As Aventuras de Azur e Asmar (Azur
et Asmar), de Michel Ocelot (França, 2006) por
Eduardo Valente
Tolerância mil
Michel Ocelot é tudo que
podemos imaginar se pensamos num autêntico animador francês. Quem conhece seus
filmes anteriores exibidos no Brasil (Kirikou e a Feiticeira e Príncipes
e Princesas) já sabe razoavelmente o que esperar deste Azur e Asmar:
uma animação feita completamente na contramão do desenho animado made in USA,
onde toda noção do espetacular é trocada pelo artesanato de fábulas altamente
conscientes tanto do seu caráter de narrativa quanto de uma certa dimensão didática
inerente ao cinema infantil (mesmo que este não o tente ser). Só que a didática
em Ocelot é a da imaginação não formatada, ou seja: não se trata de ensinar algo
para as crianças dizendo que elas devam fazer isso ou aquilo, mas simplesmente
levar a sério a responsabilidade que está implícita no ato de estar falando para
um público em formação, e ao urdir sua ficção fabular (sempre o terreno do diretor),
colocar nos mínimos detalhes uma visão ética do mundo. Se
dissemos que Ocelot é um típico francês, talvez nunca tanto como neste seu filme
tenha ficado claro que, antes de tudo, ele quer falar para as crianças do seu
país: numa França cada vez mais inflamada pela tensão étnica, nada faz mais sentido
do que narrar neste momento um filme que é nada mais do que um enorme desejo de
louvar a cultura dos países árabes e a possibilidade de irmanação destes com os
franceses. Sem precisar de nenhum discurso ou cena banal de atualização, o forte
componente político da didática de Ocelot está mais do que claro. Se desde sempre
uma das principais marcas de seus filmes é que neles o grande vilão é sempre o
maniqueísmo (com as figuras aparentemente malévolas sendo constantemente relativizadas),
Azur e Asmar radicaliza esta opção. Trata-se, na prática da narrativa de
uma odisséia heróica sem vilões. Para
os menos familizarizados com os trabalhos de Ocelot, é verdade que o começo até
pode ser um pouco tenso: aparentemente desconfortável com seu primeiro trabalho
em 3D computadorizado, as cenas iniciais, que apresentam os personagens, parecem
excessivamente travadas, aprisionadas tanto pela repetição de um mesmo formato
elíptico (com fades que separam as cenas) quanto pela pouca exploração do espaço.
O que aparenta ser quase um defeito, aos poucos revelará o porquê: de fato não
é o espaço onde o filme começa (o continente europeu) que interessa a Ocelot explorar
– e o filme só vai ganhar vida e encanto ao sair deste junto com o protagonista
Azur. Na chegada aos países árabes, a narrativa vai ganhando força junto com a
entrada em cena de uma série cativante de personagens coadjuvantes. É quando Azur
literalmente abre os olhos para as belezas do continente africano que o filme
ganha força – e aí não pára mais. O percurso de aventuras
dos personagens tem tanto o encanto de uma aparente ancestralidade de registro
narrativo quanto uma beleza visual e sonora absolutamente inesperadas, numa exploração
conscientemente não-espetacular da tecnologia dos computadores. Se o cinema de
Ocelot é de uma outra temporalidade em relação a ação constante e incessante dos
desenhos hollywoodianos, aqui ele exacerba esta opção, e parece nos indicar
que, sem um choque de forma, não é possível haver choque de conteúdo.
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