A Toda Prova (Haywire),
de Steven Soderbergh (EUA, 2012)
por Filipe Furtado

Cinema de turista

Não podemos negar a Steven Soderbergh o mérito da curiosidade. Poucos cineastas que alcançam um nicho de relevância como o dele se dispõem a olhar o cinema como um todo com tamanha curiosidade. Cada novo filme de Soderbergh não é encarado como um filme, mas como uma operação na qual o cineasta irá se dispor a passear por um gênero/tema/proposta estética diferente, tentando localizar ali algo próprio que o transforme num filme de Steven Soderbergh. Pensando nisso, é triste, se bastante previsível, o tom da recepção crítica a este A Toda Prova, recepção esta que diz muito menos sobre o filme e a obra de Soderbergh e mais sobre a impossibilidade de um filme popular B ser bem recebido, mesmo quando mediado por um cineasta mais do que disposto a enchê-lo de significantes de prestigio. O crime de A Toda Prova existe antes do filme: a escolha de passear pelo universo do “filme direto para vídeo”, no caso, uma fita de ação protagonizada pela lutadora de MMA Gina Carano. Suas qualidades e defeitos são subalternos à nodoa inicial de ser um filme de um cineasta de respeito se rebaixando a um material aquém de seu talento.

A grande ironia nisso é justamente o talento de Soderbergh ser o limite de A Toda Prova. Como a maior parte dos filmes de gênero que Soderbergh realizou desde os tempos de Kafka (91), trata-se na verdade de um filme experimental. O experimento está nas formas que Soderbergh encontra para desviar os elementos mais ordinários inerentes ao material com toques muito particulares, seja no uso de luz, construção dramática ou direção de atores. No caso de A Toda Prova, parte-se de uma trama que não poderia ser mais básica e direta – a personagem de Carano é traída numa missão e precisa se voltar contra seus empregadores – para desmontá-la com a ajuda do roteirista Lem Dobbs (parceiro de Soderbergh em O Estranho) numa série de blocos independentes e atemporais, que buscam destacar como um filme como este vive muito menos do seu conjunto do que de uma série de sequencias próprias capazes de encantar por si mesmas. Cada sequência individual é pensada como um problema determinado que o cineasta precisa resolver para apresentá-las de forma ao mesmo tempo excitante e, preferencialmente, mais elegante do que o material sugere.

É um processo que não deixa de ser interessante, mas que também sublinha o grande problema do filme: de que tudo nele, no fundo, se resume a um exercício. Soderbergh pode apreciar as habilidades de Carano e ter genuína curiosidade sobre o universo de filmes do gênero, mas não consegue evitar ser somente um turista passeando pelo material. Falta a A Toda Prova justamente a convicção necessária para um genuíno filme B se destacar. No lugar dela, temos muitos truques para tentar sugerir que há um diferencial no filme. Soderbergh pode apreciar a ideia de realizar um filme de ação quase direto para vídeo, mas precisa garantir que ele, Soderbergh, siga a estrela maior do seu próprio filme. Os melhores exercícios em cinema popular do cineasta (as duas sequências para Onze Homens e Um Segredo) são aquelas em que ele mais se difarça de cineasta anônimo - mas nada poderia ser mais distante de A Toda Prova. A começar pelo casting do maior numero de atores respeitáveis possível (Michael Fassbender, Ewan McGregor, Michael Douglas), que seguem a dica do seu cineasta e passeiam pelas suas cenas sem grande convicção. 

Falta a A Toda Prova justamente a vitalidade que sobra para um filme muito menos elegante e imperfeito como Os Mercenários, de Stallone. Mesmo um pequeno típico “direto para vídeo”, como Dragon Eyes, de John Hyams – para pegarmos outro filme recente protagonizado por um lutador de MMA –, tem uma energia e um desejo de cinema que só interessa para A Toda Prova em teoria. É uma pena que o talento de Soderbergh faça com que ele se distancie tanto do próprio filme, já que há momentos inegavelmente fortes aqui. Sobretudo quando o cineasta esquece seus truques e simplesmente se concentra na figura de Carano, há uma simplicidade na brutalidade das sequencias de ação de A Toda Prova – a maior parte delas resolvidas em pequenos movimentos rápidos – que sugerem um outro filme muito mais interessante do que o passeio protagonizado por Steven Soderbergh.

Maio de 2012

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta