Belle Toujours - Sempre Bela (Belle Toujours)
de Manoel de Oliveira (Portugal/França, 2006)
por Cléber Eduardo

Mágico espelho

A observação mais óbvia sobre Belle Toujours (por parte do crítico, não do diretor) é em relação a A Bela da Tarde, de Buñuel, matriz inspiradora de Manoel de Oliveira. Temos o mesmo ator, Michael Piccoli, a mesma personagem, Severine, e relatos sobre os acontecimentos da obra de Buñuel, todos concentrados nas conversas de Piccoli com um barman (Ricardo Trepa). Vê-se um prêambulo constante, de aproximação permanentemente adiada com Buñuel, organizada como um jogo de gato e rato entre o protagonista e Severine. Ele está atrás dela, sabe-se com qual intenção, e ela foge dele, sabe-se por qual motivo. Até o encontro, filmado à distância, com som da rua, sem ouvirmos o que eles falam, vemos banalidades: Piccoli vai ao bar (onde é observado por duas putas), anda por Paris, vai ao hotel tentar encontrá-la, conversa com o tal barman. Todo o filme é construído para se alimentar a expectativa desse encontro adiado – entre homem e mulher, mas principalmente entre Belle Toujours e Belle de Jour.

Oliveira propõe essa aproximação, mas recua na última hora, evitando explicações sobre o passado dos dois personagens, fingindo uma intervenção na obra de Buñuel, mas mantendo tudo exatamente como era antes do início do filme. Daí não incomodar não termos Catherine Deneuve como Severine: porque Severine mudou e, sendo um filme de Oliveira e não de Buñuel, não existe chance alguma de Belle Toujours ser Belle de Jour. Temos assim uma “pegadinha” de seu Manoel, porque, se nada acontece nesse diálogo entre os dois filmes, se nada acontece nesse “retorno” e reencontro entre os personagens, então Belle Toujours almeja coisa nenhuma: trata-se somente (mas nãoapenas”) de um encadeamento de imagens nada óbvias, com planos com poucos contraplanos, com maneiras alérgicas a lugares comuns na organização da cena, com raros travelings e panorâmicas na passagem entre os enquadramentos.

Temos um filme quase sem propósito, sem ambição, a não ser a de fingir se algo que, no fundo, não está nada interessado em ser. O interesse está, na verdade, na estilização; na mise-en-scène. Isso fica explícito na seqüência do jantar-encontro, em que, antes de iniciarem um acerto de contas sem resultados, homem e mulher apenas dão garfadas, goles na água e no vinho, ela com expressão razoavelmente tensa, ele rindo sem preocupação, manifestando a intenção de manter poder sádico sobre ela. Nenhuma palavra. Apenas murmúrios e expressões. No início da conversa, a luz é apagada, restando as velas. E assim Manoel de Oliveira, que havia transformado o espaço do bar em um ambiente de não-lugar, quase de sonho por seu registro estranho e pouco autêntico, elabora outro espaço singular, aparentemente desconectado de tudo, que está para dar existência à uma atmosfera cênica.

A questão é que, com uma simplicidade desconcertante, com nada de muito importante a ser dito pelas palavras, com nenhum grande conflito em jogo, o cineasta consegue, sem fazer a menor força, algo de mágico. Embora essa reação ao filme seja imediata e impressionista, tenho a impressão de que estive diante de um filme brilhante – mas que, ironicamente, faz enorme esforço para aparentar ser banalíssimo. Não seria essa explicitação de modéstia, como diz Agustina Bessa-Luis em Conversas no Porto, um sinal gritante de vaidade? Pode ser. Mas é brilhante nessa vaidade.


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