Bobby (idem), de Emilio Estevez (EUA, 2006)
por Eduardo Valente

A grande esperança branca

Se a introdução e a conclusão de um filme forem consideradas pontos nevrálgicos para que se entenda suas intenções, Bobby é cristalino: das frases iniciais sobre a tela preta introduzindo Bobby Kennedy como uma espécie de messias, aos créditos finais com fotos mitificantes de Bobby (e toda a família Kennedy) como uma forma de “homenagem final”, não resta qualquer dúvida sobre a tese que Emilio Estevez quer defender. Bobby, o filme, considera que a possível eleição de Robert Kennedy para presidente dos EUA era o fenômeno que salvaria a América (aqui entendida como os Estados Unidos, claro), e por conseqüência o mundo. Por ser feito em 2006 e não em 1969, entenda-se bem: salvaria especificamente os EUA do Vietnã, mas também de George Bush, do 11 de setembro, do Iraque, etc. Claro que, na melhor das hipóteses, trata-se de uma tese simplista e ingênua, e na pior das hipóteses, algo ridícula. Bobby é o típico filme do ideário liberal-democrata hollywoodiano: pretende-se crítico de um status quo quando, de fato, quer afirmar os mesmos valores reinantes, apenas “do jeito certo” (não por acaso Bobby Kennedy pode ser visto nas fotos do final como marido exemplar, pai dedicado, rapaz de típica família loira, linda, rica). Mas, trata-se aqui menos de tentar julgar sua tese sócio-política e mais de analisar o processo cinematográfico urdido para defendê-la.

Estevez opta por seguir uma série de “pequenos personagens”, propositalmente desimportantes, que transitam em torno do hotel aonde Bobby foi assassinado, ao longo do dia deste acontecimento. Claramente o desejo de Estevez é de se filiar ao cinema de Scorsese e Altman (emulando o uso da trilha sonora de canções do primeiro, só que indo só no mais óbvio; ou a câmera solta do segundo, só que sem vibração). De fato, o filme de Estevez é uma espécie de versão cinematográfica e política da canção-elegia de Don McLean, American Pie: só que enquanto naquela falava-se de “the day the music died” (ou seja, o dia em que Buddy Holly morre num acidente de avião – embora a história por trás das letras seja mais complexa do que isso, como pode-se ler aqui), aqui trata-se de um desfiar de pequenos dramas no “day America died”. Nos dois trabalhos busca-se um mesmo desejo do sentimento épico: no caso da canção de McLean, um passar a limpo dos EUA entre os anos 50 e 60; no de Estevez, uma busca de um certo formato narrativo (o filme-painel lotado de atores de prestígio) que empreste ao filme uma importância tão grande quanto a que Estevez dá ao personagem histórico de Bobby Kennedy.

Dentro dessa importância, pode soar curiosa a decisão de Estevez não encenar o personagem de Bobby como figura ficcional cinematográfica: ele surge no filme apenas como ícone em imagens de arquivo ou de costas, mitificado. Mas, é algo perfeitamente compreensível: Estevez tem por Bobby um certo respeito que beira o medo do sacrilégio – e, além disso, os santos raramente dão em personagens muito interessantes na sua “ausência de falhas”. E, afinal de contas, é de falhas que trata o filme, acima de tudo: as “falhas da América”, que Bobby viria para curar. A mais óbvia delas, tematizada do início ao fim, é o racismo e a separação/tensão entre brancos, negros e mexicanos. Mas, está longe de ser a única: estão no filme a infelicidade conjugal e o adultério, a vaidade e a futilidade, o uso abusivo de drogas e o alcoolismo e, claro, a violência – a pequena, mas também a do Vietnã, que são aproximadas pelo messiânico (e profético) discurso final. Tudo isso surge no filme sob um olhar crítico, beirando o patético: não por acaso levam tiros no final todos os personagens mais “culpados”. É como se com Bobby morresse a chance deles serem, afinal, expurgados de seus pecados.

E é aí que o projeto de Estevez começa a derrapar: assombrado por este moralismo acachapante (que já era subentendido pela escolha mesmo de um “salvador”), o filme enclausura seus personagens nas celas da “utilidade narrativa”. Assim, logo percebemos que nenhum dos seus dramas vale nada individualmente, mas apenas na sua soma como situações exemplares do “estado da América”. Para encenar este estado, Estevez apela então para o método mais banal possível: uma seqüência de cenas dó-de-peito onde os atores de prestígio se prestam a seus pequenos papéis com uma avidez notável para traçar um Oscar de ator/atriz coadjuvante. Curiosamente, foram todos ignorados pela Academia, talvez justamente pelo constrangedor espetáculo desta busca escancarada. Então, dá-lhe discurso importante de Laurence Fishburne aqui, dá-lhe cena de choro de Demi Moore bêbada lá, dá-lhe discurso de Martin Sheen ali, dá-lhe cena de choro de Sharon Stone enfeiada ali. E assim o filme vai se sucedendo a passos de elefante: auto-importante, inchado, sem respiro. Na tentativa de ser um Scorsese ou um Altman, tudo que ele consegue é fazer Paul Thomas Anderson parecer um cineasta sutil ou copiar o modelo Crash em viés histórico – só que Paul Haggis conseguiu pelo menos os Oscars que ignoraram Estevez.

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