debate crítico
Borat - O segundo melhor repórter do glorioso país Casaquistão viaja à América (Borat - Cultural learnings of America for make benefit glorious nation of Kazakhstan),
de Larry Charles (EUA, 2006)
editado por Eduardo Valente

Há quase seis meses, o grande interesse e debate interno na redação acerca de A Dama na Água, de M. Night Shyamalan, nos fez criar uma possibilidade diferente de aproximação crítica com um filme, propondo aos redatores que nos enviassem textos mais curtos do que os que geralmente publicamos, para que eles criassem um diálogo direto entre idéias distintas, permitindo que víssemos com clareza as distintas visões dentro de uma mesma redação. Embora o texto tenha sido um dos nossos maiores sucessos em termos de acesso dos leitores, não surgia uma "fórmula" a ser seguida, já que mais do que qualquer coisa, o interesse que um filme gera para justificar uma mobilização daquelas precisa vir naturalmente.

Pois eis que, com Borat, finalmente chegou este filme - que, talvez ainda mais do que o próprio filme de Shyamalan, divide as opiniões dos redatores. Na verdade, nós percebemos que o filme era diferente quanto, antes mesmo dele entrar em cartaz, recebemos de dois leitores textos sobre o filme, que eles nos enviavam para possível publicação - o que, se já é algo raro em si, é ainda mais estranho quando acontece duas vezes (e antes da estréia!). Nossa política, nas críticas especialmente, é de privilegiar a participação dos redatores regulares da revista, mas, até como forma de honrar uma certa inspiração que estas correspondências nos causaram no sentido de propor este debate que segue, decidimos dar um espaço para que estes dois leitores também participem do bate papo conosco.

Uma última curiosidade: assim como o debate de Dama na Água marcou a estréia de dois redatores que depois tornaram-se constantes presenças na revista, este debate aqui marca a estréia, já no texto que o abre, da nossa nova redatora, Renata Gomes. Torcemos que, para ela, a estréia seja tão promissora de um futuro na revista quanto foi para Lila e Lucas (que participam do debate, claro). E celebramos ainda a chance de ler aqui nossos atarefados colaboradores, menos assíduos mas igualmente importantes como parte da redação, Pedro Butcher e Kleber Mendonça Filho. Sempre um prazer tê-los por aqui.

* * *

Renata Gomes

Da sessão de Borat, saí com mais perguntas do que respostas. A maioria delas em torno das fronteiras borradas entre ficção e documentário, coisa tão absolutamente recorrente nos dias de hoje que chega a ser surpreendente que me tenha me inquietado num filme como este. É certo que há (pelo menos) dois regimes de construção de sentido no filme. Um é o da ficção, do escracho (quase infinito), das gags (impagáveis), do roteiro (claramente amarrado aos moldes canônicos). O outro é o do documentário, mas não me parece que estejamos no terreno das pegadinhas, talvez numa mutação de reality show. Daí, a nova dúvida que me surgiu: como sabemos – e, mais importante – o quanto muda, se é que muda, sabermos em que momento esses registros se dão, se excluem, se sobrepõem?

Um registro claramente se submete ao outro: o personagem de ficção, aquele que luta com o produtor no quarto de hotel (numa cena que dificilmente sairá da memória de quem a assistiu, à revelia do que talvez fosse nosso desejo), serve ao dispositivo de não-ficção, o do falso repórter do país exótico que, com sua ingenuidade e ignorância esperadas, testa ironicamente o limite dos preconceitos e paternalismo de seus entrevistados, não coincidentemente, americanos. O filme leva a sério sua paródia e não poupa esforços para se fazer parecer “tosco” – para quem está nele e para quem vê. Nisto, me parece também levar ao limite a possibilidade de que vá ser “engolido” como real também por algum espectador – e não apenas pelos obtusos e desavisados entrevistados. Será isto possível em tempos de Big Brother e Michael Moore?

