A Separação (Jodaeiye Nader Az Simin),
de Asghar Farhadi (Irã, 2011)

por Pedro Henrique Ferreira

Catarse na catástrofe

Descobrimos, antes mesmo dos letreiros inicias, que Naader (Peyman Moaadi) e Simin (Leila Hatami) estão se divorciando porque ela quer levar a filha embora do Irã, enquanto ele quer permanecer e cuidar de seu pai senil. Os algarismos iniciais que já dariam material o suficiente para se montar um drama familiar irão ganhar adições quando Razieh (Sareh Bayat), secretamente grávida de um homem desempregado e emocional (Shahab Hosseini), é contratada como empregada/babá do pai idoso. Após um desleixo, ela põe a vida do senhor em risco e é despedida escandalosamente. Insistindo em ficar, a babá termina empurrada para fora do apartamento pelo proprietário. No dia seguinte, descobre que perdeu o bebê, e entra com uma acusação de assassinato em cima de Naader.

Inicia-se, assim, um conflito moral entre famílias. Dá-se algumas voltas e amplia-se o escopo do debate. A estratégia de armação narrativa pela qual A Separação opera é uma fábula cinematográfica típica: há um acontecimento repentino e de causa indiscernível (uma mulher perde um bebê), e isto fomentará e contraporá uma quantidade infinda de pontos-de-vista, versões e opiniões sobre o culpado. O diretor iraniano Ashgar Farhadi leva seu espectador por estes conflitos, que se amontoam e embaralham cada vez mais, a partir deste incogniscível dado inicial sobre o qual nenhum deles tem certeza. Porém, nenhum deles está disposto a descer de sua altivez, baixar seu orgulho e deixar de lado o conflito cuja razão-de-ser passa a importar menos do que como resolver o impasse. Não é preciso grande esforço para se perceber que estamos diante de uma trama metafórica, de uma micro-situação que remete ao universo macro dos conflitos da região onde a obstinação e o orgulho, travestidos de honra cultural ou religiosidade, estão acima de tudo, e onde a resolução pacífica parece um tanto quanto distante. O emaranhado de problemas só crescerá exponencialmente a cada processo, fiança ou tentativa de solucioná-lo. Este amontoado de conflitos não servirá tanto para nos lançar diretamente à raiz do problema ou à sua resolução – servirá para que o diretor iraniano crie a catarse que precisa para comover o espectador.

A Separação filma a grande maioria de suas sequências com a câmera na mão, trêmula, que guia nosso olhar de canto a canto, elemento a elemento, de forma contundente. Esta adquire uma única conotação, um único sentido e função - que se tornaram um tanto quanto predominantes no cinema contemporâneo: aproximar-se do drama de personagens condenados, para melhor enxergarmos suas dores e suas lágrimas, para se criar catarse a partir do sofrimento ad infinitum deles. Estamos próximos, talvez, dos projetos artísticos de filmes como 4 meses, 3 semanas e 2 dias (Cristian Mungiu) dos primeiros filmes de Lars von Trier, ou de Lola (Brillante Mendoza), que não à toa encontra a mesma solução paliativa para o embate – uma mala de dinheiro – sem que possa ser resolvido o drama maior (a tal da separação), como nos ilustra a sequência final do filme de Ashgar Farhadi. Numa discussão fervorosa entre dois personagens, prefere dar ênfase ao rosto de um terceiro que lhes observa, passivo e açoitado. Este rosto pede que a briga cesse, que o orgulho cesse, tal qual o espectador que, observando a injúria, também o pede. Comover com o micro poderia, desta forma, transformar o macro.

O que se faz questionável é sobretudo a efetividade deste método de catarse-catastrófica: A câmera na mão e a estratégia de empilhar sofrimentos consegue criar esta energia cinematográfica? É mesmo crível que seu espectador irá se comover ao ponto de ebulição onde irá criar uma mudança objetiva na realidade, realizando o salto do micro ao macro? Ou todo dispêndio energético não gira completamente em torno de si mesmo, comovendo seu espectador com uma encenação que é no fundo inofensiva a um panorama objetivo ou a uma realidade sócio-cultural? Dramatizar exponencialmente o sofrimento de uma família pode mesmo dar a seu espectador mais do que alguns minutos de agonia? No fundo, A Separação cria esta energia, mas não consegue direcioná-la, isto é, não consegue realmente apontar um novo problema ou uma nova resposta no que tange aquilo que coloca em cena.

Não há como se negar que há uma tremenda força na mise en scène cru e nas escolhas de Ashgar Farhadi. Mas esta tremenda força gira em torno de si mesma porque não abre uma perspectiva, não oferece respostas e tampouco problematiza seu mundo para além do velho escopo do orgulho religioso/cultural. A trama se plurifica cada vez mais, num esforço de complexidade e num preciosismo de levar ao limite mais intenso suas dores. Mas termina, na sequência final, recolocando o mesmo problema que colocara no plano inicial: “um casal se separou – com quem fica o filho?” Este dado é sintomático: Movemo-nos, criando energia, sem dar um passo para lugar algum.

Outubro de 2011

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