in loco
Diário de Berlim - 4
por Leonardo Mecchi

In Memoria di Me, de Saverio Costanzo (Itália, 2007) – Competição

O novo filme de Saverio Costanzo (cujo Violação de Domicilio, sua estréia na direção, lançado no Brasil ano passado) é, na minha opinião, a obra mais forte na competição até o momento. Um filme poderoso, de uma densidade e austeridade impressionantes no difícil trato dos questionamentos da alma humana.

Baseado num romance dos anos 60 de Furio Monicelli, o filme acompanha as dúvidas e angústias de Andrea, um homem bem sucedido que resolve abandonar tudo e se dedicar à vida religiosa em busca de um ideal, de uma razão de viver. A história se passa inteiramente dentro do mosteiro onde Andrea vai buscar seu refúgio espiritual, e o mundo exterior só é visto através de grades (quase sempre com carros, barcos ou trens em movimento ao fundo), reforçando a sensação, tanto para os personagens como para o espectador, de que aquele lugar possui um tempo e espaço próprios, à parte da experiência humana cotidiana.

In Memoria di Me não é um filme que busca uma conexão fácil e imediata com o espectador. Pelo contrário, demanda um mergulho em sua introspecção que, uma vez atingida, alcança força arrebatadora. O desafio de Costanzo foi realizar um filme onde os questionamentos, as dúvidas, as crises pelas quais passam esses personagens em sua busca pela crença em Deus e no homem se passam menos em suas ações e diálogos do que no silêncio, nas sombras, no vazio de cada corredor e clausura. E é nessa busca do intangível através da imagem que In Memoria di Me se aproxima de outro filme recente de igual apelo e força: Mary, de Abel Ferrara.

Onde em Mary o divino estava estampado em cada imagem, em In Memoria di Me é o mistério da fé que está presente em cada enquadramento de estóica precisão. O mistério que leva à busca do sagrado através da privação, a anulação do ser para atingir a unidade em Deus. Se em Mary, Abel Ferrara chegou à conclusão de que a fé é algo que não pode ser questionado, em In Memoria di Me tudo o que há é o questionamento da fé. A busca por sua origem, por um chamado, por uma explicação racional. Fé não apenas no sagrado, mas também, e principalmente, no humano. Fé em si próprio, na capacidade de se amar e na necessidade de ser amado. Não é pouco para um filme, e Costanzo se mostrou à altura do desafio.

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Mickey One, de Arthur Penn (EUA, 1965) - Retrospectiva

Não resisti e fui a mais uma sessão da retrospectiva de Arthur Penn. Oportunidades como essa não aparecem todos os dias e é preciso aproveitá-las. Novamente a cópia impecável, e novamente uma excelente surpresa: Mickey One é um dos melhores filmes que vi aqui em Berlim.

Aqui sim nos vemos diante de um precursor na New Hollywood. Toda a modernidade que estava soterrada sob o melodrama de O Milagre de Anne Sullivan vem à tona com a força na montagem jazzística, na fotografia em preto e branco, nas improvisações de Stan Getz, na interpretação de Warren Beatty, nos personagens fellinianos que surgem aparentemente de lugar nenhum. Não é à toa que o filme foi mal recebido na época de seu lançamento nos EUA e talvez seja, até hoje, um dos menos vistos de Arthur Penn.

Mickey One tem ainda uma forte influência da Nouvelle Vague na narrativa fragmentada e no retrato de seu personagem-título e, de alguma forma, antecipa a paranóia americana com seu relato kafkiano do homem que é "culpado de não ser inocente", como nos diz o próprio personagem de Warren Beatty. A cena em Mickey One sobe no palco vazio e fala à luz do holofote como que se dirigindo a Deus é nada menos do que genial. Se o filme está longe de ser perfeito (e a queda de seu ritmo na segunda metade é apenas um de seus indicativos), ainda assim ele possui uma frescor e vitalidade raras que o tornam uma obra deliciosa de se assistir.


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