in loco - cobertura dos festivais
A Hora e a Vez de Augusto Matraga,
de Vinícius Coimbra (Brasil, 2011)
por
Raul Arthuso
O
texto e a obra
Uma comparação entre o filme A Hora e a Vez
de Augusto Matraga, de Roberto Santos, com esta nova adaptação
do conto de Guimarães Rosa pelo diretor Vinícius
Coimbra certamente será avassaladora contra o mais recente,
mesmo se levando em conta que as duas versões se pretendem
fiéis ao texto do escritor mineiro – manifesto nos
diálogos dos dois filmes, entoados a partir das palavras
do próprio conto – e o fato de que Coimbra tenta
se manter o mais distante possível da grande obra de 1965.
Contudo, botar os filmes em paralelo, para além do exercício
de se concluir que a obra de Roberto Santos continua um grande
filme, pode revelá-los como sintomáticos, enquanto
adaptações cinematográficas, de suas respectivas
épocas e motivações de aproximação
com essa obra-prima da literatura.
Pois,
Roberto Santos realizou seu filme em pleno Cinema Novo, buscando
aproximar-se de idéias populares para propor um cinema
que fosse uma voz do e para o povo. Já Coimbra usa os valores
“universais” da obra para compor uma narrativa “universal”
que alcance o público – portanto, o povo enquanto
consumidor da indústria cultural. Isso fica evidente quando
colocadas lado a lado a grande seqüência do filme de
Roberto Santos – aquele em que Augusto tenta domar o jumento
– com sua “versão 2011”. Em Santos, a
troca de olhares entre homem e animal e o ritmo preciso da cena
criam um sentimento de pertencimento mútuo, como se criasse
um espaço de convivência no qual os dois são
partes do mesmo todo. Já em Coimbra, a noite é assombrosa,
a chuva é densa, a câmera lenta com belíssimo
desenho de luz e uma música épica (tocada pela Orquestra
de Praga, segundo os créditos) criam um clima de superação
do homem frente às adversidades monstruosas da natureza
- assemelhando-se mais a uma propaganda de cigarros de uma famosa
marca.
O
novo A Hora e a Vez de Augusto Matraga é feito,
a priori, dos tais “valores universais” do
conto de Guimarães Rosa, que inegavelmente existem: honra,
arrependimento, humildade, o Bem, o Mal. Pois a trajetória
de Augusto é, em essência, uma história de
redenção, já que a fábula trata de
um homem vicioso que, após chegar ao fundo do poço
(aqui no filme, quase literalmente, num plano em que Augusto,
após ser marcado como gado, tropeça e cai em um
desfiladeiro), toma consciência de seus males e passa a
viver fugindo da tentação.
Há, portanto, uma idéia na história sobre
a co-existência conflituosa do bem e do mal na alma humana.
Coimbra, porém, se apega primordialmente ao movimento de
ascenção-queda-ascenção e o heroísmo
envolvido nisso, implantando-os numa linguagem de filme de gênero.
Logo na primeira seqüência, há uma emboscada
armada para pegar Augusto que, de peito aberto, enfrenta o tiroteio
para matar imperdoavelmente seus oponentes, com montagem rápida
e economia de planos lembrando as cenas de ação
de Tropa de Elite. O filme de Coimbra é uma história
da transformação, via purificação,
de um anti-herói - apesar de seus vícios, no início
a violência de Augusto se volta sempre contra fazendeiros
poderosos e opressores – em herói. Não surpreende
a ênfase dada às cenas de ação, marcadas
como momento ápice da construção dos modelos
de pureza. Na primeira, Quim, criado de Augusto, tenta vingar
seu patrão supostamente morto, mostrando-se um modelo de
pureza e honradez. No final, Augusto chega à pureza plena
numa cena de tiroteio contra os homens de Joãozinho Bem-Bem.
A narrativa cristaliza os arquétipos numa narrativa convencional
do herói.
É
nesse sentido que se pode dizer que o universo ficcional de Guimarães
Rosa escapa ao filme. O sertão mineiro em sua literatura
é um campo alegórico onde as simbologias locais
contêm as universais, para daí tirar uma série
de valores complexos, fruto da interação de todas
as simbologias. É como se o mundo estivesse contido no
sertão. No filme de Coimbra, o sertão é apenas
um pano de fundo onde se desenrola a ação, esclarecendo
isso nas duas seqüências de montagem com belos planos
aéreos das belezas naturais da paisagem. O espaço
de ação é apenas um lugar apropriado para
implantar à força valores assumidos como universais
num cenário identificável pelo espectador. O resultado
é um descolamento entre personagens e cenários.
Mais
ainda, não surpreende o apego do filme aos valores católicos.
Se no conto (e também no filme de Roberto Santos) os motivos
católicos são ícones pelo qual se alcança
o sublime do humano, tornando-se nesse sentido quase pagãos,
aqui eles são encarados em seu sentido pleno: sua derrocada,
após a queda no desfiladeiro, é marcada por um plano
de sua possível sepultura com uma cruz tornada suntuosa
pela posição de câmera; a penitência
física do herói – e o catolicismo tem no corpo
talvez sua grande fixação – só se concretiza
quando um terço é colocado em sua mão ainda
no leito de recuperação; e o ápice do herói,
quando chega “sua hora e sua vez” se dá quando
Augusto olha para o céu nos braços do padre, vê
o paraíso e sorri antes do fade out, já que
sua alma está pronta para uma tranqüila vida eterna
(interessante notar que, no outro extremo, o filme de 1965 termina
com o personagem dizendo “não”). O catolicismo
está aqui de corpo presente. O problema não está
no catolicismo, mas na aproximação com o conto A
Hora e a Vez de Augusto Matraga: Coimbra adapta as palavras,
o texto; não a obra.
Outubro de 2011
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