Batman - O Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight),
de Christopher Nolan (EUA, 2008)
por Paulo Santos Lima

Um rosto que dá conta de um filme

Batman – O Cavaleiro das Trevas trata de um mundo danificado cuja restauração da ordem, parcial, só pode ser realizada na clandestinidade. Visão interessante para um filme industrial, mas cujas imagens bastante pensadas não inspiram a instabilidade, a idéia de mundo em perigo aos estilhaços (como, por exemplo, Sganzerla concebeu em seus filmes “pré-apocalípticos” da Belair). O problema, sobretudo, é que essa estética extremamente limpa, pensada e alinhada à convenção vem da cabeça de um diretor como Christopher Nolan, que parece não possuir senso de decupagem e ritmo. Por outro lado, a presença de Coringa tem uma potência estética sideral, uma máscara borrada, ruído visual que institui uma clandestinidade à margem da convenção “realista” proposta pelo filme. Coringa é o êxito da fusão entre atuação, discurso falado e visual, mise-en-scène e risco de implosão da unidade fílmica.

Coringa é uma peça alienígena ao filme, pois Nolan adere a uma estética que se convencionou “realista” (as cores esmaecidas, câmera na mão, cortes secos etc), e Coringa é um sujeito da performance, que inclusive torna a encenação algo selvagem, em estado bruto, e, que por algum motivo mágico, puxa a fraca câmera de Nolan para si, deixa-a transtornada, arfante, e até mesmo calma, o que é um milagre para um filme tão cheio de aéreas e gruas; longa tão encantado com a possibilidade de espetáculo que, ao final, não consegue construir nenhuma cena de ação espetacular. Coringa é um tanto mais que isso, pois ele não cria a aproximação com o mundo real pela chave dos arquétipos, como são os outros personagens, que em nada possuem de alegoria ou fabulação. Ele cria, na relação câmera-corpo, a sensação de “real” – desse real que compreendemos como nosso, do nosso mundo e seu complexo jogo de forcas.

Seria injusto, contudo, não abrir um parênteses e perceber que este é o filme que Christopher Nolan mais se arriscou, mais procurou construir um mundo mais complexo. Isso, claro, amarrou ainda mais sua narração aos discursos e menos à experiência dos personagens, mas por outro lado cria um painel minimamente interessante. O Batman que inicia o filme legitimado junto aos mecanismos reguladores sociais tenta passar seu bastão a alguém de cara limpa, sem máscara, sem artifícios, sem armadura. Ele quer o promotor público Harvey Dent como o homem da justiça. A correção das coisas através dos mecanismos institucionalizados.

Mas o caos em que se encontra Gotham City (Nova York?), corrompida e maltratada por uma criminalidade que vai da máfia aos economistas e juristas, exige medidas não mais extremas, mas marginais, tortas e indescritíveis. Batman, que é o herói que também causou toda essa loucura (como diz uma personagem a ele, que a ouve literalmente no canto escuro do plano), é um ser ambíguo, ainda que o filme mantenha-no na estrada da correção, do heroísmo. Mas é também bastante pálido (involuntariamente, talvez, e possivelmente pela própria limitação que aquela roupa e capa meio ridículas causam, aliada às cenas de ação bastante duras). Um estado de coisas não muito fora do óbvio e raso, mas bastante interessante junto à produção industrial mainstream.

Não é irrelevante citar que o primeiro plano do filme seja um fogo tomando a tela. E que, a seguir, a câmera sobrevoará o mar de arranha-céus envidraçados até chegar à janela a qual será explodida por um assaltante mascarado. Nos planos seguintes, vemos a gangue se matando, até o momento em que Coringa surge pela primeira vez no filme, já num enquadramento atípico, total, monstruoso: o scope tomado pela face personalíssima de Coringa, apresentando-se, num plano frontal, para nós. Toda a seqüência parece apontar menos para uma disenteria a ser sanada pelo(s) herói(s) e mais ilustrar um novo mundo, um mundo instável, sem ética (como diz o funcionário do banco assaltado, sobre como eram os bandidos de antes). Uma situação incontornável; no máximo, freada por Batman, delegado Gordon e sua turma. O Coringa, desde aqui, lembrará a todos que não há volta, que todos tendemos ao pior. O filme nega, até, mas Coringa tem a câmera para si e faz o discurso para nós. Consegue, inclusive, fazer com que a câmera gire e ele, pendurado por uma corda, de ponta-cabeça, pareça estar a vôo livre, flutuando, além do quadro. Para um filme tão controlado e convencional como este, em que a câmera faz seus vôos e os cortes são inesperados mas tudo isso não criando nenhuma instabilidade de tão propositadas que são, a sensação de liberdade que surge nas cenas com Coringa é bastante expressiva.

A não esquecer, é do ator Heath Ledger o êxito que faz de Coringa a salvação de Batman – a salvação como discurso audiovisual que expressa algo pelo tempo-espaço. As nuances, a duração mais alongada que ele gasta para suas cenas, tudo parece ultrapassar o terreno seguro adotado por Nolan, parece sabotar a fluidez mecânica e ultrassônica na qual o diretor arma seu filme. Se o pragmatismo é a lei deste filme cujos personagens cumprem papéis discursivos muito claros, Coringa é o sujeito da arte, da ideologia, da performance como puro deleite. É irônico que ele seja, de fato, o personagem que cumpra melhor a estruturação deste Batman – O Cavaleiro das Trevas, que é a de vários atos monocórdios, como um teatro de palco (com múltiplos pontos de vista e rompimentos do espaço que, claro, são cinematográficos).

Coringa é o fogo da primeira imagem do filme, é o exploitation que não se vê há tempos num filme megaindustrial. Nessa eclosão total de uma face, de um corpo e de um discurso que escorrem e tomam literalmente a tela larga do scope, há a síntese cinematográfica da imagem que nasce da física para então dar conta da metafísica. O corpo e face transtornados do artista e poeta do caos Coringa (de Heath Ledger) é a confirmação da fissura, da vaporização, do perigo, da hemorragia criativa e destrutiva humana, da criação artística que procura um senso ao mundo em tumulto oceânico. A máscara, no caso, é a confirmação do simulacro que se faz verdadeira identidade, da performance que alude à vida louca que traz beleza nos mais medonhos dos atos. O da realização cinematográfica de um diretor como Nolan, que, no final das contas, assinou um trabalho que conta com uma das mais selvagens presenças e relação ator-câmera do cinema.

Agosto de 2008

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta