ensaios Autor-personagem,
personagem-autor por Cléber Eduardo
Debate 1: Baixio das Bestas
Durante
a entrevista coletiva de Baixio da Bestas, de Cláudio Assis, no II Cineop
– Mostra de Cinema de Ouro Preto, vem à tona uma questão já colocada no Festival
de Brasília, em novembro de 2006. Lá como cá, jornalistas e espectadores (a maioria
do sexo feminino) sentiram-se ultrajadas pela suposta misoginia do filme no tratamento
das mulheres. Fala-se muito de duas seqüências específicas. Em uma, vemos, do
alto, Everardo, personagem de Matheus Nachtergaele, agredindo brutalmente uma
prostituta (Hermila Guedes). Em outra, vemos a sombra de outra prostituta (Dira
Paes), projetada na parede, sendo currada por Everardo, acompanhado de seus amigos.
Em primeiro lugar, atrevo-me a diagnosticar parte da razão
dessas acusações – que, à primeira vista, são alimentadas por uma confusão (aliás
bastante freqüente) na recepção a determinados filmes. Embora se possa questionar
algumas opções de mise en scéne de Cláudio Assis, em relação ao lugar onde se
coloca a câmera em seqüências de violência contra as mulheres, não parece ser
essa a razão principal das acusações contra o filme, mas também por um operação
narrativa cinematográfica, que pode induzir a essa condenação por misoginia. Nos
dois casos, a câmera evita olhar de perto, evita ser cruel com o espectador e
reproduzir a agressão de Everardo – primeiro filmando do alto, sem detalhes, depois
filmando a sombra, sem a experiência direta. Com ou sem intenção, há nesses dois
momentos, em alguma medida, um distanciamento ilusionista, como
costuma fazer o alemão Michael Haneke (O Vídeo de Benny, Violência Gratuita).
Evita-se a explicitude da imagem gráfica da violência, mas a violência está lá,
no extracampo, na sombra ou sob os olhos do espectador, atenuando o efeito de
distanciamento, de modo a nos capturar para dentro da experiência, como se lá
estivéssemos testemunhando a aberração, mas sem vermos de fato o ocorrido. Trabalha-se,
portanto, na imaginação do espectador. É o contrário do
que faz Helvécio Ratton em Batismo de Sangue, que retrata o baixio das
bestas dos porões militares com a câmera próxima dos corpos torturados, torturando
ele próprio com sua câmera nossos olhos e nossas percepções, como se precisasse
reproduzir a atitude do delegado Fleury para nos fazer sentir o sofrimento dos
personagens. Cláudio Assis, em sua mise-en-scène, não repete a agressão
do personagem. Ele a registra. Isso não significa que, enquanto efeito dramático
e sensorial, Assis também não nos torture. Sim, tortura. Mas o faz com procedimentos
menos “descarados”, menos detalhistas – menos sádico, portanto, com nossa experiência. Por
isso, ao se acusar o filme de misoginia, há que se perguntar: onde está essa misoginia
nas operações sonoras e visuais em Baixio das Bestas? Em primeiro lugar,
a acusação, aparentemente, nasce de uma confusão, como foi colocado no primeiro
parágrafo. Há uma tendência mais ou menos geral e ampla (mas não irrestrita) de
se confundir autor e personagem em determinados filmes. Assim, a misoginia de
Everardo seria expressão da misoginia de Cláudio Assis. Mas onde, na imagem, isso
de dá? Everardo não é o alvo de Baixio das Bestas? Não é a encarnação de
certo comportamento de uma elite agrária, porém banhado em uma consciência esquizofrênica,
que age motivado por um repúdio à pobreza e ao atraso, mas manifesta esse repúdio
contra a própria pobreza e atraso, como se fosse um Antonio das Mortes atirando
contra as vítimas e não contra os algozes? No
entanto, é fato que, em um detalhe expressivo de uma seqüência ambientada em um
cinema abandonado (sinal de falência de um dado cultural, templo destruído do
contato mediado com os outros), temos a confusão, na qual tantos se chafurdam,
estimulada por som e imagem. Olhando para a câmera em determinado momento, Everardo
diz ao espectador que no cinema pode-se fazer tudo. Essa quase pregação de uma
liberdade irrestrita e irresponsável, que implode qualquer limite moral e estético
no cinema, cria uma fusão naquele instante entre autor e personagem – porque,
no final das contas, ali o personagem torna-se porta-voz do autor, buscando nessas
palavras dirigidas à platéia, olhos nos olhos, a legitimidade para todas as evidências
expostas na tela. Há uma lavagem de mãos nesse momento por parte do diretor. Essa
adesão momentânea amplia essa fusão criador/criação/criatura, amplificando a impressão
de ser Everardo o alter ego de Cláudio Assis. Essa solução foi considerada artisticamente
juvenil por Jean Claude Bernardet em seu blog.
Juvenil ou não, como filiação à modernidade a metalinguagem é ali um passo em
falso (além de um tanto atrasada historicamente), porque, se Everardo é o sintoma
a ser visto criticamente, dar-lhe o comando de uma cena, como essa na qual olha
para a câmera, é transferir para seu discurso o discurso do filme – bem ao contrário
daquele momento de Amarelo Manga, também metalingüístico, mas em outra
medida, no qual o próprio diretor, vestido com uma camiseta do Íbis (o lendário
pior time do mundo), solta uma frase em sintonia com seu discurso fílmico. *
* * Debate 2 – Munique Em
palestra-debate realizada no Centro Cultural Judaico, em São Paulo, após a exibição
de Munique, de Steven Spielberg, um dos presentes me pergunta sobre os
sonhos do protagonista – um agente do Mossad, que, como se estivesse tomado por
uma memória traumática, nos abre as portas de sua percepção para imagens de terrroristas
(primeiro no alojamento olímpico dos atletas de Israel, depois no confronto com
policiais alemães no aeroporto). Seriam essas imagens flashbacks conduzidos
até nós pelo próprio personagem? De
fato, essas imagens nos chegam aos olhos em momentos imediatamente posteriores
a imagens de Avner, o protagonista interpretado por Eric Bana. Em um plano, ele
olha pela janela do avião; em outro, está dormindo; próximo ao final, está transando
com sua esposa. São imagens que o atravessam, sinais de memória involuntária.