Para alguém que já tenha passado tempo suficiente em solo americano, o ridículo a que os entrevistados de Borat se submetem tem ares de justiça poética. Mas o que torna o filme leve, a despeito do que revela de suas tristes “vítimas”, é uma quase generosidade do ator/personagem em promover situações que antes de tudo colocam a si mesmo em risco – de viver o ridículo, de se expor, de apanhar até – e que, se geram o cômico, é apenas na medida em que seus interlocutores permitem. Da série de perguntas que continuavam surgindo, veio esta: em que medida a comicidade do filme depende do olhar crítico de quem constrói o ridículo dos entrevistados?

É nessa fronteira que o filme se separa da lógica simplória da “pegadinha”. O regime que se instala em Borat me parece ter mais de reality show: nele, o pacto a que cede o entrevistado o faz operar como uma espécie de personagem que, sendo convidado a um documentário “legítimo”, tenta se comportar como o que julga ser esperado. A modulação aqui é que, justamente quanto mais ciente parece o entrevistado de seu papel apropriado, mais profunda e irrevogavelmente ele se trai. E se isto vale para o vendedor que com presteza sugere uma “arma boa para matar judeus”, vale também para as feministas que sabotam a entrevista no momento em que detectam estar diante de um atrasado machista. Envoltos em sua auto-atribuída persona midiática, nem os supostamente ignorantes nem os assumidamente intelectualizados (como as feministas, mas também a anfitriã do jantar e os professores de humor e boas maneiras) conseguem em qualquer momento questionar o pacto a que se submeteram. (Ou pelo menos isso é o que chega a nós, embora a pergunta sobre a veracidade das situações seja recorrente – este, sim, um procedimento aprendido sob a lógica das pegadinhas). É do trânsito a que nos obriga Borat entre esses diversos olhares que pode emergir sua grande marca: o fato de ser um olhar crítico incrivelmente contemporâneo – e, claro, muito, muito, muito engraçado.

* * *

Ilana Feldman

Para além de tudo o que já foi escrito sobre Borat, especialmente as críticas de Cléber Eduardo e Eduardo Valente aqui na Cinética, penso que há um ponto no filme que mais se assemelha a um nó cego. Este ponto diz respeito à contradição que alinhava Borat, o personagem, e Borat, o filme. Espécie de zona obscura que ainda contempla uma terceira instância: o filme dentro do filme – isto é, o filme-reportagem em primeira pessoa que Borat, o personagem, está fazendo sob encomenda para o Cazaquistão.

Essas três esferas narrativas, propositalmente hibridizadas, tornam Borat, o filme, tanto mais interessante para análise quanto mais capcioso em suas estratégias (o humor) e seus efeitos (a política). Aqui, não interessa desenvolver as ambigüidades inerentes ao humor, mas apontar para uma possível contradição entre os discursos, do filme e do personagem, contradição que se coloca como dúvida, como suspeita. Pois, se só há  humor político na medida em que ele exerce um contra-poder, na medida em que ele questiona o modelo, o padrão, provindo de um contra-modelo, isto é, de instâncias não-legitimadas, como situar Borat, esse marginal personagem que habita a "diferença", de Borat, o filme, sucesso que já arrecadou mais de U$ 250 milhões de dólares em todo o mundo e é interpretado por Sacha Baron Cohen, esse comediante britânico que é uma das figuras mais influentes da indústria do entretenimento? 

Parece-me que há aí uma fricção narrativo-discursiva que joga faíscas nos olhos, obscurecendo a mais importante questão: enquanto Borat, o personagem, desafia o modelo e os clichês conformadores do modelo, no caso a sociedade norte-americana (em suas práticas, discursos e valores), Borat, o filme, acaba, não sem ironia, por reafirmar esse mesmo modelo e seus clichês, endossando-os ao não escapar, por fim, à lógica do modelo/diferença. Afinal, o alegórico Cazaquistão que reivindica ser incorporado e americanizado, se por um lado o faz copiando para ser uma cópia legítima ou um “igual”, acaba por se tornar uma cópia torta, um “outro”, porém, e aqui estamos no ponto principal, um “outro” que não mais é o “outro” da alteridade radical, mas o outro do “igual”.

Simplificando, a contradição que se coloca diz respeito a duas formas de humor: utilizado como ferramenta política, o humor de Borat, o personagem, é subversivo e anti-identitário, fazendo jus a toda uma tradição do corrosivo e, no limite, auto-destrutivo humor judaico, enquanto o humor de Borat, o filme, é colonialista e deveras conformado, conformação estética e política.

