Babel (idem), de Alejandro González Iñarritu (EUA, 2006)
por Cléber Eduardo

Iñarritu e Ariaga dormindo no trono

Um acidente de carro era o elo de conexão dos três episódios independentes de Amores Brutos. Não havia simultaneidade de ações com paralelismo narrativo, mas uma simultaneidade parcial sem narrativa paralela. Um segmento começava e terminava antes de começar o seguinte (como em Trem Mistério, de Jim Jarmush, conectado por um tiro). O método de entrelaçar núcleos dramáticos, por um acidente envolvendo cada uma das partes enfocadas, foi mantido em 21 Gramas, filme seguinte da parceria Alejandro Iñaritu/Guillermo Ariaga, que, novamente, se utilizava do dispositivo do acidente de carro como elo de ligação dos dramas mostrados. Dessa vez, porém, em vez dos episódios sucederem um ao outro (como em Amores Brutos), eles foram misturados, não como narrativa de simultaneidades expostas paralelamente, mas sim como fluxo sem respeito por cronologia do tempo dramático. Propunha-se um trânsito entre passado e presente, sem setas excessivamente indicativas. A variação do modelo empregado no filme anterior reforçava a noção de ações mutuamente influentes e derivadas: um acontecimento ou uma decisão acarreta efeitos e conseqüências em relação a quem não está diretamente ligado a esse acontecimento ou decisão. O mundo ao redor muda com cada experiência vivida. Muda para pior, sempre.

O método e a visão de vida da dupla Iñarritu/Ariaga agora vira fórmula desleixada em Babel, com a conexão entre quatro “núcleos étnicos” demonstrando sinais de “barra forçada”, sem um elo realmente integrado a cada um dos segmentos, plantado no roteiro apenas como esquema necessário para se estruturar a narrativa. O que os conecta, como em Jarmush, é um tiro: duas crianças marroquinas, brincando com uma arma recém-comprada pelo pai para espantar abutres, provocam um “acidente”. Acidente mesmo? Elas tentam acertar um ônibus para testar o alcance da bala. Uma delas acerta. Corte para um lar americano no qual uma babá mexicana cuida do casal de filhos do patrão e, justamente por conta de um abuso de quem paga seu salário, leva as crianças para uma festa de casamento no México, com conseqüências previsíveis. Por um telefonema sabemos que a patroa da babá está hospitalizada. Não demoraremos para, voltando aos momentos anteriores ao tiro, vermos essa mulher e o marido, ambos em crise por conta da perda de um filho, fazendo turismo terapêutico no Marrocos. E o quadrado se completa com as experiências de uma adolescente japonesa surda-muda, filha de uma suicida e de um sujeito que, conforme saberemos mais adiante, deu uma arma de presente para um guia em uma viagem pela África – a arma do tiro, evidentemente.

Dado o esquema, nunca tão desleixado em seu jogo de armar, temos o enfoque. Cada um dos núcleos gira em torno de uma célula familiar e será essa célula o conforto possível para o horror do mundo (ou da vida). Não por acaso (e de forma óbvia) vê-se um letreiro final no qual o diretor dedica o filme aos filhos, elegendo-os como a única luz possível em um reino de trevas. A família passa a ser vista como a cápsula de resistência para as dores e perdas. Essa atitude já é suficiente para se propor uma convivência de metafísica e política em Babel. Metafísica porque a visão do cineasta é de uma anti-religião religiosa: o mundo e a vida são um perigo em si mesmos para o ser humano, sempre vítima de acidentes e do imponderável em cada um de seus filmes, restando lamentar essa condição ou proteger-se entre os seus. E ai aqui entra a política porque, diante dessa visão metafísica, Iñarritu  cultiva o medo e a reclusão (o contrário de M. Night Shyamalan, por exemplo, que trata da superação do trauma).