A princípio, pelo encadeamento dos planos e pela lógica associativa da montagem,
essas imagens nos são apresentadas como imagens de Avner, não como operação de
uma memória da instância narradora – ou seja, do próprio filme dirigido por Spielberg.
No entanto, veremos que, a rigor, não é bem isso. A pergunta
feita pelo espectador teve duplo sentido. Por que Avner é acoplado a essas imagens?
Elas não são incoerentes por legitimar sua missão sanguinolenta de matador estatal
e clandestino a serviço de uma estratégia de vingança/prevenção de Israel? Não
é por conta dessas imagens de terror que o agente-matador justifica para si próprio
a necessidade moral de suas ações? Avner é o símbolo spielberguiano da
transformação pela consciência em crise. Diante da incompatibilidade entre a lógica
política de Estado, seus valores como pai de família e a lógica ética-religiosa
de sua “judeidade perdida”, ele rompe com Israel para se manter judeu, por assim
dizer, já que, segundo um de seus colegas de matança (Mathieu Kassovitz), ser
judeu não é fazer o mal que os inimigos fazem contra os judeus. Como
aquelas imagens de sua suposta memória e sonhos podem ser geradas pela mente desse
personagem, que, em última instância, é expressivo do repúdio de Spielberg às
ações violentas de Israel? Essas imagens não seguem em direção contrária àquela
proposta pelo filme para a consciência do protagonista? Essa pergunta do espectador
é realmente uma caminhada em direção ao solo mais espinhoso de Spielberg, sobretudo
porque, como ainda não foi colocado aqui, mas é sabido por quem viu o filme, Avner
não estava presente como testemunha das ações dos terroristas no alojamento olímpico
e no aeroporto. Como lembrar, então, de uma ausência? Avner
fica sabendo pela televisão do massacre de 11 atletas de Israel pelo grupo Setembro
Negro (11 em setembro de 1972, associação perversa com 11 de setembro de 2001,
aludido no plano final, com Manhattan ao fundo). Como aparelhos de TV são constantes
em Munique, de modo a nos salientar a lógica midiática do terror, em oposição
à clandestinidade do Mossad em sua ação de retaliação, sua memória poderia ter
sido fabricada. O bombardeio midiático talvez o tenha levado a completar a narrativa
com imagens nunca mostradas ou relatadas por ninguém a ele. No entanto, por uma
lógica dramático-narrativa, há outra hipótese, talvez mais complexa, mas, certamente,
mais coerente. A relação de Spielberg com Avner, especificamente, é de observação
neutra. Spielberg vai até o protagonista, mostra-o agindo, sem jamais ensaiar
uma reprovação. Nas primeiras duas seqüências de memória da ausência, Spielberg
adentra ao imaginário de Avner. Ele não viu aquelas imagens, mas elas estão nele
– porque o diretor as plantou lá. Ao final, quando Avner
entra em de fato crise, iniciando um rompimento com Israel para se tornar pai
de família nos EUA, o flashback retorna mais um vez. De fato, se quando
está transando com a esposa o protagonista já “está em outra”, essas imagens soam
incoerentes. “Ele não deveria lembrar de sua própria violência em vez de imaginar
a dos terroristas?”, pergunta o espectador no debate, com notável pertinência.
Sim. A violência que age sobre Avner, nesse último flashback, é a dele
próprio e não dos terroristas. Mas a repetição desse procedimento da memória da
ausência nesse momento mais avançado da narrativa, que não serve mais para estimular
e legitimar a retaliação como parecia nos outros flashbacks, talvez seja
uma senha. Pensemos. Na verdade, o flashback, em
suas incursões à mente de Avner, são de Spielberg. Há aqui uma fusão entre autor
e personagem. Se naqueles primeiros flashbacks Avner é um, no último ele
já é um outro. Se primeiro Spielberg vai à mente de Avner, levando até ela uma
memória interna do filme, depois Spielberg traz a mente de Avner até a sua, transformando
o personagem em espécie de porta-consciência do autor. Assim, não temos mais
ali um filme sobre Avner, mas também um filme de Avner e com Avner, unindo pontos
de vistas e discursos, fundindo a memória complementar da narrativa com o imaginário
do personagem. Está certo que essa hipótese, e é somente
uma hipótese, não esvazia o questionamento. Também não é um ponto final para a
aparente incoerência desse último flashback. Mas o procedimento me parece
bastante lógico com a aproximação do autor com o personagem, que se torna uma
fusão quando esse personagem é a ilustração da crise do próprio autor. Assim como
Spielberg nunca antes bateu de frente com Israel, tampouco a abordou diretamente,
Avner também demora para lidar com a parte nevrálgica de quem é. Um e outro, autor
e personagem, ao final de Munique, tomam um partido similar, expondo sem
“meias-imagens” a crise com a dissonância entre moral, ética, religião e Estado.
* * * Baixio das Bestas, assim
como Munique, são filmes que nos colocam desafios permanentes. Debatê-los
olhos nos olhos, menos munidos de partis-pris ideológico-estéticos, e mais
enfrentando suas complexidades e evidências (como aconteceu nos dois casos), apenas
nos estimula a retornar ainda a eles. editoria@revistacinetica.com.br
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