bloco de notas - maio/junho 2006

Brasília, my love
por Leonardo Mecchi
Apesar de figurar esporadicamente ao longo da cinematografia nacional – em filmes como A Idade da Terra, O Cego que Gritava Luz e A Terceira Margem do Rio –, Brasília ainda está longe de ter sido satisfatoriamente retratada e analisada por nossos cineastas. Salta aos olhos, portanto, que no espaço de poucas semanas estreiem em nossas salas duas produções em que a capital federal aparece não apenas como cenário, mas como ponto de partida de seus enredos, focados primordialmente na relação de seus personagens com esse espaço: Brasília 18%, de Nelson Pereira dos Santos, e A Concepção, do brasiliense José Eduardo Belmonte. Não se trata, entretanto, de uma mesma Brasília: enquanto Nelson Pereira retrata o espaço habitado pelo poder, com suas festas, reuniões e interesses escusos, Belmonte mira sua câmera nos subterrâneos dessa Brasília, onde jovens bem nascidos, porém sem expectativas, buscam por uma razão de ser em uma cidade impessoal, asfixiante e inorgânica. De certo modo, pode-se dizer que os jovens de Belmonte são um subproduto das relações destrinchadas por Nelson. Mas o mais interessante é notar que, em ambos os casos, os personagens só conseguem se relacionar com aquele espaço através de estados alterados de consciência, sejam eles auto-induzidos (no caso de Concepção) ou patológicos (Brasília). Seria esse um sintoma de nossa incapacidade de compreensão do que ocorre nos bastidores do país?

Mamãe, lavaram o meu cinema!!
por Eduardo Valente
Difícil entender exatamente o quê andou acontecendo com o cinema brasileiro recente. Talvez fruto de uma transição apressada para a finalização digital de imagem, posteriormente transposta para as cópias em película, o que vimos até agora neste começo de ano comercial foi uma seqüência inacreditável de filmes cujas imagens pareciam ter sido enviadas para uma lavanderia antes da exibição nas salas. Ausência absoluta de contrastes, uma aparente névoa entre o espectador e os personagens. Pior: assinando a fotografia destes filmes, alguns dos maiores nomes do cinema brasileiro na especialidade: Walter Carvalho, que dispensa apresentações, em A Máquina; Lauro Escorel em Irma Vap – O Retorno; Nonato Estrela em Depois Daquele Baile; Alziro Barbosa (o menos conhecido do grupo, mas que assinou belíssimos trabalhos com o curtametragista Joel Yamaji) em Gatão de Meia-Idade. É um desenvolvimento curioso este que se segue ao momento da hiper-valorização dos aspectos técnicos no começo da “retomada”: os filmes mais comerciais parecem querer indicar que a qualidade técnica não seria, afinal, algo de tão importante assim. Pode ser... mas então por que escalar estes fotógrafos? E no caso deles, por que aceitar? Um mistério do cinema brasileiro de hoje, com certeza...

A divagação e a desritmia como erro e encantamento
por Felipe Bragança
Pude ver em DVD dia desses o primeiro longa-metragem de Apichatpong Weerashetakul, Objeto Misterioso ao Meio-Dia - uma colcha de retalhos construída entre a encenação marcada e os depoimentos colhidos, onde a ficção se reafirma na possibilidade da fábula como poucas vezes no cinema recente. O que me impressiona é encontrar no filme uma irregularidade de ritmo e um desacerto de projeto que consegue ser não um problema de forma, mas uma questão inerente ao filme como um tatear, como um ensaio de cena que se dá "ao vivo". Os retalhos de narrativa não soam no filme como pedaços de uma arquitetura fechada e malabarista, mas um ir e vir, um avançar e recuar vivo que criam um efeito ao mesmo tempo tosco e preciso, afiado e precário. E, nesse paradoxo, encantador.


