in loco - cobertura dos festivais
As Neves do Kilimanjaro (Les Nieges du Kilimandjaro),
de Robert Guédiguian (França, 2011)

por Raul Arthuso

Fazei o bem sem olhar a quem

A política – ou melhor, a luta de classes, como o próprio filma escancara no início, ao dar destaque a uma grande faixa na saída do sindicato dos operários do porto de Marselha com os escritos “a luta é de classes’ – em As Neves Kilimanjaro parece satisfazer o gosto da classe média atualmente, levando um desavisado a pensar que o filme se trata antes de uma obra política e não de um melodrama. Pois, com o relativismo das questões políticas – ou melhor, das relações de classe – pode-se facilmente tomar Babel como um filme político e Isto Não É um Filme apenas como um drama metalinguístico.

Não se pode perder de vista que, apesar da atenção à faixa no início do filme, As Neves de Kilimanjaro tem como questão central a moral, e não as relações de classe. Daí a contradição do filme: tudo em sua superfície tem uma carga política; mas se nas aparências se trata de uma discussão política, em fato o filme parece um melodrama armado para satisfazer uma culpa classista do espectador cinematográfico.  O protagonista Michel (Jean-Pierre Darroussin) é uma materialização desse duplo: apresentado como um sindicalista com convicções políticas fortes, é construído ao longo do filme como um homem de valores nobres e senso aguçado de justiça. Sua primeira grande ação é ter a nobreza de colocar seu nome junto ao dos outros operários para o sorteio daqueles que serão demitidos.

Depois, seus conflitos estão relacionados com os valores nobres que carrega. Mas, por mais operário que o personagem pareça, Michel no fundo é um ser da classe média: vive numa casa confortável, grande, bem casado, com o amor em dia, os filhos bem educados, netos felizes, e dinheiro suficiente (dado pelos filhos) para realizar uma viagem à África com visita ao Kilimanjaro. Não apenas isso, mas a visão de mundo é de classe média: Michel é um homem equilibrado, negociador, racional. Diante do homem que o violentou, tenta mostrar “doutrinar” o delinquente, mostrando o “caminho do bem”. É sintomático que, depois de estapear o marginal no primeiro encontro com ele, Michel peça desculpas pelo destempero. Michel é um homem cuja função social é política, mas de essência moral.

A diferença pode parecer de nomenclatura, mas vai um pouco mais fundo. Pois a política é como um exercício de choque das diferenças, que passa fundamentalmente pela função social que cada um exerce. É por isso que em política a noção de cidadão é mais precisa para designar o indivíduo, pois a questão envolve o papel desempenhado dentro do coletivo. Já a moral lida com a busca de um bem comum regido pelos valores, como o Bem, o Mal, a Honestidade, a Coragem, a Humildade. Na moral, há uma divisão clara entre Bem e Mal, sem zonas intermediárias. A política, por outro lado, é feita impreterivelmente nessas zonas, pois regida pelo interesse, seja ele individual ou de classes.

A fábula de As Neves de Kilimanjaro é construída a partir de uma noção de política própria da – na falta de um termo mais preciso – contemporaneidade, que é a relativização. Michel e sua esposa, após sofrerem um violento assalto de um dos trabalhadores demitidos no sorteio do sindicato, buscam olhar o outro lado para entender o semelhante e, consequentemente, “fazer o bem”, ainda que isso possa ser mal compreendido por terceiros (o que não ocorrerá, já que Raoul, amigo do casal assaltado junto com eles, entenderá o gesto de solidariedade de Michel e Marie-Claire). Há uma noção de pureza própria do melodrama, onde o herói (no caso, Michel) age segundo valores nobres num mundo cheio de impureza, portanto, hostil. O que um certo cinema humanista recente, cuja figura máxima talvez seja o mexicano Alejandro González Iñarritú, faz é trazer essa moral do melodrama para o plano político via relativismo. Nesse mundo humanista, não há o Mal, mas pequenas impurezas decorrentes da “máquina do mundo”. Por isso, filmes como Babel, O Primeiro Dia, Ensaio Sobre a Cegueira ou Em Um Mundo Melhor têm uma metafísica e um sentido comum que engloba todas as coisas tão aguçadas, ainda que sejam questões sócio-políticas que suas histórias discutam.

As Neves de Kilimanjaro é um filme mais cínico nesse sentido, pois controla a metafísica, elimina o grande sentido comum e disfarça, sob um conto envolvendo personagens com papéis políticos, a noção do mundo como um lugar cuja existência só é possível se regido por valores puros (o Bem, a Honestidade, a Humildade) e não por ideais políticos, ainda que – e eis o cinismo – tente fazer, dos valores, ideais políticos. Se muito do cinema mais assumidamente humanista traz alívio ao espectador por concluir que há um sentido supremo para as coisas do mundo, As Neves de Kilimanjaro não vai muito longe, só trocando a assertiva: fazei o bem, sem olhar a quem. Daí seu alívio para aqueles que, com o saco de pipoca e o copo gigante de refrigerante, aplaudem, acreditando que do mundo nada se leva.

Novembro de 2011

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