* * *

Kleber Mendonça Filho

Os Idiotas (1998), de Lars Von Trier, passaria muito bem com Borat, numa sessão dupla do cinema de confrontos humanos e sociais. Se em Os Idiotas, Von Trier usava uma variação da anarquia disfarçada de desequilíbrio psicológico como instrumento cortante, Cohen, por sua vez, parece assumir a idéia medieval do bôbo da côrte, o pelêgo da realeza que dizia suas verdades camufladas com uma canção ou gargalhada, e, na maioria das vezes, saía ileso. Só que, se Lars Von Trier, caso raro de um estrangeiro debruçando-se de fora sobre os EUA (em seus três filmes “americanos” – Dançando no Escuro, Dogville e Manderlay), pode ser lembrado por fazer obras (amando-as ou detestando-as) que são cartas-bomba claramente endereçadas aos EUA, Cohen evita muito bem bater de frente com aspectos políticos locais, levando a grande maioria (americana, em especial, onde o filme é um blockbuster) a crer que tudo não passa de uma brincadeira de espetacular mau gosto.

Sacha Baron Cohen é inglês, e seu personagem é do Cazaquistão – um cidadão da ex-União Soviética. Tecnicamente, são dois estrangeiros se infiltrando no coração dos EUA para apresentar um espelho grotesco daquele país. Diferente do profundamente americano Michael Moore, que cria mecanismos cômicos para revelar contradições (ou mesmo a essência) da cultura e política americanas, o Borat de Sacha se faz de imbecil – claramente estrangeiro, “simple minded” (ignorante), usa o preconceito com tipos como o dele como licença para achincalhar a histórica incapacidade de os EUA se relacionarem com o mundo externo. No início do filme, as tentativas de Borat tocar e beijar (e o resultado disso) transeuntes nas ruas dos EUA me pareceram politicamente simbólicas de uma forma que vai bem além da gag em si. Essa incapacidade americana de interagir com o mundo externo foi ainda mais acentuada depois do 11 de setembro, aspecto perfeitamente documentado pelo filme na sequência onde Borat ouve atento a dicas de vestuário e cabelo de um cowboy de meia-idade, já na sequência do rodeio – “esse bigode lhe deixa com cara de árabe, se você tirar, fica pelo menos se parecendo com um desses italianos…”.

A questão relacionada à identidade cultural estrangeira (Cohen inglês interpretando um cazaqui interagindo com americanos) me parece ainda mais forte em Borat frente a duas outras representações de cidadãos estrangeiros da ex-União Soviética: em O Terminal (2003), de Steven Spielberg, e Uma Vida Iluminada (2005), de Liev Schreiber. No primeiro, Spielberg e Tom Hanks (talvez dois dos maiores símbolos do “ser americano” na cultura moderna via cinema) transformam o personagem deles num autista – Viktor Navorsky, viajante de um país fictício e ex-comunista, "Krakhozhia" –, retrato estúpido e bem intencionado que equivale ao da negra cozinheira com alma branca, desdentada e falando engraçado (errado). Talvez seja representação até de interesse por sair tão sem filtro, provável objeto de estudo sobre a relação EUA-culturas estrangeiras, registrada para a posteridade num filme caro do mais poderoso cineasta americano em atividade. Já no filme de Schreiber, o acompanhante ucraniano do personagem central americano (interpretado por Elijah Wood) é um tipo pré-Borat: outro ignorante que aspira a todas as coisas americanas sem traços indentificáveis da sua própria cultura, exceto pela sua ingenuidade.

Em Borat, a retidão moral do jornalista cazaqui não existe, e o próprio Cohen nos dá uma representação caricatural do representante de uma cultura (ex-soviética) que, mesmo 16 anos depois do fim do regime, ainda tenta entender como funciona um mundo que, em grande parte, é ditado, letra por letra, pela presença onipresente da cultura americana, que antes lhes era proibida. Munido do abismo que há entre um mundo e o outro, Cohen (com visão cosmopolita de europeu ocidental) termina apresentando um ensaio sobre o constrangimento como retrato das diferenças, utilizando visão preconceituosa para com o povo da Europa do leste, engordando o estigma de que russos, ucranianos ou ex-soviéticos em geral são: A) fumantes ultra-violentos (thrillers e filmes de ação), ou B) ignorantes sem qualquer noção de nada (comédias como esta ou dramas humanos).

