in loco - cobertura dos festivais
Aurora (idem),
de Cristi Puiu (Romênia, 2010)
O Caçador (The Hunter), de Rafi Pitts (Irã/Alemanha, 2010)
por Filipe Furtado
Superfícies
impenetráveis
O Caçador e Aurora são filmes impassíveis.
Suas câmeras seguem com a mesma distância interessada cada
ação rumo às atitudes extremas que seus protagonistas tomam, e
impressiona como enquanto O Caçador nos informa de tudo
que motiva seu personagem e Aurora (foto) obscurece ao
máximo o seu, ambos permanecem envoltos no mesmo mistério. O método
supera o drama, e os filmes celebram e expõem a força (e limites)
da desdramatização tão em voga no cinema de festivais hoje. Filmes-processo
que dissecam passo a passo de uma investigação destinada a dar
de cara com uma superfície impenetrável. Mistérios de assassinato
cujo assassino está claro desde o primeiro plano.
O
Caçador e Aurora chegam a resultados
tão aparentados, mas suas apresentações não poderiam ser mais
diferentes. O Caçador (foto ao lado) é um filme extremamente
fluido que varia constantemente de registro: começa como uma observação
da existência classe média de um ex-presidiário, toma o desvio
do desespero e da tragédia quando ele recebe uma má noticia, acompanha
sua reação extrema, e por fim assume um caráter simbólico no último
ato – sem que nada disso afete a coesão do olhar. Já Aurora
poderia ser descrito como um épico da monotonia, não pela suposta
falta de ação do filme (até porque, a despeito de certa percepção,
muita coisa acontece nele), mas porque cada seqüência das suas
três horas é pensada e filmada para se confundir com todas as
outras. Independente do desenvolvimento de seu filme, Puiu segue
rigidamente seu tom pré definido até as últimas conseqüências.
A disciplina de Aurora não deixa de ser tão marcante quanto
a coesão de O Caçador.
Tudo
em O Caçador é transparente:
mal somos introduzidos ao seu protagonista e já somos apresentados
ao seu passado. As cenas iniciais em que ele convive com a esposa
e filha nas horas vagas não disfarçam um desconforto, um esforço
da parte dele de existir como pai de família (mais tarde um flashback
deixa isto ainda mais mastigado para o espectador). Ele só se
está confortável quando pratica com seu rifle de caça. É deste
comprometimento com seu personagem que Pitts extrai muito da força
de O Caçador, ainda que seja inegável que seu filme nem
sempre se equilibre bem entre o tudo revelar sobre ele e o esvaziamento
de psicologia que o acompanha. O jogo de desdramatização de O
Caçador sugere ocasionais fragilidades, assim como o caráter
alegórico do último ato – com o homem perdido na floresta com
dois policiais que representam idéias radicalmente diferentes
– nem sempre se resolve dentro do seu registro.
Aurora
é muito mais intencionalmente obtuso. Durante a sua primeira hora
seguimos a rotina banal do seu personagem central, e notamos apenas
sugestões de sua pouca paciência com todos à sua volta. Puiu toma
uma decisão radical, muito pouco comum no cinema de “países exóticos
para o cinéfilo ocidental”: retirar de quase toda sua duração
qualquer referencia político-sócio-ecônomica que nos ajude a situá-lo.
Se o espectador pode sempre escolher, a despeito dos protestos
de Pitts, em
ler O Caçador como uma alegoria ligadas
às eleições iranianas do ano passado; não terá a mesma sorte diante
de Aurora. O único dado relevante sobre o seu herói é que
ele é um homem que mata. Não um psicopata, não um pai de família
amargurado, simplesmente um homem que mata. E o único foco do
filme será acompanhá-lo antes, durante e após estes eventos. Se
o filme anterior de Puiu, A Morte do Senhor Lazarescu,
segue o grande filme do jovem cinema romeno podemos dizer que
entre Aurora e Terça, Depois do Natal, de Radu Muntean
(exibidos ao mesmo tempo em Cannes), alcançamos o limite do projeto
de despojamento que este grupo de cineastas locais parece buscar.
Tanto Rafi Pitts como Cristi Puiu tomaram a decisão
de assumirem eles mesmos o papel principal dos seus filmes. Intencionalmente
ou não (ambos substituíram seu ator central no ultimo instante),
ambos se oferecem como figuras de escrutinização e acabam servindo
como valor maior da sua ausência de significado. A escolha é especialmente
feliz em Aurora, em que Puiu parece se mover
sempre como uma hesitação a mais. Hesitação esta que acaba se
tornando o aspecto mais memorável desta sua investigação sem solução.
Novembro de 2010
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