2004)
por Eduardo Valente
Não parece exagerado supor que o lançamento
(e continuidade em cartaz) por aqui do desconhecido filme de Laurence
Dunmore tem muito a ver com a simplicidade da imagem do seu cartaz:
Johnny Depp, sex-symbol maior da platéia feminina
cult (e, pós-Piratas do Caribe, da nem tão
cult também), com a palavra "libertino"
escrito em cima dele - uma correlação de idéias
cuja promessa parece quase irresistível para esta platéia.
No entanto, O Libertino é um filme que não
se parece em nada com algo palatável pelos parâmetros
do circuitinho de arte brasileiro atual. Aqueles que esperam ali
um pouco de softcore com atores e dublês em elegantes
reconstituições de época, se depararão
com um filme muito pouco amigável, programa nada recomendado
para as alegres noites de sábado. Já no primeiro
plano, Depp olha a platéia de frente em plena penumbra
(num plano curiosamente parecido com o posterior plano de abertura
de O Plano Perfeito, de Spike Lee), e avisa que nós
não gostaremos dele. A secura extremamente auto-consciente
deste primeiro plano, e sua proposta desafiadora (a de um protagonista
antipático e amoral), serão bastante abrandadas
ao longo do filme, na medida em que a trajetória de seu
personagem embarca por uma via-crúcis que inclui decadência
física causada por doença - o que, inevitavelmente,
lhe empresta um caráter trágico (e, portanto, passível
de comoção da platéia). De fato, esta duplicidade
não escapa ao filme, que parece buscar construir-se justamente
no embate entre a compreensão e o desprezo que o espectador
deve sentir pelo personagem. Mas, a dramaturgia com que o filme
tenta construir esta história dá espaço a
um outro embate, e este é que acaba trabalhando contra
o projeto. Na opção por uma estrutura narrativa
que siga e tente dar continuidade cronológica aos vários
acontecimentos da vida do personagem e aqueles que o circundam,
o filme encontra um obstáculo ao seu outro componente,
eminentemente ensaístico, que busca lançar questões
nada pouco complexas sobre a existência humana. Tentando
dar voz simultânea a estes dois filmes não é
tarefa fácil, e ambos acabam perdendo: os personagens secundários
flutuam demais pela história para realmente nos importarmos
com eles (e seu efeito no personagem), e a verbalização
dos dilemas filosóficos parecem atravancar a história
constantemente. Ao final, Dunmore consegue alguns feitos interessantes
(a maioria deles advindos da fotografia em perturbador jogo de
claro-escuro, ajudada por uma reconstituição de
época nada idealizada), ainda que em vários momentos
pareça forçar demais a mão no seu ímpeto
autoral de estilo marcante (cuja semelhança com o primeiro
cinema de Peter Greenaway vai bem mais longe do que apenas as
notas do mesmo compositor de trilha sonora, Michael Nyman). E,
se não realiza um grande filme, certamente apresenta um
problema e tanto para as percepções preguiçosas
de plantão.
Longe Dela (Away From Her),
de Sarah Polley (Canadá, 2006)
por Lila Foster
Estréia
na direção de Sarah Polley, atriz canadense de filmes como O
doce amanhã de Atom Egoyan (também produtor deste filme) e
Minha vida sem mim e A vida secreta das palavras
de Isabel Coixet, Longe dela mostra uma história de amor
contada da perspectiva do envelhecimento. Grant e Fiona formam
um belo casal mesmo depois de 44 anos de convivência, até que
os esquecimentos progressivos de Fiona por conta do Alzheimer
levam o casal a tomar a decisão de se separar para que ela tenha
cuidados específicos numa clínica para idosos. É chocante para
Grant perceber em uma visita a clínica o deterioramento causado
pela doença e, aparentemente, ele parece ser o que mais sofre
com a separação: um passado feliz e uma vida harmoniosa em conjunto
estariam assim se desfazendo. Mas, as dores do passado não estão
assim tão ausentes e esta pequena célula incômoda quebra a aura
de idealidade conferida ao casal. Esta mudança é o que o filme
apresenta de mais interessante, principalmente porque a partir
dela cada um tenta estabelecer estratégias de sobrevivência diante
da separação e também das novas condições de vida. Tema ainda
pouco explorado no cinema, a velhice aparece de forma difícil
e triste, mesmo que não sem levar em consideração que, para além
do fim da vida, se trata também do tempo mais necessário para
se reinventar. É aí que o passado e o medo da solidão parecem
pesar muito mais do que o medo da morte. A direção de Sarah Polley
se fia, até demais, no roteiro bem estruturado, contando ainda
com a ótima atuação de Julie Christie.
Lugar na Platéia, Um (Fauteuils
d'orchestre),
de Danièle Thompson (França, 2006)
por Eduardo Valente
O
filme abre com uma visão noturna de Paris na qual se delineia
o curso do Sena e ao fundo a Torre Eiffel: não exatamente uma
forma criativa de se começar, mas uma que é plenamente
coerente com o filme. Ao fundo uma vez em off prega que
“se não podemos ser ricos, podemos ao menos trabalhar entre eles”.
Ironia? Não há nenhum sinal no filme, que parece se dedicar justamente
a operação semelhante: se não podemos ser ricos, artistas, parisienses,
podemos pelo menos assistir um filme com eles em cena. O que segura
um mínimo da nossa atenção é uma graciosidade de atriz chamada
Cècile de France cujos olhos brilhantes e incrivelmente
emotivos conseguem nos fazer acompanhar com alguma simpatia a
trajetória da sua proto-Amèlie Poulain. A Danièle Thompson parece
satisfazer tão somente filmar um pequeno folhetim cômico (daí
as seguidas citações a Feydeau na narrativa), que de fato consegue
eventualmente arrancar alguns sorrisos - e até duas ou três
risadas com seu elenco hiperpreparado fazendo tudo que Feydeau
não fazia: um espetáculo da psicologia de botequim.
Inegavelmente, se o filme viaja pelo mundo é simplesmente pela
certeza de que sempre haverá um público interessado em passar
duas horas entre os ricos e famosos de Paris. Não é nada, não
é nada... é quase nada mesmo.
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