Barbara,
de Christian Petzold (Alemanha,
2012)
por Filipe Furtado
Vive-se
aqui
Barbara é um filme que toma para si o desejo de
dar conta do que significava morar na Alemanha Oriental, em particular
na última década do governo comunista, quando a
abertura se revelava inevitável, já não era
possível se apoiar na crença no regime local e simplesmente
vivia-se um estado constante de espera. Para atingir isso, Christian
Petzold lança mão de um dos mais bem calibrados
trabalhos dramatúrgicos do cinema recente, costurando com
imenso cuidado suas observações sobre o período
(no caso, a Alemanha Oriental em 1980) com uma progressão
dramática que trabalha para que cada nova ação
seja marcada e informe o trabalho de ambientação
que o filme busca estabelecer (o roteiro foi co-escrito pelo grande
Haroun Farocki, para quem noções de história
e do viver num estado policial são temas de interesse constante
e atual para bem mais do que um passeio rápido pelas desgraças
de um outro tempo).
O filme é marcado justamente por imensas curiosidade e
consciência das dificuldades de reconstruir um estado policial,
e uma preocupação constante de evitar se posicionar
ao lado deste estado, de simplesmente perpetuá-lo - o que
ajuda a explicar o porquê de Barbara ser quase
todo filmado à maneira de Hawks, na altura dos olhos. Em
um filme em que a ideia da paranoia é tão presente,
o voyeurismo é ausente: seus personagens podem estar cientes
o tempo todo de que são observados, mas o filme evita tomar
o olhar do observador.
É
esta descrição de viver sob um estado policial o
que primeiro se destaca em Barbara. Parte disso está
diretamente na ação: todos os cuidados com que a
protagonista (uma médica recentemente transferida de Berlim
para um hospital pequeno no interior, por motivos a principio
obscuros) tem para preservar sua privacidade, as inspeções
constantes às quais é sujeita, a paranoia que torna
até o aparente inocente idoso que questiona o que acontecera
com o carro parado na estrada num informante em potencial. Este
é, porém, apenas o lado superficial desta experiência,
porque viver sob um estado policial, Barbara nos demonstra,
é algo que essencialmente se resolve na postura de cada
um. Cada personagem que se move pelo quadro de Petzold carrega
consigo a mesma suspeita constante, a mesma certeza de que nada
ali pertence somente a ele, de que cada gesto intimo precisa ser
furtivo. Não à toa, todos em Barbara são
antes de tudo atores muito conscientes dos papéis que deles
se espera.
Petzold constrói seu filme todo sobre a relação
de Barbara e o seu supervisor no hospital, que revela já
no seu primeiro encontro um interesse muito grande nela - mas
o espectador e a própria Barbara sabem o tempo todo que
ele mantém uma relação próxima com
a polícia local. Boa parte das sequências do filme
se dá no mesmo movimento circular entre essas duas personagens:
ela sempre na defensiva se esquivando, ele procurando quebrá-la
com um tom direto único dentro do universo do filme (ele
nem sequer nega a acusação de ser
um informante). Em um dos melhores momentos do filme, o homem
relata a triste história que o levou aquele lugar (basta
dizer que ela envolve um par de bebês recém nascidos
que terminaram cegos), e a única reação possível
para Barbara é questionar se a história é
ao menos parcialmente verdadeira, incapaz que se tornou de lidar
com qualquer tipo de revelação pessoal como uma
troca natural entre duas pessoas que se respeitam. Petzold costura
tão bem a maneira como a dança entre os dois se
move do pessoal ao histórico e de volta, de como ela abarca
toda uma série de convenções de drama para
melhor refletir uma experiência, que, na altura em que Barbara
baixa um pouco sua guarda, próximo ao final do filme, e
usa um palavrão para se referir ao oficial da Stasi que
a atormenta, ela tem a força e a intimidade de um momento
que fora genuinamente preparado por cerca de uma hora de projeção.
