in loco - cobertura dos festivais
O amor e o passado
Filmes de arquivo: reverências, monumentos, indagações
por Pedro Henrique Ferreira

A seleção da 7a CineOP costuma incluir filmes de diversas metragens construídos a partir de materiais de arquivo. Como a maior parte dos longas ainda poderá ser assistida em outras ocasiões, é interessante se debruças sobre alguns curtas-metragens e a maneira como eles espelham uma debilidade visível em um bom filão da produção do gênero. Na lida com uma personalidade histórica, política ou artística, facilmente descambam para uma reverência, um procedimento de monumentalizar ícones. São filmes que, como descreveu Thiago Brito aqui na Cinética, em crítica a Mamonas Para Sempre, têm como meta desenhar “uma grandeza que aparentemente não possui história, que se espraia para além de qualquer contrato social mais imediato e que se exprime na máxima de que a grandeza, a força e a importância de um artista é perene e precisa ser redescoberta, já que o Brasil é o país da amnésia”. Mesmo em um espaço de exibição tão contemporâneo quanto esta mostra, assistimos muitos filmes que degringolam sob o mesmo equívoco de não enxergar que, muitas vezes, um pouco de amnésia faz muito bem.

Toda narrativa criada com material de arquivo exige um processo de seleção, uma construção dramática ou intelectual que faça nascer um sentido próprio da homogeneidade do conteúdo. Elege-se o que manter e o que excluir, e como articular aquilo que se mantêm. Isto não deixa de se aplicar a um curta-metragem como Nelson em Ouro Preto, quando um realizador une o que poderia facilmente ser conteúdo de um making of – trechos dos filmes, entrevistas com o diretor e imagens de arquivo da época. O diretor Fábio Carvalho lida com todas estas implicações de modo burocrático, protocolar, e a única coisa que parece animar Nelson em Ouro Preto é a presença de Nelson Pereira dos Santos nesta terra. Em meio a momentos de quase nenhum interesse, a única coisa que parece o justificar é sua reverência.

Reverência também é o que visualizamos em Giap – Memórias Centenárias da Resistência, de Sílvio Tendler. O mais desagradável não é o quão o projeto parece resultado do oportunismo do diretor ao encontrar um acervo de imagens raras, e assim, organizá-las sob a premissa de que somente pô-las em tela já seria o bastante. Nem é a forma preguiçosa como elas são associadas por letreiros e uma narração em off constituindo uma celebrada homenagem. Mas é sim, principalmente, a elegia que faz aos métodos de sua figura central, o general vietnamita Giap que esteve ligado à independência de sua nação. Pela articulação das imagens, o filme reafirma um fato histórico e pinta um herói que teria feito com que o Vietnã derrubasse o gigante norte-americano lutando com suas próprias armas. Mas qual é o sentido atual de assumir tal discurso? Que o Brasil também deve se munir de sua própria cultura numa guerra contra os vilões? O quão anacrônico não é este pensamento que, mesmo que por uma heurística de oposição, não quer senão inventar uma guerra e se definir ainda em referência aos yankees? Com a articulação de tais imagens, não vivenciamos o passado, mas um passadismo, uma moral caduca que já deu o que tinha de dar. É de se questionar se não seria melhor que estas imagens recém-encontradas fossem deixadas sem narrativa para que pudessem ser acessadas de uma forma mais livre do que esta preguiça nociva. O monumento, muitas vezes, destroça o interesse natural suscitado pelas coisas.

Um caso singular é o de Pirapora, que também não chega a ser feito a partir de material de arquivo. São imagens que, de uma distância, observam um homem em sua travessia pelo rio Pirapora em São Paulo. O senso de realidade que Charles Bicalho dá aos registros em longa duração emula um pouco o trabalho de Chantal Akerman em Estado do Mundo. Com uma clara diferença de concepção, porém. Em seu segmento, Akerman cria um compêndio de imagens que servem como matéria bruta para um entendimento, tal qual mesmo os trens ou as fábricas de Lumière. Bicalho executa o mecanismo oposto: as imagens já nascem de um discurso poético. Assim, servem como a reiteração de uma ideia mediada pela palavra, como a exemplificação dela. E, ao mesmo tempo, uma sublimação da realidade ao nível de mito, ao status de essencialidade. O que é uma imagem se dissolve em palavras. O dado temporal se dissolve na eternidade. O poema fecha o sentido, tranca o nosso entendimento. Mesmo no gesto de se filmar o presente, o passado vem de algum modo atrapalhar. E as imagens não conseguem extrapolar o discurso, não conseguem ser mais e diferente daquilo que é dito. Por isto, perdem um pouco de sua força e de seu mistério.

Por outro lado, alguns filmes são marcados por atitudes mais generosas diante do material. O curta-metragem Cinema Marginal, por exemplo, se quer uma elegia assumida da corrente cinematográfica produzida na Boca do Lixo, mas se abstêm de criar um discurso catalisador: apenas põe à vista o material que selecionou. O que torna o curta de Cavi Borges mais interessante é, por um lado, um cuidado com o material escolhido, e por outro, a estrutura em fluxo com a qual organiza a trama. O diretor deixa o seu conteúdo mais livre e menos subjugado a uma narrativa histórica. O que por si só, certamente não é uma qualidade sine qua non, afinal, inúmeros diretores que trabalham com material de arquivo também conseguem criar genuínas obras-primas sem deixar nenhuma soltura. Mas no caso do filme de Cavi Borges, arrumado somente sob o conceito que intitula o filme, o diretor carioca encontrou em sua própria retração uma solução para lidar com o que já é curioso por si só. Ao fim das contas, Cinema Marginal termina como uma obra alegre e inofensiva, em tudo que o termo carrega de positivo, mas certamente, também de negativo.

