Biutiful (idem), de Alejandro González-Iñarritú
(Espanha/México, 2010)

por Rafael Castanheira Parrode

Você não decide

Uxbal (Javier Bardem) é um homem solitário, apesar de viver com seus 2 filhos e sua ex-mulher bipolar. Seu mundo está em ruínas. Médium, ele vê sua própria morte cada vez mais próxima, enquanto ganha alguns trocados para dar notícias dos parentes falecidos em velórios aos familiares em luto. Mas não é esse contato com a morte o motivo de seu enclausuramento. Pois Uxbal é um homem sem impulsos, marionete nas mãos de um cineasta dono de uma visão de mundo reducionista e limitada. O personagem aceita a morte buscando a imortalidade na lembrança dos filhos (ou do espectador). Ora, que imortalidade é essa que nasce da inanição? Que nasce dessa passividade que só quer enxergar o mundo, mas nunca mudá-lo?  

Para Iñarritú, como sabemos, os personagens são espécies de portfolios da miséria e da ignorância humana, um apanhado do que existe de mais podre e ignóbil. São menos presenças humanas do que teses sociais sobre as mazelas do mundo moderno: Personagens que não existem, que não vivem, que não agem. Personagens-denúncia com estampa de telejornal sensacionalista. Biutiful é, portanto, mais um filme-painel sobre a aceitação da morte do mundo. Não há nada que se possa fazer para mudar toda a tragédia que permeia a sociedade contemporânea. Para Iñarritú, somos todos espectadores do desmoronamento do mundo, da instalação do caos. Não há luta capaz de superar nossas mazelas; há apenas a ação, sem reação. Por isso, cada plano será meticulosamente explorado para potencializar esse esfacelamento do mundo, essa sensação de miséria e corrupção que assola a humanidade.

Curiosamente, suas fragilidades ficam ainda mais latentes quando estréia quase ao mesmo tempo que Além da Vida, filme de Clint Eastwood onde Matt Damon também interpreta um homem solitário, marcado por sua mediunidade que o afasta do convívio com as pessoas, que lhe coloca em contato direto com a morte, com o desconhecido, que o isola do mundo, o impede de viver. Só que Eastwood opera suas questões numa ordem um tanto diversa. Cineasta que tem fé nas relações humanas, na possibilidade de nos encontrarmos mesmo diante de um sem número de obstáculos e perdas, que acredita no poder da superação. Seus personagens, tomados por traumas irreparáveis, querem sempre olhar pra frente, ainda que o peso do passado lhes desvie do foco. Não há vitimização. A morte, ainda que constantemente presente nas vidas dos personagens, é apenas um reflexo, um desdobramento da vida. Não há fim. É muito mais uma questão de renovação. De renascimento por assim dizer. A vida não se encerra com a finitude do corpo. Eastwood não se interessa em filmar zumbis, esses mortos-vivos que vagam pela inércia do mundo. A morte é um rito de passagem, é a libertação do espírito. A imortalidade está entranhada no próprio cinema, no registro das relações humanas, do cotidiano, dos espaços, da memória.

Em Biutiful, entretanto, quando Uxbal dá a sua filha o anel que era de sua mãe para que sua imagem nunca caia no esquecimento, Iñarritú coisifica a imortalidade de seu personagem, transformando-a num souvenir. Não há lembranças, memórias; não há vida, não há história. Apenas um anel. Esse cinema mortal, cadavérico engendrado por Iñarritú como radiografia pessimista do mundo moderno, ultrapassado que é, acaba fadado ao esquecimento. Um objeto qualquer escondido nos fundos da gaveta, que vez ou outra nos fará lembrar de seu fracasso diante da complexidade do mundo.

Março de 2011

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