A dona da moral da história
por Eduardo Valente
Já vão quase dois meses do final do Big Brother Brasil 6, mas não dá para deixar passar a necessidade do comentário: nesta edição, a Globo colheu os frutos plantados na edição anterior. Se a edição novelesca que dividiu a casa em bons e maus bateu recordes de audiência, o resultado óbvio foi uma casa completamente sem fatos nem tramas mais interessantes, com números de votantes e espectadores declinantes causando demissões na equipe e até mesmo chegando ao ponto de causar discussões sobre mudança de formato. Na verdade, mais do que um resultado do exagero de um artifício anterior, esta “evangelização” do programa é resultado de toda uma postura especialmente encarnada pelo Pastor BBB Pedro Bial: o de catequisar as massas através de um programa de TV, jogando para baixo do tapete aquilo que é o mais óbvio – que trata-se apenas de uma competição para ganhar um prêmio. A instituição de uma “moral do jogo”, segundo a qual “jogador” é um defeito (ué, mas não era isso que eles iam fazer lá?), teve seu ápice no capítulo final, com Padre Bial perguntando “Quem traçou a história mais bonita?” ou “Quem fez por merecer?” Cabe a pergunta: será que os espectadores eliminariam os vilões das telenovelas nos primeiros capítulos se pudessem votar para eliminar personagens? Se Bial apresentasse as mesmas, talvez sim. Mas é difícil acreditar que sobrasse alguém assistindo aos capítulos finais do embate dos “mocinhos”. A Globo podia decidir afinal se o BBB é um programa de entretenimento ou um Telecurso de Boas Maneiras. E agir de acordo com a conclusão a que chegar, sem a hipocrisia do moralismo reinante no programa atualmente.

Em nome do pai
por Leonardo Mecchi
A paternidade, como questão inerente ao ser humano, sempre foi foco de atenção de cineastas das mais diversas épocas e nacionalidades. Entretanto, é sintomático o grande número de filmes recentes que tratam dessa questão de maneira central em suas narrativas. Pais que descobrem tardiamente a existência de filhos e com isso mudam suas percepções de vida (A Vida Marinha com Steve Zissou, Flores Partidas, Estrela Solitária), pais que buscam uma reaproximação com filhos que haviam renegado (Chaves de Casa), pais que sentem o peso da responsabilidade e a necessidade do amadurecimento diante da existência do filho (A Criança) e até mesmo a sublimação do pai, tornado figura supérflua na construção de uma nova estrutura familiar (Reis e Rainha). O significado dessa confluência de filmes atuais questionando a figura paterna ainda está para ser estudado, mas a questão é que, em todas essas configurações possíveis, sobressai o fato de que a paternidade – assim como toda construção de identidade na chamada pós-modernidade – é um processo contínuo, plural e permanentemente em aberto, desestabilizando dessa forma a representação tradicional do pai onipotente.

Sorria, você está na Barra!
por Eduardo Valente
Se é verdade que Se eu Fosse Você está longe de ser um ponto alto do cinema brasileiro recente, também deve se notar que ele possui muito mais pontos de interesse do que boa parte dos filmes com DNA televisivo que têm sido feitos no país. Um dos menos citados entre estes é a sua situação geográfico-espacial no pouco filmado bairro da Barra da Tijuca, paraíso das classes médias e altas emergentes do Rio de Janeiro. Neste bairro, faz muito mais sentido as direções de arte hiper-trabalhadas ou as encenações de personagens quase plastificados nos seus dramas de consciência burguesa – é quase neo-realista. No entanto, a Barra, considerada brega até pelos produtores comerciais brasileiros, tem ficado meio de lado no imaginário cinematográfico recente, com muita injustiça. Bom vê-la de volta, ainda mais nas mãos de Daniel Filho, um dos astros do curioso Espelho da Carne, filme de 1984, mais conhecido pela cena em que Filho sodomiza o personagem interpretado por Denis Carvalho. Espelho, muito discretamente e com considerável sucesso, retratava, por trás do drama dos personagens (sem trocadilho), o surgimento do bairro que vai desaguar em Se Eu Fosse Você, mais de 20 anos depois. Muita água correu debaixo da ponte nesse tempo – inclusive para os dois atores, colegas de direção na Globo, anos depois), Ver os dois filmes em sessão dupla pode ser um curioso exercício de história do cinema brasileiro, do Rio de Janeiro e do Brasil.


