Rebobine,
Por Favor (Be Kind Rewind), de Michel Gondry (EUA, 2008)
por Paulo Santos Lima Um
diário pode servir ao mundo
Salvo a exceção de
Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, até porque co-roteirizado com
Charlie Kaufman, Michel Gondry nunca pensou a memória além de uma mera porta de
acesso para suas experiências pessoais, ou portanto como uma ferramenta demarcadora
da “autoria” do cineasta. É curioso, assim, como Rebobine, Por Favor mantém-se
fiel aos procedimentos do cinema de Gondry ao passo que, por um refinamento extraordinário,
consegue voltar-se mais criticamente à memória além do mero devaneio afetivo do
autor.
Gondry, no caso, opta por uma simplicidade que faz muito bem às
suas limitações. Parte de um objeto-fetiche (a fita VHS e o universo que a circundava
até a década passada), e cria um leve, mas pertinente filme sobre a construção
de uma memória e sua conseqüente coletivização. É como se, finalmente, este artista
plástico, videoartista e excelente diretor de clipes (Bacherolette, de
Björk, é uma obra-prima do formato), conseguisse extrair dos procedimentos que
costuma adotar em seus filmes mais pessoais (aqueles nos quais ele assinou sozinho
a concepção) algo além do diário. Na utilização que faz dos objetos para construir
um cinema lúdico que fetichiza objetos do seu passado (os anos 70 e 80), como
apontadores, lápis, maquetes, telas de TV esféricas, brinquedos Lego, isopores,
papelões, trenzinhos, maquetes e casinhas de brincar, Gondry alinha-se finalmente
às discussões trazidas pelas artes plásticas (como transportar objetos e repensar
sua materialidade e função). É bastante notável, contudo, que este seu novo longa
esteja bem mais limpo dessa materialidade dos objetos comum às obras plásticas
do que o anterior e desastroso Sonhando Acordado, que muito parecia uma
instalação ordinária. Sem a cartela à la Jean-Pierre Jeunet, o cinema, no fim,
sai ganhando. Rebobine, Por Favor começa como um documentário
mostrando a vida do pianista de jazz Fats Waller, algo comprovado por imagens
de arquivo que ora e vez podem ser “de arquivo”. Em seguida, um grafite de resistência
à memória do exímio músico sendo devidamente ameaçado pela contemporaneidade.
A representação coloca-se, desde já, como uma presença no filme, pois o real Fats
Waller será assimilado pelos personagens: Elroy Fletcher (Danny Glover) é dono
de uma locadora sediada no prédio em que supostamente o pianista morreu. Fats,
assim, serve como identidade àquele espaço que portará outros problemas, pois
o edifício está em ruínas, Fletcher em vias de ser despejado e amargando o declínio
das locadoras de bairro num momento em que o DVD e a assepsia e tecnicismo das
lojas Blockbuster ganham terreno. Nesse vínculo entre passado e presente, ambos
ameaçados de apagamento, a locadora de Fletcher é a construção de uma memória
em tempo real, ou seja, pelo convívio e experiência de seus usuários, na sociabilidade,
nos tipos que visitam o local. Isso
amplifica-se, sobretudo, quando Jerry (Jack Black) eletrocuta-se e, sem intenção,
apaga todo o conteúdo das fitas. Para não arruinar de vez a locadora e ser trucidado
pelo chefe, Mike (Mos Def) decide refazer os filmes com os recursos possíveis,
em dupla com Jerry. Seguindo os pedidos dos clientes, que visitam ávidos o resistente
acervo da videolocadora, começam refilmando Ghostbusters, seguem por vários
outros, como Robocop, Os Donos da Rua etc, e as contingências naturais
do cinema exigem uma mobilização maior, contando aí com figurantes, outros “atores”,
novos recursos, uso de locação. Fazem os chamados “sweeded” (suecados), cuja procura
é enorme. Jerry e Mike viram estrelas, seres a serem tocados pelo público, que
aceita extraordinariamente as versões primitivas dos consagrados filmes. Essa
aprovação popular é uma escolha consciente: ali, naquelas fitas regravadas, está
registrada uma “história real”, ou história anônima, contra aquilo que seria uma
história “oficial”. O fake é a condição primeira desses filmes “suecados”,
e daí estar claro que essa nova memória sendo registrada e arquivada nas prateleiras
da resistente locadora importa mais pelo significado do que pela origem. Mais
tarde, com o FBI apreendendo os filmes e Fletcher tendo sua loja fechada, decidem
realizar uma mobilização popular para fazer o grande filme sobre Fats Waller,
inclusive reproduzindo seus últimos dias no prédio. Saberemos que o músico jamais
morou ali, mas, ainda assim, as imagens artesanais serão legitimadas pela própria
projeção cinematográfica que ultrapassará paredes. O filme termina em tom de celebração,
mas não é ingênua a afirmação sobre a memória ser uma mera construção, e quão
importante ela parece ser para agregar a experiência de um grupo, de um lugar,
de uma cultura. Ao
afirmar isso, Michel Gondry não sai da idéia recorrente em seus filmes sobre a
memória ser uma instância afetivo-sensorial, portanto cheia de imprecisões e reproduções,
mas sim volta à construção dessas memórias (construção, não origens). Gondry passa
por suas memórias sentimentais, os anos 80 e 90, dos filmes de que gostou, de
uma era pré-internet que era mais “física” e, por conseqüência, mais fetichista
aos objetos. O VHS, no caso, é de uma palpabilidade que o DVD tornou pura imagem
– um quadrado plástico de engrenagens e roldanas oposto ao discreto disco laser
de reflexos coloridos. Gondry encontra, finalmente, um objeto que serve para suas
motivações memorialistas, mas, sobretudo, como conceito de um procedimento de
cinema. Deixa de usar quinquilharias para compor o espaço cênico e passa a emular
um único objeto para que ao redor dele circunavegue a decupagem, a câmera, a dramaturgia
e o resto do aparato. Assim, na tela, numa coerência incrível
com o momento que o filme aborda, temos imagens mais simples, menos elementos
enquadrados, que trazem, por outro lado, mais significados, em planos filmados
por uma câmera móvel bastante lúcida do que interessa ser enquadrado. Gondry livra-se
dos tableaux sem perder certos traços identitários do seu cinema, sobretudo
as trucagens e referências aos filmes B antigos e imagens da TV pré-anos 90, que
aqui fazem todo o sentido no estilo adotado. Com Rebobine, Por Favor, ele
deixa seus ímpetos criativos trespassarem seu ego de artista para chegar a um
lugar perimetral, mais largo e além dos limites circunscritos de sua experiência
pessoal. Outubro de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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