Cinzas
do Passado Redux (Ashes of Time Redux), de Wong Kar-wai (Hong Kong, 1994-2008)
por Eduardo Valente Reencontro
com um velho conhecido
Não é possível – pelo menos
não para este crítico – falar de Cinzas do Passado Redux sem apelar para
uma radical primeira pessoa. Isso porque, quando visto no cinema em 1995, Cinzas
do Passado foi um filme que me apresentou uma série de coisas, quase como
uma abertura de portas. Pouco sabia do cinema oriental, quase nada de Wong Kar-wai,
e absolutamente nada do wu xia (os filmes de espadachins e artes marciais
orientais). Por isso mesmo, o mergulho num universo audiovisual com tamanha liberdade
de criação de imagens e de tratamento do tempo na narração foi nada menos do que
um choque, com a sensação mesmo do contato com algo que não se sabia existir.
Dois anos depois consegui uma VHS pirata do filme (o que era um feito bem mais
emocionante nesta era pré-DVD e muito pré-download de filmes), já revista
2 ou 3 vezes ao longo dos anos e guardada com carinho até hoje. Inevitavelmente,
a notícia da volta do filme aos cinemas numa versão redux (que diz mais
respeito a um acerto de contas com determinadas inacessibilidades do filme – havia
muitas cópias reeditadas pelo mundo e o negativo se encontrava perdido – do que
a grandes mudanças narrativas ou enxerto de cenas) é uma que faz o jovem estudante
de cinema da época querer voltar à sala do cinema, mas ao mesmo tempo com um medo
de profanar uma certa lembrança querida. Não
deixa de ser curioso que Cinzas do Passado precise ser revisto sob a égide
da passagem do tempo e da memória porque, no filme, a relação com a memória é
um aspecto central. De fato, a intriga que abre a narração e que voltará até o
final (num looping temporal que vai sendo esclarecido bem aos poucos),
tem a ver justamente com uma garrafa de vinho que promete apagar as lembranças
de quem o beber. Dois personagens o bebem em circunstâncias distintas (um no começo,
e outro no final), e vivem experiências bem diferentes a partir disso: enquanto
um deles perde a memória, o outro não sente qualquer efeito. Certamente o esquecimento
está mais no real desejo de atingi-lo de um ou do outro. Não serão, de forma alguma,
os únicos personagens de Cinzas do Passado que lidarão com questões relativas
à memória – algo que hoje sabemos ser questão central na obra de Wong Kar-wai. De
fato, é impossível ver Cinzas do Passado em 2008 sem levar em consideração
a forma como o trabalho do cineasta cresceu 13 anos – seja em número de filmes,
seja em penetração deles no imaginário coletivo da cinefilia – e nisso a relação
possível com o filme em 1995 é completamente distinta da de agora. Porque hoje
há quase uma sensação de familiaridade e conforto ao encontrar este universo de
seres (quase todos) radicalmente solitários, incapazes de escapar da teia de lembranças
que os assombram, aparentemente fadados ao sofrimento de amores irrealizáveis
ou quebrados. E quando um deles pergunta se “não seria maravilhoso se pudéssemos
voltar no passado?” encontramos aí quase uma síntese do cinema de Wong, um que
gira em torno da idealização de um fugidio momento de felicidade perdida. Neste
sentido, é curioso notar como em Cinzas do Passado o cineasta se serve
de um determinado universo pré-existente (o do wu xia, certamente, mas
antes disso o do jianghu, que se refere a todo o mundo mitológico da ficção
de artes marciais – que nasce literária, claro) para encaixar ali o seu universo
pessoal, que fica tão em casa quanto nas ruas de uma Hong Kong contemporânea (não
custa lembrar, aliás, que Amores Expressos, o
filme que “lançou” Wong no mundo inteiro e no Brasil, foi realizado num intervalo
da longa e complexa produção de Cinzas do Passado). Mesmo a encenação das
lutas parece incrivelmente próxima do cinema de Wong (posterior ou anterior),
com Christopher Doyle investindo nas alterações de velocidade e nos planos rápidos
para criar uma quase abstração. O trabalho de Doyle muitas vezes torna as imagens
de Cinzas do Passado algo mais perto de pinturas (nisso, aliás, nota-se
a maior interferência desta versão redux, em que as novas possibilidades
das mexidas nas cores em digital se fazem notar), no que os mais críticos do cinema
do cineasta encontrarão vasta condição de criticar o filme, aliás. Já para mim,
uma revisão do filme 13 anos depois encontra uma obra cuja magia se altera (pois
já não mais alienígena aos olhos), mas cujo engajamento pessoal do cineasta encontra-se
aumentado e é o que a torna, hoje, ainda comovente. Outubro
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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