As cenas com casal central de Barbara alcança
por vezes a clareza emocional dos filmes anti-nazistas que Frank
Borzage rodara pouco antes de Hollywood entrar de fato no esforço
da II Guerra. Boa parte da força de Barbara provém
da forma precisa com que a direção de Christian
Petzold traduz esta experiência, especialmente pelo seu
uso de locações e design de som. Há uma cena
notável na primeira parte do filme, em que a protagonista
recebe um tour pelo novo prédio dela, que termina com uma
visita ao porão. Mas esta descida ao porão tem a
exploração e o risco de um daqueles filmes de Edgar
G. Ulmer em que as trevas aos poucos vão ganhando
formas claras e o medo se torna um dado concreto. Cada espaço
de Barbara (os corredores do hospital, o apartamento
da protagonista, etc.) é sempre um lugar de risco que pode
a qualquer momento se desequilibrar rumo ao horror.
O que torna, porém, Barbara um grande filme é
a sua recusa de se encerrar no museu de época que acomete
tantos passeios por regimes totalitários, e a consciência
que o filme exibe de que, a despeito de todos os problemas, há
pessoas que vivem e seguirão vivendo ali. Barbara
não é um filme que pergunta “como vivem aqui?”,
mas um que afirma “vive-se aqui”, o que é algo
completamente diferente. Se acontece de ser o trabalho mais
acessível da carreira de Christian Petzold,
isto é muito justamente por conta do desejo de comunicar
este sentimento que o leva a optar por cores mais quentes que
reflitam o verão da Alemanha Oriental, assim como uma abordagem
dramática menos fria do que em muitos dos seus filmes anteriores.
As imagens encontram imenso prazer na paisagem local (as caminhadas
de bicicleta da protagonista, seu encontro furtivo com o amante
da Alemanha Ocidental), assim como o filme exibe uma atenção
para cada pequeno gesto genuíno que sublinha o quão
poderosos estes pequenos momentos podem ser. Estas pequenas
pausas são tão vitais para Barbara quanto
as inspeções que o inspetor de policia realiza na
casa dela de tempo em tempo. Em dado momento, seu amante diz que
ela pode simplesmente matar tempo enquanto seu plano para tira-la
do país se desenvolve, mas esta jamais é uma opção
para Barbara, personagem e filme, porque ambos sabem que esta
ideia de passar tempo esperando por algo abstrato em um futuro
incerto equivale à morte e não poderia estar mais
distante da observação buscada aqui. No final das
contas, haverá sempre novos pacientes, novas caminhadas,
novos amantes.
São
operações conflitantes estas, em que ao mesmo tempo
descreve-se a paranoia constante causada pela presença
da Stasi e a afirmação que a contrabalança,
mas é somente combinando as duas que Barbara pode
dar conta do desafio que tomara para si. É o respeito imenso
por essa experiência que por fim retira o filme da esterilidade
do artefato histórico e o devolve ao contemporâneo.
O estado policial que a Stasi tocara na Alemanha Oriental, afinal
de contas, não é assim tão distante do nosso
estado policial de todos os dias. Barbara termina se
revelando muito mais próximo de um filme como O Som
ao Redor do que de um A Vida dos Outros (Kleber
Mendonça e Christian Petzold até dividem o mesmo
gosto pelo espaço cênico à John Carpenter).
Christian Petzold passou a maior parte dos últimos vinte
anos radiografando a sociedade alemã pós-reunificação
e não podia-se esperar menos dele do que este mergulho
na história com um olhar sempre no hoje. Se a solução
foi buscar, em Hawks, uma câmera que encontrasse seus personagens
na altura dos olhos, Barbara se encerra também
numa troca de dois olhares que se reconhecem – um momento
tão privado entre duas pessoas quanto possível,
e também o único gesto político de resistência
aceitável para sair do estado policial, ontem e hoje.
Outubro de 2012
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