Avatar (idem), de James Cameron (EUA, 2009)
por Fernando Veríssimo

Revolucionário da tradição

Talvez não haja grande ironia no fato de que, contrariando as expectativas de todos aqueles que esperavam algo “revolucionário”, James Cameron tenha contado a mais convencional das histórias em seu Avatar. Afinal, o adjetivo em questão, repetido à exaustão em toda a cobertura destinada ao filme antes do lançamento, já não é mais o mesmo há muito tempo. Ainda assim, parece haver algo de calculado na estratégia utilizada pelo cineasta para apresentar seus novos brinquedos. Cameron não tem nenhum pudor em exibir, ou até ostentar, sua opção por um modelo de narrativa de aventuras que remonta aos primeiros românticos americanos – exatamente aqueles que, ahn, revolucionaram o panorama da cultura e das artes nos Estados Unidos no século XIX, com suas versões particulares do mito do bom selvagem e seu elogio do individualismo. Foi para esse território, onde os principais mitos americanos surgiram e se instalaram, que o “rei do mundo” escolheu aplicar sua reinvenção tecnológica do cinema. Ora, não há nada menos irônico que o romantismo das Américas, como qualquer um que tenha encarado um José de Alencar na escola pode atestar. E o canadense Cameron, que vinha preparando Avatar há mais de década – período em que, à luz da reeleição de Bush, renunciou à cidadania americana –, parece sério como nunca em passar adiante sua mensagem neste filme.

Para além das possíveis intenções, fato é que a estratégia de Cameron funcionou à perfeição com Titanic, obra que bebia na fonte do melodrama vitoriano ao mesmo tempo em que o atualizava como alegoria e showcase de efeitos visuais de última geração. A operação aqui não é muito diferente, embora o modelo seja outro, notadamente o James Fenimore Cooper dos Contos dos desbravadores, transfigurado no século XX na saga do herói John Carter de Marte, de Edgar Rice Burroughs - inspiração confessa de Cameron para Avatar. Mas a operação é também o oposto de seu filme anterior: tudo o que havia de catalisador de tragédia e negatividade em Titanic, a saber, a ciência, revela sua face positiva no novo longa.

Avatar
é uma ficção do bem. Tem final feliz, afirmativo, mas com um aftertaste amargo; afinal, todos sabemos o que vai acontecer em seguida: vamos voltar e massacrar aqueles seres, eles não têm a menor chance. As guerras do Iraque e do Vietnã informam o subtexto de Avatar de tal modo que é impossível que este passe despercebido. Ainda assim, o filme é cheio de esperança. Termina com uma imagem linda, do avatar abrindo os olhos, uma imagem positiva de renascimento que contrasta diretamente com o final de Titanic, no qual a heroína dorme um sono de morte e sonha com Leonardo DiCaprio de fraque antes de se reunir com os outros fantasmas do passado. Numa época em que até Star Trek, um clássico da ficção científica humanista, foi transformado num veículo de propaganda belicista, é muito bem-vindo o bom mocismo sincero de Avatar, com sua mensagem de compreensão entre os povos e seu elogio da resistência aos movimentos neocolonialistas do passado e do futuro. Na trajetória do herói Jake Sully, fuzileiro veterano chamado a cumprir uma missão de espionagem disfarçada de projeto científico, há um claro investimento de Cameron em valores éticos hoje meio fora de moda.

Mas, se na maior parte do tempo o cineasta escorrega na pregação desses valores, isso parece não importar tanto, porque o principal instrumento de sua retórica está em outro lugar – naquilo que faz deste filme uma experiência única. A incrível Pandora, lua que orbita um gigante gasoso numa galáxia distante, nasce como um marco da ficção científica no cinema – e, por que não dizer, do próprio cinema. Cameron apostou todas as suas fichas no deslumbramento das plateias diante da pura beleza plástica de seu fantástico ecossistema, apresentado com uma riqueza de detalhes que não nos deixa duvidar por um só instante de sua existência concreta. A câmera do cineasta registra a realidade de Pandora com a segurança e generosidade que faltou a outros criadores de mundos virtuais, como o George Lucas da nova trilogia Star Wars. Sua paixão por esse mundo é de tal modo contagiante que o ponto central do seu discurso está estabelecido muito antes que o filme enverede pela rota dos clichês no terço final.

A crença de Cameron na imagem cinematográfica é uma de suas maiores qualidades como realizador, e é ela o estandarte que o cineasta empunha ao convidar o espectador a compartilhar de sua proposta de imersão através do 3D. Sem abusar do artifício mais batido do formato – os famigerados objetos que saltam da tela –, Avatar explora outras inúmeras possibilidades, e aponta um caminho ideal para incursões futuras em mundos artificiais. As imagens têm profundidade e são trabalhadas em tantas camadas que, na maior parte do tempo, você simplesmente esquece que está assistindo a um filme em 3D e se espanta quando percebe uma sensação-fantasma de algum inseto tocando sua pele. O outro grande trunfo tecnológico de Avatar é mais difícil de avaliar a partir de uma primeira visão. Há um estranhamento natural do espectador em relação aos nativos de Pandora, o povo Na’vi, carapaças 100% digitais animadas por atores. Parte do estranhamento se deve à própria tecnologia utilizada, que confere às criaturas um realismo por vezes assustador, por vezes insuficiente. O estranho design dos seres também contribui para nos distanciar deles, para suspeitar deles – mas, no fundo, não será esse nosso estranhamento uma das questões centrais do filme?

Não resta dúvida que Cameron reservou sua cadeira no panteão dos gigantes do cinema com as conquistas técnicas de Avatar. Ninguém jamais viu nada parecido com este filme, e tenho minhas dúvidas se algum dia veremos algo assim novamente. Além disso, com tudo o que ela tem de anacrônica e idiossincrática, a narrativa de Avatar é, sem sombra de dúvida, a exibição magistral de um cineasta em pleno domínio de suas capacidades. No entanto, a sensação geral é de que faltou algo para que o filme fosse uma verdadeira obra-prima. A maioria culpa o roteiro, que traz algumas das tiradas típicas que tanto nos divertiu em filmes como O Exterminador do Futuro 2, Aliens e True Lies, mas sem o mesmo sucesso. Outros vão mais além e apontam para falhas estruturais do próprio projeto. Eu sou de outra opinião. Para mim, o que faltou para Avatar ser uma obra-prima foi o fato de que não tenho mais 14 anos – fato que foi remediado pelas mais rápidas duas horas e quarenta minutos que passei no cinema em muito, muito tempo.

Dezembro de 2009

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta