bloco de notas - setembro 2006

Cinemas "de arte"
por Eduardo Valente
Domingão no Arteplex paulista. A programação é ótima, a cafeteria idem, os projetores novos, o pessoal bem treinado. E ainda assim, de que serve isso tudo quando se joga um filme na lata do lixo por um erro banal de projeção? Me refiro a ter assistido ao épico confronto em que Paul Giamatti tenta proteger Bryce Dallas Howard do perigo do boom do microfone que parece persegui-lo ao longo da projeção. Tudo por uma questão banal para qualquer pessoa que saiba alguma coisa sobre projeção de cinema (que temos certeza ser o caso dos donos do cinema): janela errada. Filmado em 1.85, o filme é projetado em 1.66, causando este efeito que, para o espectador comum, parece desleixo da produção do filme. Este, aliás, é o grande golpe deste erro tão freqüente em nossos “melhores cinemas”: o espectador não sabe quão simples seria solucioná-lo (troca de lente e janela, planejamento na distância focal do projetor e na legendagem do filme), e quão consciente os exibidores estão deste (d)efeito. Mas, ninguém se importa, aparentemente: azar de quem acha que um filme que quer se assemelhar a um conto de fadas tem toda a magia da sua projeção impedida por aquele boom insistente que nos planta na terra como um making of de TV. Vá reclamar com o gerente para ver o labirinto de justificativas em que nos metemos (quase sempre terminando com a frase “ninguém mais reclamou” – como se isso fizesse aquele microfone sumir da tela) – e isso porque estamos falando de um problema palpável e visível, imagina se eu resolvo falar da leitura de som digital constantemente caindo que eu vi imediatamente antes na sala 3 em Casa do Lago...
Se o erro fosse ocasional, não gastaria minhas linhas com uma frustração singular ante anos de bons serviços. Acontece que, no Arteplex 1 e 2, é a enésima vez que isso me acontece (e vários filmes já sofreram do mesmo mal no Estação Botafogo 1, nos Espaços Unibanco carioca e paulista, etc). E olha que não estamos falando aqui dos maus cinemas clássicos (o mais surreal é o HSBC Belas Artes, cujos donos são cineastas!!!), ou daquelas salinhas de fim de circuito marcantes pelas lâmpadas gastas e pelo som claudicante – lá já se sabe o que nos espera ao entrar. “Ah, mas nos cineclubes antigos, via-se filmes como dava, é um privilégio ter estes cinemas hoje em dia”. Sim, mas nos cineclubes não se escondiam os defeitos e condições precárias de projeção, e se praticavam preços condizentes. Já no Arteplex 1 custa 16 reais o ingresso do cinema – nada de estranho ante os preços que se praticam no mercado, mas é um valor que supomos que garanta ao espectador pagante um serviço “de primeira”, o que, pelo visto, não precisa incluir a projeção de um filme como ela foi pensada por quem o fez.
Que os supostos “mercadores de filme” (leia-se UCIs e Cinemarks da vida) não se importem com detalhes como este, seria até de se esperar. Mas, estes não são os “cinemas de arte”, diferenciados, templos do amor ao cinema? Não se duvida aqui das boas intenções de Adhemar de Oliveira, Grupo Estação, O2 e Pandora. Mas até quando precisaremos fingir que não estamos vendo filmes sendo assassinados desta maneira, que isso é “normal”? Para mim, só sei que a falta de amor pelos filmes que se sente numa experiência dessa é enorme.
ps: Voltando de uma sessão de Les glaneurs et la glaneuse na Mostra Varda, é preciso fazer um elogio: no Odeon BR sempre vemos o filme no formato certo, mesmo o raro 1:33 deste caso. Me parece esquisito elogiar como raridade o que imaginaríamos o mínimo, mas realmente não quero ser acusado de injustiça ou perseguição. Tudo que eu quero é ver os filmes como eles foram criados - não é tão complicado.

