Belle Toujours - Sempre Bela
(Belle Toujours)
de Manoel de Oliveira (Portugal/França, 2006)
por Eduardo Valente
Esse obscuro princípio da incerteza
Desde o começo há uma marcada inversão de perspectiva
entre Belle Toujours e o filme cujos personagens retoma/homenageia,
Bela da Tarde. No filme de Luis Buñuel, desde a primeira
cena estamos grudados na personagem principal feminina, Severine
(Catherine Deneuve): não apenas o filme era a história dela, como
havia marcas concretas de que a narrativa era “posse” da personagem,
como as fantasias (uma delas abre o filme) e os flashbacks
– duas instâncias que unem fortemente espectador a personagem
ao nos dar o acesso a seu mundo interior. Já em Belle Toujours,
começamos o filme e estaremos todo ele ao lado de Husson, personagem
coadjuvante – mas, essencial – do primeiro filme (em ambos interpretado
por Michel Piccoli). Mas, embora o foco narrativo se altere, uma
coisa permanece igual: os cineastas são, em ambos os casos, homens
– e homens profundamente interessados nas mulheres, como seus
outros filmes demonstram. Com isso, esta inversão de ponto de
vista interno (do feminino para o masculino) não altera um dos
principais temas, caros a ambos os filmes: o enigma da mulher.
Para
Manoel de Oliveira, a mulher é, entre outras coisas, o princípio
da incerteza – algo não só reforçado no filme que tem este título
como em vários outros de sua obra. Se o homem é do campo do terreno,
do material, a mulher parece quase sempre inefável, inatingível.
Não é diferentemente que ressurge, então, Severine – agora interpretada
por Bulle Ogiers, numa troca de atriz que a princípio poderia
parecer prejudicial ao filme, mas que o cineasta português não
só insere jocosamente como tema do próprio filme (“eu sou uma
outra mulher”), como ainda usa para prestar uma segunda homenagem
a Buñuel (que, em Esse Obscuro Objeto do Desejo usou duas
atrizes para interpretar a mesma personagem).
Não custa lembrar que Husson surgia no primeiro
filme duplamente como o “instigador” (não sem sadismo, mas também
não sem estranho carinho): primeiro, da liberação sexual de Severine;
e posteriormente como aquele que reintroduz a possibilidade da
felicidade conjugal (claro que é plenamente discutível, em se
tratando de Buñuel, até que ponto ambas as coisas se dão no plano
da realidade ou da imaginação – mas não vamos nem entrar nessa
questão, sem saída). Não será diferente aqui: é ele quem persegue
Severine, que marca um encontro, que prepara “a cena” para o seu
final (e, como em Buñuel, podemos questionar a materialidade deste
encontro). Mas aqui se dá a inversão de uma perspectiva: desta
vez é Husson quem fantasia, quem idealiza, quem procura algo em
Severine, que responde com frieza glacial à maior parte de seus
estímulos (inclusive, gustativos). Husson passa o filme cercado
por mulheres (de mentira, em quadros e manequins; ou de verdade,
nas duas prostitutas que estão no bar), mas não tem olhos para
nenhuma delas, porque só Severine e seu mistério o interessam.
Entre
o gozo marginal do primeiro filme e a esfinge do segundo, a única
coisa que se mantém constante em Severine é seu mistério, sua
imaterialidade – entre a beleza deslumbrante de Deneuve e a
elegância de Ogiers. A mulher é, afinal, movimento. Já Husson,
como bom “menino-homem” permanece exatamente o mesmo: nele, de
novo só há a passagem do tempo marcada no rosto de Piccoli (impossível
não ver este filme também em sua relação com Vou Para Casa,
ambos “filmes de velhice”) – daí que era essencial para este personagem
que fosse interpretado pelo mesmo ator. Se Buñuel tentava investigar
em Bela da Tarde os mistérios da sexualidade e do amor
“em flor” entre homem e mulher, Manoel de Oliveira pega o mesmo
tema e os projeta na velhice, na terceira idade. Em ambos os casos,
a melhor definição das relações masculino-feminino é a da encenação
do jantar em Belle Toujours: um longo diálogo no silêncio,
onde nenhum mistério se revela de fato, mas que é uma delícia
de se ver e sorver.
editoria@revistacinetica.com.br
|