Besouro Verde (The Green
Hornet),
de Michel Gondry (EUA, 2011)
por Raul Arthuso
Lixorama!
A vulgaridade do lixo cinematográfico incomoda o bom gosto.
É como a barriga saliente de Adam West no seriado do Batman
dos anos 60: aquele extra de tecido adiposo por baixo de um símbolo
representativo de valores bem cristalizados da sociedade (retidão,
justiça, bondade, altivez) nos lembra que, no fundo, por
trás das máscaras há pessoas comuns com suas
vontades e fraquezas. Quando Ferris Bueller (personagem de Matthew
Broderick em Curtindo a Vida Adoidado) sai às
ruas com a Ferrari do pai de seu amigo riquinho, ou os Blues Brothers
(John Belushi e Dan Aykroyd em Os Irmãos Cara de Pau)
fogem da polícia e lutam contra a burocracia para salvar
um orfanato, a família, o sistema educacional, os representantes
da lei e a associação das senhoras católicas
ficam de cabelo em pé com a possibilidade de eles serem
modelos a seus filhos. Ou seriam os filhos o modelo desses caras
de pau?
Contra a irresponsabilidade desse lixo cinematográfico
não adianta chorar. E, por isso mesmo, Besouro Verde
é, até aqui, o lixo do ano. O filme pega um gênero
em ascensão no cinema americano comercial recente - o filme
de super-herói - e o contrabandeia com pitadas de irresponsabilidade,
deixando ao largo os delírios de grandeza e altivez que
essas adaptações dos quadrinhos tentam enfiar goela
abaixo das platéias. A despeito da seriedade de Superman
- o Retorno, de Bryan Singer, e dos recentes filmes do Batman,
de Christopher Nolan, a franquia Homem de Ferro já
inserira um certo cinismo graças à figura do protagonista
interpretado por Robert Downey Jr.
Em
Besouro Verde, a figura de atenção é
outra: é Seth Rogen e, com ele, o cinismo dá lugar
ao pastiche, a ironia ao pastelão, a elegância à
vulgaridade. Rogen é Britt Reid, um mauricinho preocupado
em fazer festas, pegar mulher, zoar com os amigos e torrar toda
a grana de seu pai (Tom Wilkinson). Quando este morre, Britt vai
herdar o jornal comandado antes por seu pai e mudar de rumo. Se
suas preocupações não eram nada nobres, sua
redenção segue o mesmo rumo: ele e seu amigo Kato
saem com um carro maneiro para fingir ser aquilo que não
são.
Os personagens do filme transitam nessa "crise existencial"
de imagem, já em si um contrabando de certos códigos
da psicanálise que às vezes os filmes de herói
sérios usam forçosamente para criar profundidade.
O vilão Chudnofsky (Christoph Waltz) é o grande
exemplo: ele quer ser o bandido mais temido da cidade e suas incertezas
quanto a ser ou não este vilão sanguinário
o levam a reações exageradas e medidas extremas,
como explodir uma boate, matar aliados que duvidam de sua força,
mudar seu nome para soar mais cruel. Esta pequena corruptela na
função do vilão, somada à naturalidade
com que Waltz encarna a situação, é o que
cria o humor do personagem - ainda que o personagem quisesse causar
medo.
Essa irresponsabilidade com o código transpira no filme
de Michel Gondry. Em um certo sentido, Besouro Verde
não está muito distante de Rebobine, Por Favor:
há uma idéia de "querer fazer" que remete
aos sentimentos do espectador diante dos heróis tradicionais.
Se no filme anterior de Gondry, Jack Black e Mos Def se jogavam
no mundo para divertir-se refilmando suas obras favoritas - e,
por conseqüência, identificando-se com o espectador
que, como eles, sempre quis viver aqueles filmes - aqui Reit e
Kato (Jay Chou) apenas saem às ruas para combater os criminosos
sem saber muito bem como, equipados apenas com uma série
de trecos tecnológicos, como carros com metralhadoras,
rodas com lanças que furam o pneu do carro do lado, aparelho
de LP portátil, lataria que não sofre danos.
A
inabilidade do Besouro Verde mais esse revival dos apetrechos
tecnológicos de seriados infantis fazem florescer instintos
e sonhos mais viscerais e espontâneos do espectador, já
que Reit e Kato são uma dupla de jovens nerds como qualquer
outra no mundo. E quem nunca sonhou em sair voando, dobrar barras
de aço, fugir num carro em alta velocidade, ter visão-além-do-alcance
mesmo que fosse pelo simples desejo leviano de ver a gatinha do
colégio nua? Essa é a verdade que o filme desperta.
O mérito de Gondry e Rogen está em conseguir conciliar
essa vontade de fazer um filme de herói que floresce ao
longo da projeção sem cair no simples fetichismo
da referência, nem ser leviano em fazer deste tipo de lixo
cinematográfico um descuido estético. Se há
um elogio em Besouro Verde, é ao empirismo adolescente,
sua frontalidade e falta de juízo. É a permissividade
para falar de coisas rasteiras e desimportantes que alinha Besouro
Verde com esse lixo cinematográfico, que ganhou forma
e ápice no fim dos 70 até meados dos 80, e cuja
grande marca é o gosto pela aventura. Besouro Verde
é um filme de herói que, em vez de defender valores
nobres ou seres sobre-humanos, respira esse gosto pela aventura.
Março de 2011
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