in loco - cobertura dos festivais
Vício Frenético (Bad
Lieutenant: Port of Call New Orleans!), de Werner Herzog (EUA, 2009)
por Julio Bezerra O
espetáculo do policial corrupto
Após salvar um
prisioneiro de afogamento em decorrência do furacão Katrina, o detetive Terence
McDonagh (Nicolas Cage) é promovido a tenente. Com as costas seriamente contundidas,
passa a depender de analgésicos para agüentar a dor. Um ano depois, está viciado
em Vicodin e cocaína. Quando uma família de imigrantes africanos é assassinada,
ele é nomeado para o caso e sai à procura do assassino. Apesar de reconhecermos
já na sinopse (para além do título) Vicío Frenético, de Abel Ferrara, Werner
Herzog insiste que este seu Bad Lieutenant: Port of Call New Orleans! não
se trata de uma refilmagem ou mesmo de uma continuação. Segundo ele, a única coisa
que une seu filme com o de Ferrara é o personagem central, um policial corrupto
e viciado em drogas e jogo. Herzog tem uma certa razão. Seu
filme nem de longe se parece com o do americano. Que fique claro: não há juízo
de valor nessa afirmação. As propostas estético-narrativas são, de saída, completamente
diferentes. Em primeiro lugar, em uma coletiva no Festival de Veneza, Herzog sublinhou
ter procurado escapar da atmosfera comum ao filme noir, em que "o
mal permeia tudo". Ele preferiu colocar em primeiro plano um certo humor,
"o aspecto divertido do mal". Em segundo, os filmes do alemão se afirmam
em uma relação nada cautelosa entre a técnica cinematográfica e a realidade filmada,
seus longas são contaminados pela intervenção,
na realidade filmada, de todo aparato técnico do cinema e sua artificialidade.
Ainda assim, as histórias se parecem, e o produtor de ambos os filmes é o mesmo,
assim como o título em inglês. Não tem jeito, a questão se impõe: por que assumir
este projeto, ainda que seja apenas para produzir algo tão completamente fora
de sintonia com o excelente original? Pergunta sem resposta. Herzog, assim como
Ferrara, se interessa pelo excesso. Ou melhor, pelas conseqüências do excesso,
que vislumbram uma tentativa de sair de si, de transcender o próprio corpo em
busca de alguma coisa. Os personagens de Ferrara são consumidos pelo crime, pelo
sexo, pelas drogas, pelo jogo. Estão sempre atrás de redenção ou vingança – o
curioso é que redenção e vingança se fundem em uma única e mesma coisa; aqueles
de quem seus personagens querem se vingar são justamente os mesmos que podem lhes
conceder perdão. O policial de Herzog, no entanto, não parece estar atrás de redenção.
A obsessão dele se resume aos seus vícios. Mais do que isso:
o policial se afirma sempre no espetáculo. Afinal, ele é Nicolas Cage. Cage
busca sempre o show, fazendo de toda cena um solo. Ele está sempre no registro
do espetáculo. Este Bad Lieutenant mais parece um monólogo. Cage interrompe
o seu próprio fluxo de pensamento; discute consigo mesmo; aplaude algumas de suas
decisões; marca as conversas com outros personagens com uma série de tiques corporais;
além, é claro, de ficar, vez ou outra, imensamente irritado. Sua atuação como
policial corrupto e viciado atenua a vilania do personagem, mesmo nas seqüências
mais definidoras de sua negatividade. Quando o personagem ameaça duas senhoras
de morte, não provoca indignação e revolta, mas sorrisos e até mesmo algumas gargalhadas.
Estas emergem pela sua própria habilidade (“maior que a vida”) como ator. O espectador
se aproxima dele pelo humor e pelo carisma. A crueldade fica mais palatável com
ele em cena. Agora,
como o filme se posiciona em relação a isso? O normal seria presumir que, ao atingir
esse regime de espetáculo, ao monopolizar todas as atenções dentro do longa, Cage
iria contra o filme. Essa é, aliás, uma crítica que tem sido feita a este ator,
o fato de ele se servir dos longas em benefício do espetáculo dele mesmo. Mas
é isso que vemos mesmo em Bad Lieutenant? Não me parece. Cage e Herzog
exploram juntos as possibilidades cômicas de uma vida desregreda, vivida em uma
série de limites. E o alemão parece se divertir tanto quanto o americano, brincando
com clichês de filme policial; acrescentando alguns iguanas inexplicáveis em cena
(só para não perder a piada); montando uma seqüência com a mesma música que fecha
a cena final de Stroszek, um dos melhores filmes do cineasta. A
espiral de Bad Lieutenant segue em direção à farsa. O filme é uma espécie
de pastiche que vez ou outra nos pisca o olho para nos deixar claro o quão consciente
de sua comicidade ele é. Ou seja: a lógica de violência do personagem de Cage
não está subsumida a nenhuma explicação política ou social, nem mesmo a uma distância
ou crueza um pouco mais crítica. Herzog se limita a acompanhar fascinado os passos
de seu protagonista. O mal aqui é cinicamente abraçado, não tem a intenção de
atingir qualquer finalidade, pura atividade de excesso gratuito. Estamos diante
de um cinema que se esgota na sua contemplação. E esse cinema não tem outro remédio
senão glamourizar o que nos mostra. Mas é justamente essa impressão de que estamos
sendo arrastados para um delírio esquizofrênico de pesadelo sem regras, e de que
devíamos nos deixar levar pela multiplicidade de cenas chocantes com que somos
bombardeados, que é preciso evitar e combater. Ao contrário
da maioria dos filmes com “compromisso social” – cuja tendência geral, por respeito
ao sofrimento dos personagens e pela reivindicação de solidariedade, é ignorar
o sistema estético-dramático – Herzog afirma uma ética interna à própria forma
do filme. Ela não é de direita ou de esquerda. A forma é menos o refúgio de uma
ideologia consciente do que de uma moral de cinema. O cineasta abraça seu personagem,
é tomado por ele, se afunda e se perde no filme, perfeitamente envolvido e contaminado.
O problema é que nesse caso a contaminação é maligna. A entrega ao personagem,
ou melhor, a entrega ao personagem tal como ele é vivido por Cage, acaba revestindo
o filme com certo cinismo niilista. É tudo uma grande brincadeira. E o que vemos
então não é a erupção de um tema ou de um comportamento subversivos, mas a imersão
prazenteira nos excessos racistas e politicamente incorretos do personagem. E
nós somos aqui autorizados pelo filme a desfrutar desses excessos. Setembro
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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