Vídeo para que te quero
por Leonardo Mecchi
Na segunda parte da série Cinema brasileiro pra quem?, chamamos a atenção para a importância do mercado de homevideo para o desenvolvimento e difusão do cinema nacional em um país onde o mercado exibidor é extremamente reduzido e concentrado. Pois semana passada, em um dos seminários da I Feira Internacional do Cinema e do Audiovisual, realizada em São Paulo, Wilson Feitosa, diretor geral da Europa Filmes no Brasil, levantou dados interessantíssimos que apenas corroboram nossa opinião.
Segundo ele, enquanto apenas 7% dos municípios do país possuem salas de cinema, as vídeo-locadoras cobrem 68% do território nacional. A estimativa é que, até o final do ano, 120 milhões de brasileiros tenham acesso a um aparelho de DVD. Trata-se de um enorme público potencial para o cinema nacional que hoje vem sendo sistematicamente negligenciado.
É importante lembrar que a Lei do Audiovisual, quando criada, regulava em seu artigo 30o que até 2003 “as empresas distribuidoras de vídeo doméstico deverão ter um percentual de obras brasileiras audiovisuais cinematográficas e videofonográficas entre seus títulos, obrigando-se a lançá-las comercialmente”. Infelizmente, como tantas outras leis no país, esta nunca chegou a ser observada na prática. Com tantos problemas para se fazer os filmes nacionais chegarem até seu público, talvez fosse o caso de retomar essa discussão.

Recortes possíveis
por Kleber Mendonça Filho
É curiosa a recente reclamação/ponderação de Jean-Michel Frodon (e ele está certo, aliás), que um festival como o de Cannes é antes de tudo um recorte possível de curadores específicos e não mais o “melhor cinema do mundo”. Por outro lado, é interessante pensar que é exatamente isso o que falta no cinema brasileiro e seu circuito de quermesses regionais (nossos festivais). Falta por aqui a figura do curador, de alguém que assine aquilo e diga, "ok, bom ou errado, sou eu o dono, fui em quem fiz, e aí?”. O Cine PE, por exemplo, tem uma cara: a da vasta multidão que lota o Teatro Guararapes – e isso é bem especial, mas não tem um perfil, uma visão de cinema, um tipo ou tipos de filme que se impõem. O que, infelizmente, aplica-se aos festivais brasileiros, em geral.
Esse ano, Olivier Père, curador da Quinzena dos Realizadores, virou um quase superstar, um DJ de filmes – ele  foi "o cara" pela maneira como montou uma seleção cinéfila, incrível e, acima de tudo, muito divertida. No Brasil, isso não existe, a grosso modo. Boa parte dos nossos diretores de festivais poderia estar organizando congressos de odontologia ou feiras de turismo. Eles (com as devidas exceções anotadas, claro) não vêem filmes, não parecem ter o interesse de ver filmes. Quem conhece/observa diretores de festivais estrangeiros poderá notar a diferença. Os caras vêem filmes, estão a procura de filmes, anotam filmes em caderninhos e catálogos!
Em Gramado, encontrei um diretor de festival na entrada, ali nas escadas, antes de Serras da Desordem. Quando a sessão ia começar, perguntei se ele não iria entrar. Ele disse: "Não, acho que vou ficar aqui fora".

"A vida é um filme. Só faltava a câmera!"
por Ilana Feldman
Vocês viram esta propaganda de celular Gradiente com câmera, na época da Copa? O enquadramento da câmera do celular produz uma realidade hibridizada com a fantasia, mediada por signos do cinema de gênero (musical, ação, animação, faroeste, kung-fu, "guerra nas estrelas"). Ou seja: a propaganda assume que é a câmera que organiza e codifica a realidade, e que o olhar, através dela, recortadamente, revela aquilo que não é percebido ou aquilo de fantástico (aqui, literalmente) que existe em potencial no real... Outro aspecto interessante – além dessa narrativização do cotidiano pelo espetáculo –, por sua sintomatologia, é o uso do celular não só como um dispositivo tecnológico de captação/produção, mas como um dispositivo de vigilância instantânea, não-programada. Afinal, a câmera que produz essa realidade fílmica – como diz o narrador – o faz a partir do roubo de imagens alheias – imagens que, além de casuais, poderiam ser tomadas como "flagras picantes" ou "flagrantes policiais". Ou seja, dentre os gêneros utilizados, faltou a pornografia e o realismo-urbano.