Uma noite com Claudio Cunha
por Cléber Eduardo
Ah, o prazer do zappear: no Canal Brasil, A Lira do Delírio, de Walter Lima Jr. Cascatas de planos-sequência selvagens, com uma câmera-corpo, uma descarga documental, dissonância experimental. No canal vizinho, Telecine Cult, cruzo com Jacques Rivette (Quem Sabe?). Marcação teatral de atores, não da câmera, essa rigorosa, sóbria, sem "lampejos", constante em seu equilíbrio. Duas revisões que, além de renovar a memória dos filmes, renova os filmes, que se tornam novas experiências. Novidades mesmo, porém e surpreendentemente, foram dois Claudio Cunhas: Sábado Alucinante e O Gosto do Pecado, ambos da virada dos 70 para os 80, crepúsculo das pornochanchadas. O primeiro antecipa o espírito de Lael Rodrigues e certamente têm consciência de Antonio Calmon. O segundo é um Walter Hugo Khoury sem setas indicativas de erudição, até selvagem em alguns momentos (seja pela agressão ao modelo narrativo ambicionado, seja por conta de cortes agressivos, seja por uma intimidade com os ambientes populares). E aqui se sente a diferença entre o popular daquele momento e o popular do momento atual, sendo aquele mais autêntico e este mais referencial (é menos popular e mais sobre o popular, de A Máquina a Tapete Vermelho). Mudou o popular evidentemente, porque, ali na passagem dos 70 para os 80, ele compreendia as classes C e D, mas hoje, quando o termo se refere ao cinema, refere-se à classe média. O popular só pode ser, assim, uma visão sobre o popular, ou um popular de classe média, que carrega sempre um certo ar de paródia em relação a seus códigos. Já Claudio Cunha, ao ser popular, leva-se a sério. O Gosto do Pecado é um dramalhão cheio de sexo, capaz de, sem os disfarces e as coleiras do popular de classe média, sair com essa: "Eu agora sou seu dono", afirma Roberto Villalonga, no papel de um advogado, para Simone Carvalho, no papel de uma secretária. Ela, noiva e virgem antes de ser deflorada por ele, consente. E ele ainda pede segredo.


Cada país tem a sacanagem que merece
por Eduardo Valente
Curiosa experiência nos permitem as madrugadas insones diante da TV a cabo: enquanto no Canal Brasil a sessão Como era Gostoso Nosso Cinema coloca nas telas o melhor (e pior também) das pornochanchadas nacionais (principalmente, mas não exclusivamente, dos anos 70 – mas também de outras épocas, e também filmes que não se enquadram exatamente no gênero), o Telecine Action vara a noite com sua Sessão Erótica, recheada de telefilmes americanos de soft porn. Zappear entre um e outro é quase uma aula de sociologia das nações, enquanto os americanos desfilam corpos quase sempre cientificamente manipulados em cenas (mal) coreografados de sexo quase sempre anódino, e invariavelmente cercado por tramas policialescas que associam seguidamente o ato carnal dos personagens com perigo de morte ou com eventos sobrenaturais (vampiros, etc). Já na versão brasileira, a sacanagem rola solta sempre com muito mais naturalidade, e sem subterfúgios desnecessários – cercada por uma onipresente jocosidade, muitas vezes mais preponderante até do que a exposição das carnes. Entre a divertida malícia sensual e a aeróbica sexual mecanizada, ficamos com o similar nacional.




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