É inevitável que o cortejo reverencial em forma de ensaio poético que Joel Pizzini já faz há tempos chegaria a Arne Sucksdorff, o grande mentor do cinemanovismo brasileiro. A Graça que está em jogo em Elogio da Graça não é a mulher (cuja história é realmente apenas um adereço no filme), mas o conceito estético, um olhar que procura aquilo que é “agradável”. Não é o belo sedutor, nem o sublime arrebatante, mas aquele objeto diretamente ligado a uma noção de divino e que está em harmonia com o espaço à sua volta, num estado de plenitude. Durante a leitura do poema de Sucksdorff, percebemos esta vocação de Elogio da Graça nas imagens de arquivo da fauna e flora do pantanal, nas pequenas junções entre o nascimento de um bebê e o nascimento de um animal. As imagens diversas (que incluem até registros atuais filmando paredes e folhinhas) se reúnem sob uma única sensibilidade que a eclética faixa sonora só ajuda a criar.

Curiosamente, estas imagens indicam harmonia não porque são imagens da natureza, mas porque são imagens do passado. Ora, é lá que está o Pai que Pizzini reverencia, onde encontra conforto, conciliação, e certeza absoluta do que é estar inserido na História. É isto que faz de Elogio da Graça uma bonita e sensível elegia a um mentor (mais ideológico do que prático!) que transpira serenidade. E também uma peça completamente anacrônica. Esta forma de graça é um sentimento que o cinema brasileiro contemporâneo há muito problematizou e largou para trás (se é que um dia o buscou) – pensemos, por exemplo, em alguns Karin Ainouz’s que operam por mecanismos semelhantes para indicar antes um descompasso, e até mesmo na graciosidade melancólica de outros mais atuais, como o Pacific de Marcelo Pedroso. Ou talvez seja apenas porque Sucksdorff era um sueco que casou com uma índia e “se encontrou com Deus” no meio do Pantanal. Porque, para o homem contemporâneo que não tem muitos pais, é bem mais provável que um jacaré seja apenas um jacaré sem graça nenhuma, uma plantinha apenas uma plantinha sem graça nenhuma, e por aí vai.

De forma mais analítica, mais desligada de uma noção de graça ou beleza, a ideia de harmonia é procurada em Uma. Por meio de analogias visuais, Alexandre Barcelos conjectura um mundo onde todos os movimentos, por mais complexos que sejam, são correlacionados de alguma maneira. Numa verve mais próxima da vídeo-arte, o curta-metragem se aproxima das divagações de Koyaanisqatsi, investigando semelhanças do DNA da natureza ao ritmo dos centros urbanos. Na lógica do curta-metragem, o homem é uma extensão do cosmos, regido por uma inteligência supra-humana, e o fazer artístico, tal qual para alguns renascentistas (o que está em cima é como o que está embaixo), é um furor científico que procura revelar as relações possíveis no mundo. As percepções achadas são às vezes óbvias, às vezes surpreendentes, neste pequeno filme que nos parece mais um estudo alquimista da natureza do que qualquer outra coisa.

A exemplificação da ausência absoluta de amor pelo passado, de apontamento para um presente irretorquível, está certamente no radicalismo de Primas, de Salomão Santana, o curta que consegue melhor lidar com todos estes vícios - ainda que, bem, talvez não chegue a lugar nenhum. A disjunção entre imagens de arquivo e a leitura em off sobre elas é uma tática comum no tratamento narrativo de filmes que se baseiam neste material. Mas a forma como isto é operado na quase incompreensibilidade de Primas cria um singular sentido ético. Assistimos imagens familiares que nem sequer se conectam entre si, criando nelas um enorme abismo de sentido. São desenraizadas de seu contexto de origem e reagrupadas sob uma música brega e um texto grandiloquente lido pela voz de Francisco Cuoco que fala de distânciamento-aproximação. Nada é possível se afirmar sobre elas, nem mesmo que as tais primas a quem o título se refere são factualmente familiares (ou, quanto mais, que se afogaram). É uma suposição vaga, baseada somente na semelhança física entre as duas. Do mesmo modo, o pequeno poema-discursivo lido por Cuoco não dota o material de valor, e chega até nós com um certo tom de ironia.

Afirmando a falta de sentido inerente ao arquivo familiar perdido, encontra nele sedução, um objeto que resguarda o mistério de sua origem e que nisto atinge alguma forma de graça. Algo se opera no espectador nesta indagação em falso. Não há aproximação. Nem conjugação ou amor. Há tão somente homogeneidade. Uma brutal homogeneidade que reafirma o beco sem saída que é o presente. E o que traz um maior interesse a Primas é a enorme leveza que encontra nesta absurda falta de compreensão. A encontra por um simples motivo. Ainda é possível se criar suposições em cima destas imagens tão homogêneas, se indagar se aquelas moças são de fato primas ou não, utilizar este material para se retornar ao princípio socrático mais básico do pensamento ao qual é de suma importância voltar quando nos vemos num beco sem saída: a indagação.

Julho de 2012

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