Lei do Curta

por Leonardo Mecchi
Às vésperas do início da maior vitrine da produção curta-metragista brasileira – o Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo – o Ministério Público enviou à Ancine uma recomendação para que a Agência volte a regulamentar, num prazo de 90 dias, a antiga Lei do Curta, legislação que obriga as salas de cinema a exibirem, antes de cada sessão de filme estrangeiro, um curta-metragem nacional. Apesar de ter sido criada em 1975, a lei deixou de ser regulamentada (e, conseqüentemente, deixou de ser observada na prática) ainda em 1990, com a extinção da Embrafilme. Como nunca foi revogada, o Ministério Público está agora exigindo que a Ancine coloque-a em vigor e garanta que ela seja respeitada.
A reação não tardou a aparecer: Valmir Fernandes, presidente da rede Cinemark, disse em entrevista à Folha de São Paulo que “não há como o setor aceitar passivamente algo que vai comprometer a atividade” e que a exibição de curtas brasileiros antes dos filmes estrangeiros irá “afastar a parcela do público que não necessariamente quer ser exposta a isso”. É curioso que Fernandes tenha imediatamente se prontificado a defender os interesses de um suposto público que não desejaria ser “exposto” ao curta-metragem sem jamais ter se questionado se esse mesmo público aprecia as intermináveis sucessões de comerciais a que é submetido toda vez que deseja assistir a um filme em uma das salas do Cinemark. A real inquietação dos exibidores é clara: eles não estão preocupados em perder uma parcela de seu público (algo que dificilmente aconteceria pela simples exibição de um curta-metragem antes do início da sessão), mas sim que tenham que diminuir o número de comerciais exibidos e que hoje respondem, juntamente com a bombonière, por 60% do faturamento de uma sala.
“Isso” que o presidente da rede Cinemark quer tão solicitamente poupar que seu público seja exposto (como se fosse um vírus ou doença contagiosa) é um dos maiores braços produtores do audiovisual brasileiro, responsável em 2005 por mais de 200 filmes em 35mm (número que parece expressivo mas que, comparado aos mais de 500 curtas produzidos anualmente no auge da Lei do Curta, mostra o quanto regredimos nessa questão), e onde foram investidos mais de R$ 4.163 milhões em recursos públicos nesse mesmo ano. Essa enorme produção ainda é vítima hoje de uma semi-invisibilidade, tendo sua circulação restrita a festivais, mostras e um ou outro programa em canais públicos de TV – ainda que recentemente tenha encontrado alguns formatos alternativos de exibição, como os programas especiais (o “Curta às Seis”, da Petrobras, ou o “Curta Cinemateca”, da Cinemateca Brasileira), exibições em cineclubes, internet (em sites específicos como o Porta Curtas e o Curta o Curta, ou mesmo através do fenômeno You Tube) ou no celular (com a parceria da Vivo com o Festival do Minuto).
É certo que a Lei do Curta não pode ser aplicada sem uma discussão prévia entre todos os envolvidos, uma vez que há uma série de questões que precisam ser esclarecidas, entre elas: a definição de quem irá selecionar os curtas a serem exibidos – atentando-se para a necessidade de uma coerência mínima (temática ou estética) entre o curta e o longa a que ele será vinculado; garantir que teremos uma produção suficiente e de qualidade para ocupar esse novo espaço, respeitando uma duração máxima a ser definida para que o curta seja exibido nessa janela (e nesse sentido, pode-se pensar na criação de editais específicos para esse fim, sem impactar as demais expressões nesse formato, como filmes experimentais ou com uma duração maior); até mesmo podendo-se pensar uma cota de salas com exibição de curtas.
O fato é que o poder público não pode se isentar da necessidade de garantir a exibição dos curtas em salas de cinema, não apenas porque se trata de uma contrapartida mínima para uma população que está financiando essa produção através de recursos públicos, mas também porque o curta-metragem é fundamental para o desenvolvimento da indústria cinematográfica nacional. A recomendação do Ministério Público à Ancine abre uma possibilidade extremamente interessante para o cinema brasileiro – devendo receber toda a atenção e discussão, desde que com a seriedade que o tema merece.


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