No caso de Cohen, essa visão vem, e isso deve ser destacado, não de um distraído preconceito (Spielberg e Schreiber), mas de uma sensacional falta de ética e mesmo respeito pelos cazaquis, e pelos americanos, que estão em Borat como mamulengos involuntários de tamanho escracho britânico. Essa falta de ética tem feito da produção moderna algo de empolgante, mesmo que eu me contorça na cadeira lembrando de uma época onde as regras do jogo eram bem mais claras. Na verdade, desde que ouvi Werner Herzog discordando em off do seu personagem morto em O Homem Urso (2005) que, pelo menos para mim, a idéia do que pode ser ou não feito foi por água abaixo.

* * *

Lucas Keese

Durante o lançamento de Borat, a utilização freqüente do termo "politicamente incorreto" apontou para algumas contradições na própria recepção do filme – efeito inevitável para tudo que se aproxima de um humor tão radical. O estouro de bilheteria de Borat propiciou a formação de um "coro dos contentes" que não hesitou em aderir ao humor do personagem de Sacha Baron Cohen. Seja na mídia brasileira, em que grupos como o do "Pânico na TV" buscaram uma certa aproximação "programática", seja em Hollywood com um convite (negado) para a participação de Cohen na entrega do Oscar, ou até mesmo na interessante sinceridade do presidente do Cazaquistão quando admitiu que "toda publicidade é boa", o "incorreto" tão bradado sobre a política do filme parece um pouco esvaziado – ou parodiado – de sentido. E como a maioria quer estar do lado de quem ri, é bem possível que a cifra da bilheteria supere a dos processos judiciais.

O que esse coro por vezes esquece é que um humor desses não é tão domesticado quanto ele gostaria. Da mesma forma que o filme trabalha num registro de ambigüidade entre documentário e ficção, entre o que é (ou o quanto é) encenado e o que não, há uma certa indistinção das implicações das piadas ali produzidas que faz com que misturemos as risadas, e dentre elas, talvez não seja tão difícil encontrarmos algumas que sejam a petrificação de nosso próprio horror. Pois é justamente esse jogo de paradoxos que faz o humor tão forte, é impossível abraçá-lo por inteiro sem levar junto as contradições de seu poder. Assim, algumas polêmicas acabam tendo um quê de unanimidade, como o público do rodeio clamando junto com Sacha pelo sangue dos inimigos – e nós, rindo disso.

* * *

Leonardo Mecchi

Há muito de Michael Moore em Borat. Aqui como lá, são utilizados os mesmos artifícios que se critica para atacar e condenar o Judas da vez (os EUA, alvo fácil na era Bush). Michael Moore tira sua legitimação do fato dele próprio ser norte-americano e emprega toda uma gama de manipulações, desinformações e omissões para “expor” ao mundo justamente a política de manipulações, desinformações e omissões do governo norte-americano. Já Sacha Baron Cohen, estrangeiro que é, vai buscar essa legitimação da crítica no humor escrachado e politicamente incorreto de Borat.

Assim como Moore, Baron Cohen também se utiliza, em sua sátira do americano médio, das mesmas características que busca criticar. É através da exploração, do preconceito e do estereótipo que o comediante constrói um retrato do povo americano como uma massa homogênea de xenófobos, homofóbicos, anti-semitas e ignorantes. Não há como escapar do tipo de humor perpetrado por Sacha Baron Cohen: ou se é exposto ao ridículo em cena ou se é cortado na edição, pois não há espaço aqui para a individualização, para a nuança, para a singularidade.

A questão que se coloca diante de procedimentos como o de Michael Moore e Sacha Baron Cohen é que apoiá-los por se concordar ética ou moralmente com suas críticas significa legitimar o método, e não a crítica, o que invalidaria qualquer reserva que se possa ter caso o método se volte a causas consideradas “menos nobres”. Ri-se sim ao longo do filme, mas não se trata de um riso político, subversivo ou reflexivo como muitos pretendem, mas um riso vazio e inócuo, reação meramente instintiva ao apelo primitivo do humor de Borat.

