in loco
Diário de Berlim - 1
por Leonardo Mecchi

Com o frio que faz na capital alemã (hoje as ruas amanheceram cobertas de neve), não surpreende que Cannes, realizado em pleno verão da Riviera Francesa, seja o destino preferido de tantos atores e cineastas. Entretanto, com sua postura francamente política (presente em sua própria origem no pós-guerra), Berlim sempre garantiu seu lugar entre os grandes festivais de cinema, ao lado de Cannes e Veneza. Diferentemente desses outros dois eventos (mais voltados para o próprio mercado do cinema), Berlim sempre foi mais aberta ao público em geral, e isso se vê na mobilização da população em torno do Festival.

De minha parte, como se trata da primeira vez num festival deste porte, a sensação de se estar perdido é enorme e constante. Não bastasse a estranheza com a cidade (onde diabos fica a sala Colosseum?) e com a língua (como se diz 'credencial' em alemão?), todos aqui parecem ser macacos velhos da Berlinale, então explicações básicas sobre como conseguir ingressos para as sessões abertas ao público ou onde redigir meus textos são um verdadeiro suplício para se conseguir. Aos trancos e barrancos, entretanto, as coisas vão se acertando e o cinema, esta linguagem universal, acaba prevalecendo. Aos filmes então!

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La Môme - La Vie en Rose, de Olivier Dahan (França/Reino Unido/República Checa, 2006) - filme de abertura

Dieter Kosslick, diretor das últimas cinco edições do Festival de Berlim, vinha sendo muito criticado ultimamente por não conseguir atrair celebridades suficientes para o tapete vermelho do Berlinale Palast – a enorme sala de 1600 lugares onde ocorrem as premières dos filmes em competição – e por suas escolhas pouco empolgantes para os filmes de abertura das últimas edições. Este ano, aparentemente, Kosslick não quis correr riscos. Não apenas várias estrelas já confirmaram presença, como o filme de abertura desta 57ª edição reúne várias características que devem fazê-lo cair no gosto do público berlinense: atuações impressionantes, uma história que navega entre o trágico e o romântico e um final que apela desavergonhadamente para o emocional do espectador.

La Môme não foge muito da estrutura da maior parte dos filmes biográficos que tem inundado as salas de cinema nos últimos anos: uma espécie de best of da vida de Edith Piaf (com direito a manchetes de jornal indicando a passagem do tempo e tudo o mais), indo de sua criação num prostíbulo quando criança, passando por sua descoberta nos cabarés parisienses até chegar à fama internacional e à saúde debilitada que põe fim à sua carreira e à sua vida (e a direção de arte nas reconstituições dessas diversas épocas é uma das melhores coisas do filme).

Estamos diante de uma personagem maior que a vida, uma Piaf mítica, predestinada ao sucesso, à solidão e ao sofrimento, uma Piaf que é curada por milagre de uma cegueira e tem epifanias com Santa Theresa. O filme assume essa mitificação de Piaf como parte de sua estrutura – trata-se, afinal, de um dos grandes monumentos da cultura francesa -, mas não renega sua personalidade difícil, sua carência ou sua dependência à morfina, no que La Môme se diferencia, por exemplo, do recente docudrama global sobre Elis Regina. Da mesma forma, o filme não se pretende um retrato totalizante e definitivo da vida de Edith Piaf, e sua edição não-cronológica, repleta de (por vezes excessivos) flashbacks e flashforwards, confirma esse retrato parcial, fragmentado, subjetivo e incompleto daquela vida.

Mas se há uma razão de ser para o filme, algo que compense seu excesso de sentimentalismo e sua duração por vezes longa demais (o filme tem 140 minutos), ele está no trabalho de Marion Cotillard. Mais do que interpretar, ela somatiza Edith Piaf, num trabalho de corpo e gestos que trazem a cantora francesa à vida na tela de maneira impressionante e surpreendente. Mesmo sendo a sessão de abertura do festival, já temos a primeira grande aposta para o Urso de Prata de melhor atriz.


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