No entanto, a política vai mais longe. Quando se manipula representações de povos, culturas e etnias, que estão no filme não como um dado qualquer, mas como povos, culturas e etnias, uma série de implicações vem à tona. Não se filma duas crianças árabes brincando com uma arma, com irresponsabilidade quase perversa (das crianças), sem correr o risco de se estar realimentando estigmas do momento. Escolher essas crianças e o tiro dado por elas como elo de ligação é uma escolha racional (e política). Também é política a maneira de se representar cada um dos segmentos. Em linhas gerais, fica-se nos estereótipos. O núcleo marroquino e mexicano veicula o que há de mais selvagem para o cineasta – porque ele sublinha, afinal, esses dados de selvageria. Não apenas o tiro, mas a polícia, a higiene, o incesto velado entre um casal de irmãos e os cuidados médicos dos marroquinos são expostos como parte de um primitivismo generalizante, sem sutilezas ou complexidades, que não se desmonta nem com a cordialidade do povo, com a recusa do guia por um dinheiro de recompensa por sua postura solidária ou com a flexibilidade da dondoca americana no mundo árabe, começando o filme jogando uma pedra de gelo fora por não confiar na origem da água e terminando por urinar em uma tijela não exatamente tinindo de limpa.

E há o mexicano interpretado por Gael Garcia Bernal, também um selvagem pela maneira de ser filmado, seja porque quebra o pescoço de uma galinha, seja porque dá tiros de comemoração na festa de casamento. Suas atitudes são mediadas, para nós espectadores, pelas crianças americanas, que, com seus olhares tensos, nos indicam a reação buscada (pelo diretor). O mexicano é o outro; as crianças somos nós (nossos olhares para aquele outro bruto). Também não alivia muito se, mais ao final, as autoridades americanas irão fazer desse rapaz um sujeito acuado por conta de sua origem e pelo fato de estar carregando duas crianças americanas no carro. O estigma identitário está dado de antemão em relação a seu processo potencializador.

Já as famílias do Primeiro Mundo (os americanos e japoneses), vítimas de perdas próximas recentes, têm exclusividade dos traumas psico-afetivos. Passam o filme lutando contra dores emocionais, não contra o peso de serem mexicanos e marroquinos. O problema deles não é o de serem de onde são, mas o de estarem simplesmente vivos, portanto, sob ameaça constante de sofrer. Se a responsabilidade pelo “acidente” é motivada pelo japonês (por ter dado uma arma a um árabe), se a jornada da babá com as crianças é gerada pela atitude linha dura de seu patrão americano, essas razões não são maiores que o fato de marroquinos e mexicanos terem feito o estrago com suas irresponsabilidades. Não se está de forma alguma acusando Iñarritu de ser um cineasta mal intencionado, com a proposta de execrar o terceiro mundo, mas se levantando a hipótese de ter um olhar redutor, infestado de preconceitos e de formatações prévias e midiatizadas.

Tão importante quanto perceber os sentidos surgidos de suas opções no roteiro é identificar quais são suas opções estéticas. Há um ou outro ponto a ser notado. O primeiro é o uso do som no extracampo e do silêncio como forma de criar efeitos dramáticos (algo tratado de forma mais radical em seu grosseiro episódio de 11 de Setembro). Outro ponto é sua dinâmica de câmera, quase sempre na mão, quase sempre suavemente tremida nos planos “fixos”, eventualmente movimentada lateralmente em travelings ligeiros (mas sem as chicoteadas de 21 Gramas). E um terceiro dado estético é a adoção de um ritmo de impacto, com situações estilhaçadas, que, como faz Fernando Meirelles em O Jardineiro Fiel, passeia velozmente pelos espaços (o México, sobretudo), sem se deter em nenhum ambiente, sem sentir nada, apenas fazendo resumo de quais são os estereótipos visuais do lugar. É o olhar de quem anda de carro e não a pé. Mais convulsão e sensacionalismo que imersão/observação.

Talvez o único segmento rico em potencialidades seja o do Japão. Temos lá uma adolescente cheia de problemas, sem a possibilidade da comunicação verbal, sem a capacidade de ouvir, o que traz uma série de conseqüências. Uma é a do estigma. Outra é do contraste entre sua deficiência e a perfeição de seu corpo, com o qual ela passa a seduzir os homens para matar a carência. As experiências dela com as amigas por Tóquio (principalmente os momentos noturnos, em uma balada regada a drogas), produzem um fluxo de fragmentos jamais despido de sensibilidade, jamais voltados apenas para a manutenção do esquema estrutural, com uma pulsação própria em alguns momentos. No entanto, aqui nesse núcleo mais que em todos os outros, a síndrome de coitadinho, empregada na maneira de representar a adolescente, berra ainda mais alto, levando uma personagem tão potente em sua imagem e possibilidades ser reduzida a uma patologia comportamental. Mais um sinal explícito do medo da vida alimentado pelo cinema de Iñarritu/Ariaga.


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