* * *

Lila Foster

O filme já veio cercado de tanta polêmica que não teve como não chegar munida de algumas pré-concepções – e por causa disso mesmo Borat me impressionou. Primeiro porque imaginava um Michael Moore, mais esculachado decerto, com toda aquela urgência em mostrar ao mundo e ao próprio “US and A”, via humor e um didatismo por vezes inconseqüente mas muito funcional, o absurdo de um país tão poderoso e ao mesmo tão violento, beligerante e estúpido. 

A crítica, nesse sentido, não é o cerne de Borat até porque o preconceito e a ignorância são a base de apoio deste repórter vindo do remoto e desconhecido Cazaquistão. Tudo bem que é a tal “América profunda” que parece ser desvelada, pois surge como um espelho de Borat, concordando e levando à lugares mais extremos a misoginia, racismo, homofobia. O que me parece marcante, no entanto, é como a narrativa é construída a partir de uma variedade de formatos de intervenção: câmera escondida, entrevistas e situações com pessoas “reais” não cientes de estarem lidando com um personagem, um discurso reacionário ovacionado por toda uma platéia e a tal luta totalmente bizarra no meio de uma conferência de corretores de seguros.

O riso vem então da forma extrema, grotesca, escatológica e absurda que este repórter/ator engendra, em situações que expõem os entrevistados ao ridículo, mas que também não vê limites ou restrições na forma em que se expõe (fica na cabeça a pergunta sobre como a sua equipe de produção trabalhou e como este cara não foi linchado). É nessa coragem, numa exposição até mesmo física, que reside seu humor: não existe um riso “persistente”, já que as situações se esgotam por si mesmas apesar de um fio condutor narrativo dado pela história da busca do repórter pela sua paixão Pamela Anderson.

Sacha Baron Cohen constrói um campo de batalha do humor onde qualquer um – judeu, feminista, nova-iorquino, cazaques, texano, vendedor, estudantes – pode ser vítima da artilharia pesada desse repórter. Nesse jogo, o espectador talvez não escape – pois, afinal, quem pode contestar a visão preconceituosa desta ex-república soviética? Não se trata aqui de um confronto com a realidade, de quem se salva pelos seus conhecimentos de geografia política, mas atirando merda para tudo quanto é lado o que se salva além dos bons momentos de riso histérico?

* * *

Pedro Butcher

Queria levantar a bola de um detalhe quase imperceptível, mas muito curioso, que é o tratamento dado ao operador de câmera em Borat. O filme, como se sabe, é um falso documentário, mas a equipe “ficcional” desse documentário se reduz ao repórter e ao produtor. O câmera está ali na frente deles o tempo todo, mas jamais se torna um personagem. Logo na primeira seqüência, quando Borat ainda está no “Cazaquistão”, ele se dirige à câmera e apresenta seu produtor, que não quer aparecer. Os dois entram no carro que vai levá-los até o aeroporto e a câmera continua ali, de fora do carro, registrando a partida. Corta para o plano de um avião e estamos conversados. O câmera não foi?

Nos Estados Unidos, Borat se converte em um road movie. O repórter e seu produtor, portanto, precisam se deslocar e se hospedar em algum lugar. Quando páram para dormir em um “bed and breakfast”, por exemplo, o quarto  tem duas camas – e não se faz qualquer menção à terceira pessoa que, necessariamente, está ali com eles, e que portanto deveria se hospedar ali também. O câmera é um homem-fantasma, uma figura ao mesmo tempo presente e ausente de todo o filme.

Esse detalhe diz muito sobre o estatuto da imagem hoje e sobre o tipo de imagem que se produz aqui. O “comandante do espetáculo”, o verdadeiro homem-câmera, é o próprio Sacha Baron Cohen, já que a câmera está o tempo todo em função dele, acompanhando-o como unha e carne. Mas há, também, esse aspecto da imagem que “nasce pronta”, uma espécie de imagem natural, que se esconde como produção. O que curiosamente, aqui, não é uma necessariamente uma negação de autoralidade. Afinal, tudo o que se vê é pelos olhos de Borat/Sacha Baron Cohen, o/s “verdadeiro/s autor/es” dessa história.

