in loco - Festival de Brasília
O Baixio das Bestas, de Cláudio
Assis (Brasil, 2006)
por Cléber Eduardo
Radicalidade controlada
Quando o diretor pernambucano Claudio Assis optou
por não falar na apresentação de O Baixio das Bestas, seu
segundo longa-metragem, levantou a suspeita sobre uma possível
mudança em seu comportamento, até então caracterizado por uma
reatividade contra tudo e todos. Também deixou claro, ao adiar
o momento de subida ao palco e beijar a boca de todos da equipe,
uma consciência da performance. Assis não é mais o rebelde de
boca solta pedindo passagem para se instalar no cinema brasileiro.
O êxito crítico da estréia, com Amarelo Manga, o colocou
na vitrine: deixou de ser um realizador caracterizado pelo vocabulário
virulento para se tornar uma expressão importante da nova geração
de cineastas brasileiros. O silêncio de sua performance no palco
do Cine Brasília, portanto, parece carregar essa noção da importância
recém-adquirida.
Essa suspeita de mudança e a consciência da importância
por parte do diretor também são confirmadas pela alteração de
registro entre o primeiro e o segundo longa. Depois da narrativa
de impacto em Amarelo Manga, que puxava o espectador pela
camisa para se instalar no ambiente de baixa renda do Recife,
Assis agora propõe uma linguagem menos contundente, mais “artística”,
sem deixar a agressividade de fora do quadro. O diretor novamente
ambienta as situações em um espaço social duro, desta vez na Zona
de Mata de Pernambuco, habitado por homens sem limites físicos-morais
na relação com as mulheres e por mulheres impotentes na condição
de alvos de violência. Temos a continuidade de um olhar voltado
para seres com potencial sombrio, de gestos agressivos, sádicos,
bestiais, enredados em um universo pelo qual são formatados. Nesse
sentido, Amarelo Manga permanece a referência.
Voltamos a ver relações entre corpos pontuadas
pela dominação de uns sobre outros e pela extração tanto de prazer
quanto de humilhação nos encontros sexuais. Há mais uma vez a
busca da transgressão – ao menos para nossos padrões conservadores,
assépticos e assexuados em 2006. Assis continua disposto a ir
aonde ninguém mais vai. Filma sem pudores personagens de moral
movediça, conturbada ou ausente, capazes de exibir e bolinar uma
menina (Mariah Teixeira, maior de idade, filmada com sensualidade),
de currar mulheres sem consentimento, de expor o lado escuro dos
seres humanos. Reclamou-se nas conversas após a sessão que o diretor
propõe uma representação negativa das mulheres, reduzindo-as à
condição de prostitutas, quando, na tela, vemos mulheres como
vítimas dos homens e homens como algozes das mulheres, sem muita
chance de redenção.
É na mise-en-scéne especificamente, do
tempo dos planos a maneira de organizá-los, que se percebe uma
mudança significativa. Com exceção de uma única seqüência, não
há planos de cobertura, nenhum corte no interior das cenas. No
máximo, travellings suaves, embora evidentes. Escolhe-se
um lugar para se estabelecer um ponto de vista privilegiado, eventualmente
no teto, e deixa-se a câmera reter os acontecimentos e as conversas.
Temos, assim, uma raridade: um filme disposto a enxergar o que
está mostrando a nós, que não arregala os olhos, que não os tira
rapidamente dos ambientes e corpos depois de vê-los, que se instala
em lugares e na duração, mas, aparentemente, sem procurar o “efeito
do plano esticado”. Se podemos ver a racionalidade da construção,
no limite do esvaziamento da vida e da exposição dos artifícios
cênicos, essa característica não abafa a autenticidade bruta das
interpretações.
De qualquer forma, é, sim, um filme “pensado”.
Ou melhor, um filme que, ao caminhar, pensa a caminhada. Há uma
reincidência de momentos nos quais a câmera chega antes da entrada
em quadro de algum personagens ou fica depois deles deixarem os
limites do campo de visão. Cláudio Assis estaria em sintonia com
as mais desafiantes maneiras contemporâneas de elaborar as ações
dentro de um espaço determinado (pensamos, por exemplo, em Jia
Zhang-ke)? Certamente. Há ainda uma clara disposição de se cultivar
rabos de planos, extensos às vezes, abortando uma dinâmica de
continuidade/unidade narrativa. A estrutura é elaborada por blocos
compartimentados: uma seqüência não chama a seguinte, tampouco
deriva da anterior. São autônomas. Começam e terminam como se
uma fossem pinturas com movimento interno. A evolução dramática
e narrativa é mínima, rarefeita. O Baixio das Bestas avança
e, ao mesmo, ameaça seu próprio avanço. Está sempre a passar a
rasteira em qualquer tentativa de se prever o próximo passo.
O diretor novamente se vale da luz poética de
Walter Carvalho, aqui menos asfixiante que no show-solo de O
Veneno da Madrugada, de Ruy Guerra, e conta com a rigorosa
operação de câmera de Lula Carvalho. Essas menções não são meramente
informativas. Pai e filho embalam o universo de Cláudio Assis
com imagens chiques, sofisticadas, de uma plasticidade arrebatadora
– que, inevitavelmente, colocam limites na selvageria das situações
expostas. Nesse sentido, O Baixio das Bestas tem, de forma
ampla, uma tensão interna. Se vemos quebras dos manuais de comportamento
dramático e narrativo, como no plano em que Matheus Nachtergaele
dirige-se à câmera, afirmando o cinema como lugar onde se “pode
tudo” (frase militante de uma relação amoral do diretor com a
imagem), também vemos uma organização bem emoldurada dos impulsos
mais agressivos. Por isso, nos fica a questão: seria o cinema
de Cláudio Assis, até o momento, apenas um esboço de radicalidade?
Ela ainda não estaria para emergir lá adiante, sem tantos cuidados
para parecer artística, sem tantos filtros, sem essa busca do
bom gosto na transgressão, sem uma transgressão racionalizada
demais, ainda com sua organicidade controlada? O tempo dirá.
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