* * *

Paulo Santos Lima

Num cinema tão cheio de regras e censuras (muitas delas sistematizadas – justificadamente – por nós, como quebra de eixo involuntária e outras aberrações estilísticas), resta à comédia um desregramento, uma quase anarquia, uma isenção total de limites. Porque, se essa “imunidade” dá chance para que um punhado de filmes cômicos teçam um humor que avilta a dignidade humana (ou o que se padronizou como tal, o que discorreria numa ampla discussão sobre moral e ética, que não me interessa aqui), por outro lado, quando o humor se faz cinematográfica e tematicamente sofisticado, possibilita um efeito extático, uma ambigüidade igualmente sem fronteiras. Bem sabemos, a ambigüidade é tão valorosa na construção de discursos audiovisuais que foi ela mesma quem refrigerou a abafação da narrativa clássica, de John Ford a Hitchcock, Kazan, Fuller ou Ray. Ou seja, a ambigüidade derrete os determinismos, ou, mesmo quando constrói potentes e perigosas verdades absolutas, ao menos o faz por um caminho de maior sofisticação teleológica.

Assim chegamos a Borat, um filme sobre o qual foram impostas várias certezas, verdades, maior parte delas prévias à projeção, às evidências na tela. Uma obra ambígua em seu discurso imagético e, sobretudo, por ele mesmo. Porque nem é grande cinema, tampouco original, mais um mix da ótima “selvageria” dos Irmãos Farrelly com o Monthy Python. Mas, ao mesmo tempo, é bem feliz em seus resultados, porque o comediante Sacha Baron Cohen mantém a estrutura de seus sketches cômicos televisivos, e consegue mantê-los vigorosos na longa duração. Graças, talvez, à adoção da estrutura de roadmovie.

O alvo, afinal, são os Estados Unidos? Não me parece. Justamente, Borat parece-me um filme sem foco definido, e sim um mapeamento sobre o comportamento humano. Usa como balizas os EUA e o Cazaquistão, mas aqui está mais para a tal “covardia” das comédias em atacar cadáveres, tirar-lhes a última gota de sangue vencido das veias. Nisso, até compreendo o que Cléber Eduardo quis dizer sobre o vínculo que Sacha faz entre a direita americana e o grotesquerie (isso é termo meu, não dele) do Cazaquistão, mas acho esse pensamento mais pertinente como detecção na tela, não como resultado final... na mesma tela do cinema. Porque, graças a essa ambigüidade, temos um Cazaquistão bárbaro, selvagem, mas ainda assim mais humano, quente, sensual, alegre, do que os Estados Unidos de plástico que Borat nos apresenta pelo seu programa de TV (que, por sua vez, cria fusões sobre qual é o ponto de vista, da câmera da TV cazaque ou a do diretor Larry Charles). O fausto é na América, mas a irreverência é de fora. Nem a (perdão do termo) bela vaca Pámela Anderson se faz libertária: ela se horroriza com a franqueza de Borat da mesma forma que a família-modelo americana.

Mas é nesse oceano norte-americano que Borat encontra numa prostituta a beleza existencial humana. É com ela, já no Cazaquistão, que Borat, o filme, sela seu discurso sem muito foco, que celebra uma alegria de viver que se faz existencial. É assim que eu mantenho a (perigosa) afirmação de que os fins justificam os meios na comédia. Vampirizando as piadas e clicherias sobre (ou contra?) judeus, minorias etc, Borat desenha com lama um painel humano afeito em suas hipocrisias, bestialidades, frivolidades, insanidades, para chegar numa bela constatação de que a vida está na borda, na marginália, e esta está incrustada no centro do mundo. Se Borat é valioso e se faz “transgressivo”, mesmo não sendo dos mais singulares como cinema (como o são os Farrelly), está certo, então, que sua relevância se faz circunstancial, e Borat se mostrará quando romper com seu momento histórico. E, daí, afirmo: só será algo se seu conteúdo estilístico for deveras ambíguo, além-mar moral e ético.


editoria@revistacinetica.com.br


« Volta